O neto corrige o avô (Giannotti x Marx)

por Roberto Schwarz

Peço licença para começar com uma história antiga. Algumas décadas atrás, quando éramos moços, aqui o nosso Giannotti me passou um trabalho que acabava de escrever. Li, gostei e disse que havia achado claro. Ele ficou desapontado e respondeu que o que estava fazendo agora era mais difícil.
É claro que não se tratava para ele de preferir o incompreensível. Pelo contrário, Giannotti foi desde sempre um soldado da razão. O que a anedota mostra é o seu desejo de estar à frente, de se aventurar em áreas temíveis, que o comum dos professores não frequenta, de pensar o impensado. Dizendo de outro modo, Giannotti sempre teve a aspiração vanguardista, de ser ponta-de-lança, de formar entre os descobridores e de enfrentar as dificuldades correspondentes. Acho que a transmissão militante desse impulso aos amigos e aos alunos, às vezes até um pouco à bruta, é um dos melhores itens do currículo dele. Eu mesmo sou beneficiário e vítima desse ideal.
Pois bem, a iniciativa de formar um seminário para ler "O Capital" de Marx em fins dos anos 50 -iniciativa importante para a nossa geração universitária- teve muito a ver com essa disposição vanguardista. A lembrança de Giannotti hoje não é essa e no seu novo livro, "Certa Herança Marxista", ele escreve que desde o começo estudou "O Capital" como um clássico, quer dizer, como um livro sem consequência especial para o presente. Com o perdão dele, penso que isso é só meia verdade.
Naqueles anos, Giannotti voltara da França convertido às exigências da leitura estruturalista, para nós uma novidade, e é certo que convenceu os amigos a estudar Marx nessa perspectiva, digamos, acadêmica. A idéia de entender o grande crítico de nossa ordem social por meio de um método a-histórico e descontextualizador não deixava de ser surpreendente. Mas ela apaixonou o grupo e se mostrou muito produtiva. De outro ângulo, contudo, do qual todos tinham consciência, tratava-se de uma ação política em sentido próprio.
Ao encarar Marx com os olhos de um doutorando, comprometido com as razões do texto e mais nada, púnhamos em questão a leitura doutrinária e inculcadora praticada pelo Partido Comunista, e com ela a autoridade intelectual deste último -então ainda uma grande presença, embora já em descompasso absurdo com o padrão intelectual universitário e com a liberdade de pensar com a própria cabeça. Noutras palavras, os seminários de Marx, que em seguida pipocaram entre nós e em todo o mundo, foram uma das inúmeras manifestações da formação de uma nova esquerda, liberada do peso do stalinismo e do enquadramento soviético.
Também do ponto de vista da academia, a aposta no estudo de Marx representava um passo antiacadêmico. Na época, a teoria anticapitalista não fazia parte, por exemplo, do currículo de ciências sociais. Os professores influentes do departamento eram de esquerda, mas os clássicos eram Durkheim, Max Weber e Karl Mannheim.
Talvez se possa dizer que o mergulho no teórico das contradições, da crise e da superação do capitalismo vinha responder a uma dinamização geral em curso, palpável na radicalização do populismo e na presença crescente do terceiro-mundismo e do antiimperialismo, que repolarizavam à distância a vida intelectual. Assim, quando destrinchavam "O Capital" e buscavam nele a inspiração para artigos e teses de doutoramento, os jovens professores queriam trazer a luta de classes e o antiimperialismo à frente também da cena universitária, queriam rivalizar, a partir da universidade, com os demais centros de elaboração ideológica no país, queriam desbancar a sociologia do establishment e tinham, em linha com a mania metodológica nacional, a ambição de estabelecer a superioridade científica de Marx, da dialética e deles próprios -ponto aliás em que se esperava muito do desempenho de Giannotti.
Noutras palavras, acompanhando o curso das coisas, que se precipitava em direção do enfrentamento de 1964, entrava em pauta a transformação do mínimo e do máximo: mexer no currículo do departamento, tomar conta do pedaço, meter a colher no debate ideológico, intervir na política científica e, mais remotamente, mudar a ordem social do próprio Brasil e do mundo. Daí eu achar que Giannotti não conta a missa inteira ao dizer que, para ele, Marx não era senão um clássico.
