O neto corrige o avô (Giannotti x Marx)
por Roberto Schwarz
Peço licença para começar com uma história antiga. Algumas
décadas atrás, quando éramos moços, aqui o nosso Giannotti me
passou um trabalho que acabava de escrever. Li, gostei e disse
que havia achado claro. Ele ficou desapontado e respondeu que o
que estava fazendo agora era mais difícil.
É claro que não se tratava para ele de preferir o
incompreensível. Pelo contrário, Giannotti foi desde sempre um
soldado da razão. O que a anedota mostra é o seu desejo de
estar à frente, de se aventurar em áreas temíveis, que o comum
dos professores não frequenta, de pensar o impensado. Dizendo de
outro modo, Giannotti sempre teve a aspiração vanguardista, de
ser ponta-de-lança, de formar entre os descobridores e de
enfrentar as dificuldades correspondentes. Acho que a
transmissão militante desse impulso aos amigos e aos alunos, às
vezes até um pouco à bruta, é um dos melhores itens do
currículo dele. Eu mesmo sou beneficiário e vítima desse
ideal.
Pois bem, a iniciativa de formar um seminário para ler "O
Capital" de Marx em fins dos anos 50 -iniciativa importante
para a nossa geração universitária- teve muito a ver com essa
disposição vanguardista. A lembrança de Giannotti hoje não é
essa e no seu novo livro, "Certa Herança Marxista",
ele escreve que desde o começo estudou "O Capital"
como um clássico, quer dizer, como um livro sem consequência
especial para o presente. Com o perdão dele, penso que isso é
só meia verdade.
Naqueles anos, Giannotti voltara da França convertido às
exigências da leitura estruturalista, para nós uma novidade, e
é certo que convenceu os amigos a estudar Marx nessa
perspectiva, digamos, acadêmica. A idéia de entender o grande
crítico de nossa ordem social por meio de um método
a-histórico e descontextualizador não deixava de ser
surpreendente. Mas ela apaixonou o grupo e se mostrou muito
produtiva. De outro ângulo, contudo, do qual todos tinham
consciência, tratava-se de uma ação política em sentido
próprio.
Ao encarar Marx com os olhos de um doutorando, comprometido com
as razões do texto e mais nada, púnhamos em questão a leitura
doutrinária e inculcadora praticada pelo Partido Comunista, e
com ela a autoridade intelectual deste último -então ainda uma
grande presença, embora já em descompasso absurdo com o padrão
intelectual universitário e com a liberdade de pensar com a
própria cabeça. Noutras palavras, os seminários de Marx, que
em seguida pipocaram entre nós e em todo o mundo, foram uma das
inúmeras manifestações da formação de uma nova esquerda,
liberada do peso do stalinismo e do enquadramento soviético.
Também do ponto de vista da academia, a aposta no estudo de Marx
representava um passo antiacadêmico. Na época, a teoria
anticapitalista não fazia parte, por exemplo, do currículo de
ciências sociais. Os professores influentes do departamento eram
de esquerda, mas os clássicos eram Durkheim, Max Weber e Karl
Mannheim.
Talvez se possa dizer que o mergulho no teórico das
contradições, da crise e da superação do capitalismo vinha
responder a uma dinamização geral em curso, palpável na
radicalização do populismo e na presença crescente do
terceiro-mundismo e do antiimperialismo, que repolarizavam à
distância a vida intelectual. Assim, quando destrinchavam
"O Capital" e buscavam nele a inspiração para artigos
e teses de doutoramento, os jovens professores queriam trazer a
luta de classes e o antiimperialismo à frente também da cena
universitária, queriam rivalizar, a partir da universidade, com
os demais centros de elaboração ideológica no país, queriam
desbancar a sociologia do establishment e tinham, em linha com a
mania metodológica nacional, a ambição de estabelecer a
superioridade científica de Marx, da dialética e deles
próprios -ponto aliás em que se esperava muito do desempenho de
Giannotti.
