Thomas Meyer
Feminismo e Física? Comentário ao texto de Heinz-Jürgen Voß "Problemas de género – Judith Butler no mundo de língua alemã"
Há alguns anos que se fala cada vez mais de feminismo materialista. Inicialmente sobretudo em demarcação e crítica de um feminismo que se foca na análise do discurso e entende o género principalmente como um acto performativo. As condições materiais da vida, ou seja, as situações (psico-)sociais e reprodutivas das mulheres não são consideradas. É claro que muitas vezes se esquece aqui que críticas deste tipo já existiam nos anos 90, na época do surgimento dos estudos de género e do queer (cf. Soine 1999, Selders 2003, Scholz 1992). Outro motivo de crítica é o "asselvajamento ideológico" repetidamente evidente na cena pós-estruturalista e queer. Por exemplo em posições anti-sionistas, que chegam ao ponto de mostrar uma compreensão parcial pelos atentados bombistas suicidas (cf. por exemplo, Rabuza 2017).
No discurso filosófico, também se fala de um novo materialismo. Também aqui há um afastamento do paradigma pós-estruturalista que se concentra no discurso e exclui o nível material, ou seja, a natureza como uma realidade objectiva obstinada (cf. Goll; Keil; Telios 2013, sobre a crítica do novo materialismo, cf. também Scholz 2018 e Hennig 2016). A razão para uma "mudança de paradigma" é sem dúvida a destruição da natureza e a catástrofe climática.
Algumas posições que se contam entre o feminismo materialista estão documentadas nos volumes da chamada "Série Gritante" da editora Querverlag. Merece ser mencionado, por exemplo, o volume Beißreflexe (2017) [Reflexões mordazes], editado por L'Amour LaLove, que causou sensação há alguns anos atrás. O seu conteúdo inclui uma crítica às tendências autoritárias na 'cena' feminista queer. Também se critica que a cena queer não critique as identidades, mas queira vê-las inflacionadas e 'reconhecidas' a todo custo, evitando assim uma crítica do todo social. Já em 2003, Beate Selders observou que "o todo social [...] está [a desintegrar-se] num conglomerado de opressões postas lado a lado e [...] cada vez mais dispersas. Há as enumerações mais absurdas de maldades lado a lado e em pé de igualdade: Sexismo, racismo, classismo, agismo (discriminação com base na idade), lookism (discriminação com base em falta de beleza), hairism (discriminação com base em pêlos corporais atípicos do sexo) etc. [...] O sistema global do modo de produção capitalista só pode ser entendido como discriminação com base na origem de classe ou numa diferença de rendimento entre os membros da comunidade. [...] De acordo com este ponto de vista, uma perspectiva política já só pode consistir numa continuação interminável da política antidiscriminação" (Selders 2003, 87s., ênfase TM).
Heinz-Jürgen Voß, que ele próprio pode ser localizado no espectro queer-feminista, publicou agora um artigo (Voß 2020) no qual pretende apresentar objecções críticas ao feminismo materialista. Ele conta entre as feministas materialistas "Roswitha Scholz, Andrea Trumann, e Tove Soiland" (p. 5). As suas posições estariam claramente expressas na "popular publicação científica (!) Feministisch Streiten" (ibid., ênfase no original), editada por Koschka Linkerhand. Diz que estas feministas, "relacionam as mulheres com características físicas e fisiológicas supostamente 'naturais'" (ibid.). Depois Voß afirma que no seu materialismo elas aderem a um conceito ultrapassado de matéria: "'Materialismo' para elas está essencialmente ligado a um conceito ultrapassado de matéria, que denota uma materialidade tangível e – em última análise – reduz o 'ser mulher' a uma vulva palpável e a uma função de procriação" (ibidem.).
Enquanto em seu livro "Making Sex Revisited" (2011) Voß ainda usava a genética para fornecer uma justificação biológica para a diversidade de género queer (cf. Meyer 2019, 208s.), neste artigo ele invoca a física para emprestar argumentos à sua posição. No entanto, ele não vai além de uma "frouxa associação" de "fragmentos de discurso" da física, que nada têm a ver com o assunto em questão, ou seja, a discussão de posições feministas, nem contribuem com nada de esclarecedor.