Aliás, nem o livro que estamos discutindo aqui é apenas acadêmico. Muito de tudo isso que mencionei permanece ativo dentro dele, embora noutro contexto e com significação mudada. A exposição tumultuada e o ânimo vanguardista estão incólumes. Quanto ao último, a linha condutora da exposição consiste, penso que para surpresa de muitos, em demonstrar ainda e sempre a superioridade de Marx -ou melhor, da certa herança marxista do título- sobre os demais pensadores com que possa haver comparação. Um programa paralelo ao dos anos 50, 60 e 70, embora com diferenças.
Em termos ultra-sumários, digamos que um diagrama marxista da reprodução do capital, reconstituído conforme o ângulo de Giannotti, é sucessivamente confrontado com a dialética idealista de Hegel, com a ponderação weberiana dos meios e dos fins, com o jogo de linguagem de Wittgenstein, com a separação entre ação técnica e comunicativa de Habermas, com a versão primária do fetichismo própria aos frankfurtianos (amigamente peço licença para achar esse capítulo uma catástrofe) e com a ciência econômica de hoje. O marxismo sai fortalecido de todos esses encontros, e nesse sentido Giannotti poderia dizer com Sartre, tão fora de moda, que Marx é o horizonte insuperável de nosso tempo.

Despachar um grande autor O miolo dessas argumentações é sempre interessante, resultado de reflexão cerrada e tenaz. Para o meu gosto são elas a melhor parte do trabalho e lamento que sejam tão breves -10 ou 20 linhas, possivelmente muito acertadas, para despachar um grande autor. No que dependesse de mim, as proporções da apresentação estariam invertidas. As longas reconstituições do argumento marxista se poderiam sintetizar sem perda, ao passo que as dificuldades que as colocações de Marx representam para o pensamento da concorrência -se é cabível falar assim- deviam estar expostas com amplitude, pois elas são um dos bons resultados críticos do livro.
Dito isso, o adversário estratégico de Giannotti, via Marx, é Marx ele mesmo. Um breve esquema da reprodução do capital, preferido como sendo o núcleo válido e insuperado da elaboração marxista, é dirigido contra o anticapitalismo de seu autor. Assim, a certa herança marxista serve a Giannotti para derrotar não só os demais teóricos da sociedade, como também a política marxista, aquela que com ou sem revolução visa à superação do capitalismo. De passagem são derrubados também o jovem Marx e a dialética da natureza segundo Engels. Esta a posição paradoxal que o novo livro de Giannotti procura sustentar: um marxismo vitorioso, criticamente superior às posições concorrentes, que entretanto implica a inviabilidade da política marxista e do impulso de superar a ordem do presente.
Em termos de itinerário político, esse resultado é menos implausível e mais colado à história do que parece. Sem prejuízo de estar na origem de revoluções que não deram certo ou foram derrotadas, o marxismo tem se mostrado uma boa escola para explicar a lógica dos imperativos do capital. A dissociação entre esses dois aspectos, visto o seu êxito desigual, é uma lição possível do curso das coisas. Como ilustração, não custa lembrar que o presidente do Brasil, que foi figura central do mesmo seminário, no momento se empenha em modernizar o capitalismo no país. Digamos objetivamente que o tempo de uma vida normal de nossa geração fez que se sucedessem e misturassem, bem ou mal integrados, dentro das mesmas cabeças, momentos de crítica incisiva ao capitalismo e outros de crítica a essa mesma crítica.
Nesse quadro, a saída que Giannotti procurou é inesperada: ele explica os desastres do socialismo como decorrência necessária não da crítica marxista à ordem burguesa, como faz a direita, mas da desobediência às estipulações, acertadas e insuperadas, contidas na construção da racionalidade moderna operada pelo mesmo Marx, no caso o economista, ao descrever o funcionamento do capital.
É um resultado desconcertante, que entretanto tem o mérito de absorver, com esforço de integração intelectual, uma experiência histórica. Marx talvez não apreciasse a glória que Giannotti lhe reserva, mas isso é inessencial e aliás não o surpreenderia, pois ninguém mais que ele serviu a propósitos que não estavam no programaPara falar de movimentos análogos em outro plano, todo crítico de arte sabe da legitimidade de voltar as obras contra as intenções do autor, ou de opor umas às outras as partes de um trabalho, como as boas às más, ou como a verdade à mentira.
Ainda assim, embora não haja nada de errado em contrapor Marx a Marx, há algo de excessivo em fazer dele o ferrolho teórico do edifício do capital. Algo como procurar na obra de Freud a apologia dos remédios antidepressivos e a condenação da psicanálise. Nada é impossível, mas... Onde os críticos do capitalismo permanecem fiéis a suas aspirações e interrogam as razões dos desastres das experiências socialistas, tratando de rever à sua luz a insuficiência da construção marxista do processo, o marxista estrito, na versão Giannotti, busca em Marx o argumento para demonstrar que a superação do capitalismo leva à barbárie.