Noutras palavras, acompanhando o curso das coisas, que se
precipitava em direção do enfrentamento de 1964, entrava em
pauta a transformação do mínimo e do máximo: mexer no
currículo do departamento, tomar conta do pedaço, meter a
colher no debate ideológico, intervir na política científica
e, mais remotamente, mudar a ordem social do próprio Brasil e do
mundo. Daí eu achar que Giannotti não conta a missa inteira ao
dizer que, para ele, Marx não era senão um clássico.
Aliás, nem o livro que estamos discutindo aqui é apenas
acadêmico. Muito de tudo isso que mencionei permanece ativo
dentro dele, embora noutro contexto e com significação mudada.
A exposição tumultuada e o ânimo vanguardista estão
incólumes. Quanto ao último, a linha condutora da exposição
consiste, penso que para surpresa de muitos, em demonstrar ainda
e sempre a superioridade de Marx -ou melhor, da certa herança
marxista do título- sobre os demais pensadores com que possa
haver comparação. Um programa paralelo ao dos anos 50, 60 e 70,
embora com diferenças.
Em termos ultra-sumários, digamos que um diagrama marxista da
reprodução do capital, reconstituído conforme o ângulo de
Giannotti, é sucessivamente confrontado com a dialética
idealista de Hegel, com a ponderação weberiana dos meios e dos
fins, com o jogo de linguagem de Wittgenstein, com a separação
entre ação técnica e comunicativa de Habermas, com a versão
primária do fetichismo própria aos frankfurtianos (amigamente
peço licença para achar esse capítulo uma catástrofe) e com a
ciência econômica de hoje. O marxismo sai fortalecido de todos
esses encontros, e nesse sentido Giannotti poderia dizer com
Sartre, tão fora de moda, que Marx é o horizonte insuperável
de nosso tempo.
Despachar um grande autor O miolo dessas argumentações
é sempre interessante, resultado de reflexão cerrada e tenaz.
Para o meu gosto são elas a melhor parte do trabalho e lamento
que sejam tão breves -10 ou 20 linhas, possivelmente muito
acertadas, para despachar um grande autor. No que dependesse de
mim, as proporções da apresentação estariam invertidas. As
longas reconstituições do argumento marxista se poderiam
sintetizar sem perda, ao passo que as dificuldades que as
colocações de Marx representam para o pensamento da
concorrência -se é cabível falar assim- deviam estar expostas
com amplitude, pois elas são um dos bons resultados críticos do
livro.
Dito isso, o adversário estratégico de Giannotti, via Marx, é
Marx ele mesmo. Um breve esquema da reprodução do capital,
preferido como sendo o núcleo válido e insuperado da
elaboração marxista, é dirigido contra o anticapitalismo de
seu autor. Assim, a certa herança marxista serve a Giannotti
para derrotar não só os demais teóricos da sociedade, como
também a política marxista, aquela que com ou sem revolução
visa à superação do capitalismo. De passagem são derrubados
também o jovem Marx e a dialética da natureza segundo Engels.
Esta a posição paradoxal que o novo livro de Giannotti procura
sustentar: um marxismo vitorioso, criticamente superior às
posições concorrentes, que entretanto implica a inviabilidade
da política marxista e do impulso de superar a ordem do
presente.
Em termos de itinerário político, esse resultado é menos
implausível e mais colado à história do que parece. Sem
prejuízo de estar na origem de revoluções que não deram certo
ou foram derrotadas, o marxismo tem se mostrado uma boa escola
para explicar a lógica dos imperativos do capital. A
dissociação entre esses dois aspectos, visto o seu êxito
desigual, é uma lição possível do curso das coisas. Como
ilustração, não custa lembrar que o presidente do Brasil, que
foi figura central do mesmo seminário, no momento se empenha em
modernizar o capitalismo no país. Digamos objetivamente que o
tempo de uma vida normal de nossa geração fez que se sucedessem
e misturassem, bem ou mal integrados, dentro das mesmas cabeças,
momentos de crítica incisiva ao capitalismo e outros de crítica
a essa mesma crítica.