Para delimitar a atualidade, Giannotti recorre ao passo genial dos "Grundrisse" (1857), onde Marx antecipa a automação e a correspondente dissolução das categorias básicas do capitalismo. Com a integração regular da pesquisa científica ao processo produtivo, em especial ao novo maquinário -anota Marx-, a parte agregada ao produto pelo trabalho propriamente operário, ou pelo trabalho abstrato, perderá em significação. Um definhamento de mesma ordem afetará a lei do valor-trabalho e a realidade da classe operária.
No século e meio que passou, esses desenvolvimentos de fato se verificaram, embora com ponto de chegada diferente do previsto, pois o comunismo não resolveu os problemas da humanidade, nem o fetichismo do capital se dissipou, ou não foi dissipado. Embora tornada absurdamente mesquinha em relação à substância do processo em curso, a forma mercantil permanece em vigor, como a mediadora universal, e com ela os pressupostos atomizantes e ilusórios da troca justa das mercadorias "pelo seu valor". Os trabalhadores continuam obrigados a vender individualmente a sua força de trabalho, como se houvesse proporção entre esta e os resultados gerais da produção, e os produtos continuam a ser apropriados por meio do mercado, no qual buscam quem os possa comprar, como se o processo produtivo não estivesse socializado.
Na obra de Marx, esses argumentos figuram entre numerosos outros e procuram captar a contradição em processo, a expansão do capital em muitas frentes, rompendo limites e urgindo a própria superação. O conjunto parece dominado por um ponto de fuga comum, para o qual os vetores convergem. Pois bem, ao transformar as mesmas formulações em diagnóstico do presente, à luz do colapso do socialismo, Giannotti faz com que elas participem de um dinamismo diverso.
No prognóstico de Marx, quem fazia água por todos os lados era o capital. Para o leitor de hoje, advertido pela história recente, os aspectos que se destacam no argumento são outros. Lá está, pedindo para ser notada, a perda de substância do proletariado relativamente às combinações que comandam a nova produtividade social. Ou seja, o agente histórico da superação perde força justamente quando a crise das formas capitalistas se acentua. De outro ângulo, nesse modelo o avanço da crise vem acompanhado do arrefecimento da luta de classes: com o "colapso (d)a produção apoiada sobre o valor de troca, o processo de produção material despe-se ele próprio da forma da necessidade premente e do antagonismo" (1).
Assim, ao acompanhar e construir o processo por vários lados, Marx dava elementos para a compreensão também de outros desfechos, não visados, mas possíveis. Meio teorizado, meio constatado, esse é o horizonte hoje comum aos leitores de formação marxista. É aí que se situa a reflexão de Giannotti.
Por momentos, com zelo um pouco deslocado no tempo, ela denuncia o messianismo dogmático do homem que quis realizar a filosofia e que via a história como a marcha inelutável para o comunismo. É sabido que há nos escritos de Marx as citações que permitem a construção desse personagem. Entretanto basta um pouco de contextualização histórica, na minha opinião, para que também essa figura conte entre os heróis do pensamento crítico, e não entre os fanáticos.
Dito isso, no principal o livro de Giannotti discute esquemas do Marx da maturidade, que buscam reconstruir, em grau de complexidade assombroso, a léguas de qualquer parcialidade primária, o ciclo da reprodução contraditória do capital. Fazem parte estrutural desta as tendências à auto-superação, bem como as contratendências. A conhecida parcimônia de Marx na descrição do socialismo mostra que ele o via como algo novo, que não se podia deduzir do passado, no qual contudo estava baseado. Algo possível, digamos, mas não um desdobramento automático.
Instruído pelos acontecimentos, Giannotti vai se concentrar nas contratendências que apontam, seja para as dificuldades da passagem ao socialismo, seja para a impossibilidade dela, seja para o perigo que ela representa. Até onde posso ver, há oscilação entre os três pontos de vista. Os dois primeiros são interessantes, e o terceiro, por estar expresso em lugares-comuns da retórica anticrítica, é uma concessão ao ar do tempo.