Nesse quadro, a saída que Giannotti procurou é inesperada: ele
explica os desastres do socialismo como decorrência necessária
não da crítica marxista à ordem burguesa, como faz a direita,
mas da desobediência às estipulações, acertadas e
insuperadas, contidas na construção da racionalidade moderna
operada pelo mesmo Marx, no caso o economista, ao descrever o
funcionamento do capital.
É um resultado desconcertante, que entretanto tem o mérito de
absorver, com esforço de integração intelectual, uma
experiência histórica. Marx talvez não apreciasse a glória
que Giannotti lhe reserva, mas isso é inessencial e aliás não
o surpreenderia, pois ninguém mais que ele serviu a propósitos
que não estavam no programaPara falar de movimentos análogos em
outro plano, todo crítico de arte sabe da legitimidade de voltar
as obras contra as intenções do autor, ou de opor umas às
outras as partes de um trabalho, como as boas às más, ou como a
verdade à mentira.
Ainda assim, embora não haja nada de errado em contrapor Marx a
Marx, há algo de excessivo em fazer dele o ferrolho teórico do
edifício do capital. Algo como procurar na obra de Freud a
apologia dos remédios antidepressivos e a condenação da
psicanálise. Nada é impossível, mas... Onde os críticos do
capitalismo permanecem fiéis a suas aspirações e interrogam as
razões dos desastres das experiências socialistas, tratando de
rever à sua luz a insuficiência da construção marxista do
processo, o marxista estrito, na versão Giannotti, busca em Marx
o argumento para demonstrar que a superação do capitalismo leva
à barbárie.
Para delimitar a atualidade, Giannotti recorre ao passo genial
dos "Grundrisse" (1857), onde Marx antecipa a
automação e a correspondente dissolução das categorias
básicas do capitalismo. Com a integração regular da pesquisa
científica ao processo produtivo, em especial ao novo
maquinário -anota Marx-, a parte agregada ao produto pelo
trabalho propriamente operário, ou pelo trabalho abstrato,
perderá em significação. Um definhamento de mesma ordem
afetará a lei do valor-trabalho e a realidade da classe
operária.
No século e meio que passou, esses desenvolvimentos de fato se
verificaram, embora com ponto de chegada diferente do previsto,
pois o comunismo não resolveu os problemas da humanidade, nem o
fetichismo do capital se dissipou, ou não foi dissipado. Embora
tornada absurdamente mesquinha em relação à substância do
processo em curso, a forma mercantil permanece em vigor, como a
mediadora universal, e com ela os pressupostos atomizantes e
ilusórios da troca justa das mercadorias "pelo seu
valor". Os trabalhadores continuam obrigados a vender
individualmente a sua força de trabalho, como se houvesse
proporção entre esta e os resultados gerais da produção, e os
produtos continuam a ser apropriados por meio do mercado, no qual
buscam quem os possa comprar, como se o processo produtivo não
estivesse socializado.
Na obra de Marx, esses argumentos figuram entre numerosos outros
e procuram captar a contradição em processo, a expansão do
capital em muitas frentes, rompendo limites e urgindo a própria
superação. O conjunto parece dominado por um ponto de fuga
comum, para o qual os vetores convergem. Pois bem, ao transformar
as mesmas formulações em diagnóstico do presente, à luz do
colapso do socialismo, Giannotti faz com que elas participem de
um dinamismo diverso.
No prognóstico de Marx, quem fazia água por todos os lados era
o capital. Para o leitor de hoje, advertido pela história
recente, os aspectos que se destacam no argumento são outros.
Lá está, pedindo para ser notada, a perda de substância do
proletariado relativamente às combinações que comandam a nova
produtividade social. Ou seja, o agente histórico da superação
perde força justamente quando a crise das formas capitalistas se
acentua. De outro ângulo, nesse modelo o avanço da crise vem
acompanhado do arrefecimento da luta de classes: com o
"colapso (d)a produção apoiada sobre o valor de troca, o
processo de produção material despe-se ele próprio da forma da
necessidade premente e do antagonismo" (1).