Em plano paralelo, a passagem a uma forma superior de sociedade vem ligada à discussão sobre o bem-fundado da dialética, ou sobre o estatuto real da contradição. Contra as teorias mais ou menos positivistas, que vêem nesta um fato apenas do discurso, sem contrapartida no mundo, Giannotti dá razão a Hegel e Marx: em particular atrás do dado econômico, que não é último, existem contradições em processo, que cabe à crítica desvendar e que abrem novas possibilidades lógicas e práticas (ou seja, o socialismo). Por outro lado, Marx tem razão contra Hegel quando acompanha a contradição em seus labirintos e desencontros, desvencilhando-a do esquema de superações inelutáveis da lógica especulativa. Esta a diferença entre a dialética materialista e a idealista. Não obstante, levado pelo engajamento revolucionário, Marx aposta na possibilidade -ou certeza- da superação e "impregna todo o seu projeto político daquele misticismo lógico que denunciara na teoria hegeliana do Estado" (2).

Resíduo hegeliano Isso posto, não fica claro para o leitor se a superação do capitalismo, que é sim contraditório segundo Giannotti, deve ser vista como um possível ou como um impossível. Está claro que ela não está inscrita no automatismo das coisas, que entretanto a solicitam. Isso faz dela um resíduo hegeliano e um erro de lógica? Por que não uma oportunidade real, derrotada no campo dos fatos? Ou, ainda, uma aspiração a que o capitalismo não cessa de alimentar, embora lhe modifique os termos? A exposição é vacilante nesses pontos decisivos. E por que não inverter a direção do raciocínio e imaginar que as próprias idéias hegelianas de contradição e superação tenham algo a ver com os movimentos da sociedade contemporânea? É a hipótese materialista, ausente do livro.
Quanto às dificuldades e impossibilidades, Giannotti as configura a partir de especificações do esquema da crise segundo Marx. Para este, como se sabe, o desenvolvimento das forças produtivas a certa altura entra em contradição com as relações de produção: aquelas socializam-se mais e mais, ao passo que estas acentuam a sua polarização, ensinando à classe trabalhadora a injustiça da ordem do capital e a possibilidade de uma ordem social superior. Ao analisar o detalhe do processo, Giannotti assinala os seus momentos baralhados, não-finalistas, que não se acomodam ao ritmo ascensional de cisão e conciliação, de antítese e síntese.
Assim, quando o trabalhador contrata a venda de sua força de trabalho, acata em ato o fetichismo da forma mercantil, ou seja, a suposição da troca equitativa entre proprietários, formalmente iguais. Por outro lado, a necessidade natural que o empurra a vender -a pressão da fome- é resultado do processo histórico violento que o separou dos meios de produção. Noutro plano, o trabalho, sem o qual não há salário nem sobrevivência, é visto pelo trabalhador como momento de uma atividade coletiva, em que há associação, e não oposição, a um capitalista. O trabalhador vê-se também associado a outros trabalhadores, que entretanto são seus concorrentes na venda de mão-de-obra.
Sem prejuízo de serem ilusões, decorrentes do fetichismo do capital, esses ângulos coexistentes e incompatíveis têm existência objetiva e não há como desconhecê-los. Por si sós, não se anulam, não se hierarquizam e não empurram em direção de uma compreensão abrangente do processo produtivo, uma compreensão que o fizesse ver em sua grandes linhas, suscitando a consciência de classe correspondente e desmanchando o fetiche econômico. Esse complexo de pontos de vista desencontrados seria relativamente estável se não fosse sacudido pelas crises, que põem a nu a estrutura antagônica da ordem capitalista. Mas também a crise não é unívoca e as práticas a que ela induz vão em várias direções, não gerando "as prefigurações consistentes" de um novo sistema (3). Entre os fatores de crise estão a já mencionada incorporação regular da ciência à produção bem como a monopolização do fluxo da inovação técnica pelas grandes empresas. Cada uma à sua maneira, as duas tendências clivam estruturalmente o mundo do trabalho, acentuando a sua heterogeneidade e operando, assim, em sentido oposto ao de uma consciência de classe unificadora.
Que pensar desses resultados? O caráter inconclusivo da consciência individual e espontânea dos trabalhadores não é uma novidade. Os partidos operários foram criados justamente para ultrapassar essa ordem de limitações, para trazer à vida consciente a dimensão social -quer dizer, desfetichizada- do processo de produção moderno, com as possibilidades que lhe correspondem. Qual o propósito então de estudar em separado a venda individual da força de trabalho e de fazer dela, e de suas perspectivas desencontradas, a instância decisiva da socialização dos sujeitos?