Assim, ao acompanhar e construir o processo por vários lados,
Marx dava elementos para a compreensão também de outros
desfechos, não visados, mas possíveis. Meio teorizado, meio
constatado, esse é o horizonte hoje comum aos leitores de
formação marxista. É aí que se situa a reflexão de
Giannotti.
Por momentos, com zelo um pouco deslocado no tempo, ela denuncia
o messianismo dogmático do homem que quis realizar a filosofia e
que via a história como a marcha inelutável para o comunismo.
É sabido que há nos escritos de Marx as citações que permitem
a construção desse personagem. Entretanto basta um pouco de
contextualização histórica, na minha opinião, para que
também essa figura conte entre os heróis do pensamento
crítico, e não entre os fanáticos.
Dito isso, no principal o livro de Giannotti discute esquemas do
Marx da maturidade, que buscam reconstruir, em grau de
complexidade assombroso, a léguas de qualquer parcialidade
primária, o ciclo da reprodução contraditória do capital.
Fazem parte estrutural desta as tendências à auto-superação,
bem como as contratendências. A conhecida parcimônia de Marx na
descrição do socialismo mostra que ele o via como algo novo,
que não se podia deduzir do passado, no qual contudo estava
baseado. Algo possível, digamos, mas não um desdobramento
automático.
Instruído pelos acontecimentos, Giannotti vai se concentrar nas
contratendências que apontam, seja para as dificuldades da
passagem ao socialismo, seja para a impossibilidade dela, seja
para o perigo que ela representa. Até onde posso ver, há
oscilação entre os três pontos de vista. Os dois primeiros
são interessantes, e o terceiro, por estar expresso em
lugares-comuns da retórica anticrítica, é uma concessão ao ar
do tempo.
Em plano paralelo, a passagem a uma forma superior de sociedade
vem ligada à discussão sobre o bem-fundado da dialética, ou
sobre o estatuto real da contradição. Contra as teorias mais ou
menos positivistas, que vêem nesta um fato apenas do discurso,
sem contrapartida no mundo, Giannotti dá razão a Hegel e Marx:
em particular atrás do dado econômico, que não é último,
existem contradições em processo, que cabe à crítica
desvendar e que abrem novas possibilidades lógicas e práticas
(ou seja, o socialismo). Por outro lado, Marx tem razão contra
Hegel quando acompanha a contradição em seus labirintos e
desencontros, desvencilhando-a do esquema de superações
inelutáveis da lógica especulativa. Esta a diferença entre a
dialética materialista e a idealista. Não obstante, levado pelo
engajamento revolucionário, Marx aposta na possibilidade -ou
certeza- da superação e "impregna todo o seu projeto
político daquele misticismo lógico que denunciara na teoria
hegeliana do Estado" (2).
Resíduo hegeliano Isso posto, não fica claro para o
leitor se a superação do capitalismo, que é sim contraditório
segundo Giannotti, deve ser vista como um possível ou como um
impossível. Está claro que ela não está inscrita no
automatismo das coisas, que entretanto a solicitam. Isso faz dela
um resíduo hegeliano e um erro de lógica? Por que não uma
oportunidade real, derrotada no campo dos fatos? Ou, ainda, uma
aspiração a que o capitalismo não cessa de alimentar, embora
lhe modifique os termos? A exposição é vacilante nesses pontos
decisivos. E por que não inverter a direção do raciocínio e
imaginar que as próprias idéias hegelianas de contradição e
superação tenham algo a ver com os movimentos da sociedade
contemporânea? É a hipótese materialista, ausente do livro.
Quanto às dificuldades e impossibilidades, Giannotti as
configura a partir de especificações do esquema da crise
segundo Marx. Para este, como se sabe, o desenvolvimento das
forças produtivas a certa altura entra em contradição com as
relações de produção: aquelas socializam-se mais e mais, ao
passo que estas acentuam a sua polarização, ensinando à classe
trabalhadora a injustiça da ordem do capital e a possibilidade
de uma ordem social superior. Ao analisar o detalhe do processo,
Giannotti assinala os seus momentos baralhados, não-finalistas,
que não se acomodam ao ritmo ascensional de cisão e
conciliação, de antítese e síntese.
Assim, quando o trabalhador contrata a venda de sua força de
trabalho, acata em ato o fetichismo da forma mercantil, ou seja,
a suposição da troca equitativa entre proprietários,
formalmente iguais. Por outro lado, a necessidade natural que o
empurra a vender -a pressão da fome- é resultado do processo
histórico violento que o separou dos meios de produção. Noutro
plano, o trabalho, sem o qual não há salário nem
sobrevivência, é visto pelo trabalhador como momento de uma
atividade coletiva, em que há associação, e não oposição, a
um capitalista. O trabalhador vê-se também associado a outros
trabalhadores, que entretanto são seus concorrentes na venda de
mão-de-obra.
Sem prejuízo de serem ilusões, decorrentes do fetichismo do
capital, esses ângulos coexistentes e incompatíveis têm
existência objetiva e não há como desconhecê-los. Por si
sós, não se anulam, não se hierarquizam e não empurram em
direção de uma compreensão abrangente do processo produtivo,
uma compreensão que o fizesse ver em sua grandes linhas,
suscitando a consciência de classe correspondente e desmanchando
o fetiche econômico. Esse complexo de pontos de vista
desencontrados seria relativamente estável se não fosse
sacudido pelas crises, que põem a nu a estrutura antagônica da
ordem capitalista. Mas também a crise não é unívoca e as
práticas a que ela induz vão em várias direções, não
gerando "as prefigurações consistentes" de um novo
sistema (3). Entre os fatores de crise estão a já mencionada
incorporação regular da ciência à produção bem como a
monopolização do fluxo da inovação técnica pelas grandes
empresas. Cada uma à sua maneira, as duas tendências clivam
estruturalmente o mundo do trabalho, acentuando a sua
heterogeneidade e operando, assim, em sentido oposto ao de uma
consciência de classe unificadora.
Que pensar desses resultados? O caráter inconclusivo da
consciência individual e espontânea dos trabalhadores não é
uma novidade. Os partidos operários foram criados justamente
para ultrapassar essa ordem de limitações, para trazer à vida
consciente a dimensão social -quer dizer, desfetichizada- do
processo de produção moderno, com as possibilidades que lhe
correspondem. Qual o propósito então de estudar em separado a
venda individual da força de trabalho e de fazer dela, e de suas
perspectivas desencontradas, a instância decisiva da
socialização dos sujeitos?
Por que fazer abstração dos elos mediadores -intelectuais,
organizacionais, legais, institucionais etc.-, que são as
conquistas culturais e políticas que permitem ao trabalhador a
atuação coletiva? Do ponto de vista do argumento de Giannotti,
trata-se de demonstrar que os funcionamentos elementares do
capitalismo socializam o trabalhador segundo regras discordantes,
que não levam à formação de uma consciência de classe
consistente. Ou ainda, que a formação de um agente social capaz
de superar o capitalismo é uma idéia ilusória, sem fundamento
nas "coisas" -coisa, aqui, no sentido "sensível e
supra-sensível" analisado por Marx na teoria do fetichismo.
A verossimilhança do argumento tem vários apoios. Um é o tom
radical-filosófico do raciocínio, que abandona as
exterioridades e vai ao núcleo duro da troca mercantil, a
matéria primeira contra a qual as toneladas de ideologia
ulterior -e de conquistas sociais?- nada podem. Dizendo de outra
maneira, trata-se do primado irreversível do fetiche sobre a
desfetichização.