Por que fazer abstração dos elos mediadores -intelectuais, organizacionais, legais, institucionais etc.-, que são as conquistas culturais e políticas que permitem ao trabalhador a atuação coletiva? Do ponto de vista do argumento de Giannotti, trata-se de demonstrar que os funcionamentos elementares do capitalismo socializam o trabalhador segundo regras discordantes, que não levam à formação de uma consciência de classe consistente. Ou ainda, que a formação de um agente social capaz de superar o capitalismo é uma idéia ilusória, sem fundamento nas "coisas" -coisa, aqui, no sentido "sensível e supra-sensível" analisado por Marx na teoria do fetichismo.
A verossimilhança do argumento tem vários apoios. Um é o tom radical-filosófico do raciocínio, que abandona as exterioridades e vai ao núcleo duro da troca mercantil, a matéria primeira contra a qual as toneladas de ideologia ulterior -e de conquistas sociais?- nada podem. Dizendo de outra maneira, trata-se do primado irreversível do fetiche sobre a desfetichização.
A esse respeito, note-se que dificilmente ocorreria a alguém, num momento de alta da luta popular, fazer do diagrama da troca individual uma chave da história contemporânea. Como a luta popular está em baixa, digamos que a supressão das mediações sociais na teoria coincide com a sua atual supressão na prática, que resultou da vasta vitória do capital sobre o trabalho organizado em nosso tempo, à qual não faltou o lado da guerra ideológica, inclusive universitária. Isso não quer dizer que estejamos diante do enfrentamento cru entre capital e trabalho, à moda antiga, e que as mediações sociais tenham desaparecido: elas apenas trocaram de lado e de intenção.
Como supor que os esquemas mentais envolvidos na troca mercantil simples estejam determinando, de modo imediato, as fraquezas da consciência operária atual? Eles são a sua pauta deliberadamente inculcada, o que é outra coisa; um conteúdo, e não a forma. Observe-se, entre parêntesis, que o mecanismo de determinação da consciência pela prática, tal como concebido por Giannotti, sendo engenhoso e original, é mais estreito e menos explicativo que o corrente, do marxismo vulgar, orientado pela tipologia das classes. Divergindo deste, foi a teoria frankfurtiana da indústria cultural, de que Giannotti não gosta, que ergueu a problemática marxista ao patamar das forças produtivas de nosso tempo, o que lhe permitiu estar mais próxima da experiência atual, além de mais afinada, em chave de rumo desastroso, com as antecipações de Marx (4).
A TV no momento tem força para convencer até mesmo os excluídos de que o peru de natal da marca X é uma riqueza da vida deles. Onde está a troca entre proprietários? A máquina socializadora dos sujeitos no caso é outra, bem mais "moderna" e menos liberal. Acontece que essa potência social, quer dizer, uma força amplamente associada, refletida e coordenada, é toda ela dedicada a reconfirmar no público as evidências curtas e anti-sociais da propriedade mercantil, também onde elas não têm pé nem cabeça. Nesse sentido, a opção argumentativa de Giannotti pelas estruturas elementares, destinada à crítica de ilusões da esquerda, está em sintonia com o martelo ideológico do capital.
A socialização contraditória pela forma-mercadoria é com certeza um grande assunto. Entretanto, ao estender uma linha direta entre os seus esquemas elementares e os impasses da passagem ao socialismo, penso que Giannotti força a mão. Cria também uma perspectiva a meu ver irreal. Ficamos com a impressão de que não houve nos últimos 150 anos luta de classes acirrada nem revoluções, impressão que está errada e que desvia do essencial da perplexidade da esquerda. O que os socialistas não conseguiram criar foi a forma de sociedade superior, efetivamente mais satisfatória, capaz de superar o capital no âmbito local e do planeta.
A estabilização atual -se é possível chamar assim o caos- decorre de vitórias reais do capital e do fracasso, com as qualificações devidas a cada caso, das experiências anticapitalistas, que amedrontam com razão. O que esteve em falta não foi disposição de luta e sacrifício, mas adequação e invenção histórica num sentido ele mesmo a descobrir, ao qual a tomada do poder não assegura o acesso. Como entrar nesses problemas discutindo formas simples de troca, ou, por outra, sem discutir as desigualdades internacionais em riqueza e força, os armamentos, a mercantilização extravagante de domínios da natureza antes preservados, as formas de repressão, a inculcação pela mídia, a manipulação das necessidades, as modalidades atuais da satisfação etc.?