A esse respeito, note-se que dificilmente ocorreria a alguém,
num momento de alta da luta popular, fazer do diagrama da troca
individual uma chave da história contemporânea. Como a luta
popular está em baixa, digamos que a supressão das mediações
sociais na teoria coincide com a sua atual supressão na
prática, que resultou da vasta vitória do capital sobre o
trabalho organizado em nosso tempo, à qual não faltou o lado da
guerra ideológica, inclusive universitária. Isso não quer
dizer que estejamos diante do enfrentamento cru entre capital e
trabalho, à moda antiga, e que as mediações sociais tenham
desaparecido: elas apenas trocaram de lado e de intenção.
Como supor que os esquemas mentais envolvidos na troca mercantil
simples estejam determinando, de modo imediato, as fraquezas da
consciência operária atual? Eles são a sua pauta
deliberadamente inculcada, o que é outra coisa; um conteúdo, e
não a forma. Observe-se, entre parêntesis, que o mecanismo de
determinação da consciência pela prática, tal como concebido
por Giannotti, sendo engenhoso e original, é mais estreito e
menos explicativo que o corrente, do marxismo vulgar, orientado
pela tipologia das classes. Divergindo deste, foi a teoria
frankfurtiana da indústria cultural, de que Giannotti não
gosta, que ergueu a problemática marxista ao patamar das forças
produtivas de nosso tempo, o que lhe permitiu estar mais próxima
da experiência atual, além de mais afinada, em chave de rumo
desastroso, com as antecipações de Marx (4).
A TV no momento tem força para convencer até mesmo os
excluídos de que o peru de natal da marca X é uma riqueza da
vida deles. Onde está a troca entre proprietários? A máquina
socializadora dos sujeitos no caso é outra, bem mais
"moderna" e menos liberal. Acontece que essa potência
social, quer dizer, uma força amplamente associada, refletida e
coordenada, é toda ela dedicada a reconfirmar no público as
evidências curtas e anti-sociais da propriedade mercantil,
também onde elas não têm pé nem cabeça. Nesse sentido, a
opção argumentativa de Giannotti pelas estruturas elementares,
destinada à crítica de ilusões da esquerda, está em sintonia
com o martelo ideológico do capital.
A socialização contraditória pela forma-mercadoria é com
certeza um grande assunto. Entretanto, ao estender uma linha
direta entre os seus esquemas elementares e os impasses da
passagem ao socialismo, penso que Giannotti força a mão. Cria
também uma perspectiva a meu ver irreal. Ficamos com a
impressão de que não houve nos últimos 150 anos luta de
classes acirrada nem revoluções, impressão que está errada e
que desvia do essencial da perplexidade da esquerda. O que os
socialistas não conseguiram criar foi a forma de sociedade
superior, efetivamente mais satisfatória, capaz de superar o
capital no âmbito local e do planeta.
A estabilização atual -se é possível chamar assim o caos-
decorre de vitórias reais do capital e do fracasso, com as
qualificações devidas a cada caso, das experiências
anticapitalistas, que amedrontam com razão. O que esteve em
falta não foi disposição de luta e sacrifício, mas
adequação e invenção histórica num sentido ele mesmo a
descobrir, ao qual a tomada do poder não assegura o acesso. Como
entrar nesses problemas discutindo formas simples de troca, ou,
por outra, sem discutir as desigualdades internacionais em
riqueza e força, os armamentos, a mercantilização extravagante
de domínios da natureza antes preservados, as formas de
repressão, a inculcação pela mídia, a manipulação das
necessidades, as modalidades atuais da satisfação etc.?
O argumento de Giannotti circula entre esquemas marxistas da
troca, idéias comensuráveis de outros filósofos e tendências
conhecidas da sociedade contemporânea. Os esquemas de Marx
configuram a razão, diante da qual as construções dos demais
pensadores são insuficientemente complexas, cada uma à sua
maneira. O confronto com o Marx político e com as aspirações
da esquerda em geral tem resultados de mesma ordem. Em relação
às tendências recentes do capitalismo, enfim, os esquemas
marxistas funcionam como termos de contraste, reveladores da nova
desmesura, com o que uma teoria que era a crítica de seu tempo
troca de conotação e adquire sinal positivo.
É verdade que não há hipótese de o capitalismo voltar atrás,
para os bons tempos em que o fetiche media alguma coisa, mas,
enquanto este último seguir sendo aplicado, mesmo que já não
meça nada -pensa Giannotti-, será sempre uma garantia contra a
barbárie total. Seja como for, há em todos os momentos do livro
um movimento de verificação do complexo pelo relativamente
simples, que postula uma estranha posição de autoridade, a meia
distância do real. Talvez a trincheira do professor de lógica,
que a partir daí controla as teorias, as políticas e os
desenvolvimentos do mundo mediante um metro escorado em Marx, que
lhe permite dizer o que está certo e o que está errado, o que
se pode e o que não se pode, sem jamais entrar no mérito das
questões, sem discutir a especialidade no plano do especialista,
ou seja, sem entrar em matéria. Por elaborada que seja, será
que essa posição tem cabimento?
Para concluir, uma observação de crítico literário.
Interessado em combinar Marx e Wittgenstein, Giannotti concebe o
modo de produção capitalista como uma gramática das relações
de trabalho. Será boa idéia? A gramática se aprende à custa
de exercícios e reprovações. Ao passo que o funcionamento do
capital, sem prejuízo de ser regrado, requer castigos de outra
espécie, descritos por Marx no capítulo tremendo sobre a
acumulação primitiva, ou singelamente explicitados no arsenal
das grandes potências. Nos dois casos seguem-se regras, mas -e
daí? Vistas as disparidades, não vale mais a pena distinguir
que aproximar? Será o caso agora de chamarmos o desemprego de
solecismo? O que se ganha ao apresentar o capital como o grande
gramático de nosso tempo?
No livro de Marx, a figura correspondente seria o "sujeito
automático", em que também está representada a engrenagem
econômica operando sem direção consciente. Acho a figura
melhor, pelo cunho fantasmagórico, de sinal negativo, e pela
tarefa implícita de desalienação. Rebatendo o capital sobre a
gramática, Giannotti inverte o rumo da crítica marxista. Esta
procura trazer à luz a luta social por trás da ordem e das
formas estabelecidas, tais como -suponhamos- a equidade das
trocas entre capital e trabalho, ou a unidade linguística de um
país. Ao passo que a assimilação à gramática mais encobre do
que revela. No fim de contas, é um preciosismo do tipo que
permite grandes efeitos a mestres do humor negro, como Kafka e
Borges, sensíveis ao absurdo de dar nomes pacíficos à ordem
atroz.
Como vêem, o livro despertou o meu ânimo discutidor, o que
entre velhos amigos é a prova do sentimento vivo.
São Paulo, domingo, 04 de
março de 2001
Notas
1. Citado em "Certa Herança Marxista", pág.
220. Cf. Karl Marx, "Grundrisse", Berlim, Dietz, 1953,
pág. 593.
2. J.A. Giannotti, op.cit., pág. 308; ver também págs.
208 e 330-1.
3. Op. cit., pág. 208.
4. Segundo Giannotti, os frankfurtianos não se interessam
pela dialética entre relações sociais de produção e
desenvolvimento das forças produtivas (pág. 167). Ora, essa
dialética não só está no centro da teoria da arte moderna de
Benjamin e de Adorno como foram eles que consubstanciaram a sua
relevância para a análise estética e ideológica de nossos
dias.
Roberto Schwarz é ensaísta e crítico literário, autor de, entre outros, "Sequências Brasileiras" (Companhia das Letras) e "Um Mestre na Periferia do Capitalismo". O texto acima foi originalmente uma exposição feita no Instituto de Estudos Avançados da USP, em novembro de 2000, como parte de um debate sobre o livro "Certa Herança Marxista (Companhia das Letras). Participaram da mesa-redonda Bento Prado Jr., Gilberto Dupas (org.), Jacob Gorender, J.A. Giannotti e Roberto Schwarz. A íntegra dos trabalhos está sendo publicada na Coleção Documentos do IEA, USP, com título "A Herança Marxista na Era Global".