O argumento de Giannotti circula entre esquemas marxistas da troca, idéias comensuráveis de outros filósofos e tendências conhecidas da sociedade contemporânea. Os esquemas de Marx configuram a razão, diante da qual as construções dos demais pensadores são insuficientemente complexas, cada uma à sua maneira. O confronto com o Marx político e com as aspirações da esquerda em geral tem resultados de mesma ordem. Em relação às tendências recentes do capitalismo, enfim, os esquemas marxistas funcionam como termos de contraste, reveladores da nova desmesura, com o que uma teoria que era a crítica de seu tempo troca de conotação e adquire sinal positivo.
É verdade que não há hipótese de o capitalismo voltar atrás, para os bons tempos em que o fetiche media alguma coisa, mas, enquanto este último seguir sendo aplicado, mesmo que já não meça nada -pensa Giannotti-, será sempre uma garantia contra a barbárie total. Seja como for, há em todos os momentos do livro um movimento de verificação do complexo pelo relativamente simples, que postula uma estranha posição de autoridade, a meia distância do real. Talvez a trincheira do professor de lógica, que a partir daí controla as teorias, as políticas e os desenvolvimentos do mundo mediante um metro escorado em Marx, que lhe permite dizer o que está certo e o que está errado, o que se pode e o que não se pode, sem jamais entrar no mérito das questões, sem discutir a especialidade no plano do especialista, ou seja, sem entrar em matéria. Por elaborada que seja, será que essa posição tem cabimento?
Para concluir, uma observação de crítico literário. Interessado em combinar Marx e Wittgenstein, Giannotti concebe o modo de produção capitalista como uma gramática das relações de trabalho. Será boa idéia? A gramática se aprende à custa de exercícios e reprovações. Ao passo que o funcionamento do capital, sem prejuízo de ser regrado, requer castigos de outra espécie, descritos por Marx no capítulo tremendo sobre a acumulação primitiva, ou singelamente explicitados no arsenal das grandes potências. Nos dois casos seguem-se regras, mas -e daí? Vistas as disparidades, não vale mais a pena distinguir que aproximar? Será o caso agora de chamarmos o desemprego de solecismo? O que se ganha ao apresentar o capital como o grande gramático de nosso tempo?
No livro de Marx, a figura correspondente seria o "sujeito automático", em que também está representada a engrenagem econômica operando sem direção consciente. Acho a figura melhor, pelo cunho fantasmagórico, de sinal negativo, e pela tarefa implícita de desalienação. Rebatendo o capital sobre a gramática, Giannotti inverte o rumo da crítica marxista. Esta procura trazer à luz a luta social por trás da ordem e das formas estabelecidas, tais como -suponhamos- a equidade das trocas entre capital e trabalho, ou a unidade linguística de um país. Ao passo que a assimilação à gramática mais encobre do que revela. No fim de contas, é um preciosismo do tipo que permite grandes efeitos a mestres do humor negro, como Kafka e Borges, sensíveis ao absurdo de dar nomes pacíficos à ordem atroz.
Como vêem, o livro despertou o meu ânimo discutidor, o que entre velhos amigos é a prova do sentimento vivo.

São Paulo, domingo, 04 de março de 2001


Notas
1. Citado em "Certa Herança Marxista", pág. 220. Cf. Karl Marx, "Grundrisse", Berlim, Dietz, 1953, pág. 593.
2. J.A. Giannotti, op.cit., pág. 308; ver também págs. 208 e 330-1.
3. Op. cit., pág. 208.
4. Segundo Giannotti, os frankfurtianos não se interessam pela dialética entre relações sociais de produção e desenvolvimento das forças produtivas (pág. 167). Ora, essa dialética não só está no centro da teoria da arte moderna de Benjamin e de Adorno como foram eles que consubstanciaram a sua relevância para a análise estética e ideológica de nossos dias.


Roberto Schwarz é ensaísta e crítico literário, autor de, entre outros, "Sequências Brasileiras" (Companhia das Letras) e "Um Mestre na Periferia do Capitalismo". O texto acima foi originalmente uma exposição feita no Instituto de Estudos Avançados da USP, em novembro de 2000, como parte de um debate sobre o livro "Certa Herança Marxista (Companhia das Letras). Participaram da mesa-redonda Bento Prado Jr., Gilberto Dupas (org.), Jacob Gorender, J.A. Giannotti e Roberto Schwarz. A íntegra dos trabalhos está sendo publicada na Coleção Documentos do IEA, USP, com título "A Herança Marxista na Era Global".

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