Voß insinua que as feministas materialistas representam um conceito de matéria que está ultrapassado pela física moderna e que, portanto, seria preciso aprender a física moderna. Ao contrário do que se poderia esperar, ele não se refere aqui à física quântica, mas sim à teoria da relatividade, ficando em aberto se se refere mais à teoria da relatividade especial ou à teoria da relatividade geral. Sua referência à famosa fórmula E=mc2 (a equivalência massa-energia) sugere a primeira, a imagem da maçã em queda, mais que a segunda. O que, então, a física moderna tem a oferecer na via da inspiração para a crítica feminista? Ele assume que a teoria da relatividade de Einstein já não tem um conceito de matéria no sentido de uma "materialidade tangível": "Seguindo a teoria da relatividade, a ideia de matéria como uma ‘materialidade tangível’ foi abandonada; em vez disso, com a equação E= mc2 (energia=massa*aceleração ao quadrado) [sic!!!], que também é popularmente conhecida, chega-se a uma ideia de processualidade. [...] Tanto a física actual como o materialismo moderno na tradição marxista [?] não partem, portanto, de uma simples 'materialidade', mas olham para contextos relacionados com a natureza e com a sociedade de uma forma processual; levam em conta as diferentes variáveis do desenvolvimento de, por exemplo, uma posição social oprimida ou mecanismos de opressão [...]" (5s., destaque no original).
Quem não tem nenhuma ideia sobre física deve informar-se com antecedência lendo os manuais apropriados (como Falkenburg 1995 e Boblest/Müller/Wunner 2016) ou pelo menos ser capaz de copiar correctamente da Wikipedia. As observações de Voß são um irritante banquete oferecido a pessoas como Alan Sokal (cf. Meyer 2020).
É completamente errado negar a "processualidade" da física clássica. Já a partir do sentido literal da palavra, a física clássica conhece a processualidade (pense-se também nos diferentes procedimentos técnicos da termodinâmica ou em todas as quantidades dependentes do tempo). A teoria da relatividade especial não refuta a física newtoniana, mas, para ser mais preciso, restringe o seu âmbito de validade. A percepção crucial que resume a teoria da relatividade especial é o facto contra-intuitivo (ou seja, ao contrário da experiência quotidiana) da constância da velocidade da luz no vácuo (andar para frente num comboio que avança: que velocidade se tem em relação à paisagem: uma velocidade maior que a do comboio ou a mesma? – Um raio de luz teria a mesma). As consequências são a dilatação do tempo e a contracção da duração para os observadores que se movem uns em relação aos outros, o que no entanto só se tornaria "perceptível" a velocidades muito elevadas. Para o "mundo social" a teoria da relatividade é, portanto, simplesmente irrelevante (excepto para coisas como o GPS e a fissão nuclear).
Se alguém se quer informar sobre o "conceito de matéria" na física moderna, a teoria quântica é o endereço mais próximo (cf. Falkenburg 1995; 2013). Segundo ela, não se pode falar de átomos e partículas elementares como se fossem "coisas", como se tivessem uma "substância", uma substância no sentido de uma "identidade permanente", no sentido de que as propriedades de uma coisa são acrescentadas à coisa. Existem propriedades mensuráveis, tais como carga, massa, spin e similares, mas não existe um portador dessas propriedades. Não há nenhuma substância ou ideia por detrás das "aparências" a que estas propriedades acidentalmente se associariam (cf. March 1964, 56ss. e Friebe et al 2015, 7ss.). (1) Esta é a consequência do facto de as propriedades medidas de, por exemplo, um electrão, dependerem da configuração experimental escolhida (se se quer usá-lo para medir, por exemplo, propriedades de ondas ou de partículas). Da teoria quântica decorre que também restringe a validade da física newtoniana: Assim, pode muito bem dizer-se de uma bola de bilhar que tem uma existência de coisa, ou seja, uma "materialidade tangível", mas não de um electrão.
Certamente que é bom saber tudo isso, mas por que se deve sabê-lo quando se trata de criticar o patriarcado produtor de mercadorias? Não fica claro, portanto, por que o conhecimento da física moderna deveria ser necessário para uma crítica feminista que analise as situações sociais e assuma as mudanças sociais e a processualidade da sociedade no sentido de um "realismo dialéctico" (cf. Scholz 2009). (2)
Voß, como outros, é de opinião que já ao dividir as pessoas em dois sexos se encontra a causa da hierarquização dos sexos, "afirma-se que em qualquer bipolaridade é sempre estabelecido um como norma e o outro como hierarquicamente derivado dela" (Selders 2003, 65), razão pela qual a bissexualidade biológica é um problema tão grande para Voß (cf. Voß 2011 e Meyer 2019, 208s.). Isto obviamente também afecta a sua avaliação da "materialidade" do corpo feminino. Se as feministas pretendem criticar o patriarcado não só teoricamente, mas também intervir precisamente onde as mulheres ou meninas sofrem e são subjugadas patriarcalmente, ou seja, precisamente onde o corpo feminino desempenha um papel muito importante em termos de uma "materialidade tangível", nomeadamente nos direitos reprodutivos, na mutilação genital feminina etc., seria sem dúvida disparatado e cínico apontar às vítimas do patriarcado que elas estão "ligadas a uma noção ultrapassada de matéria" (Voß 2020, 5). Da afirmação da 'materialidade' do corpo feminino, não se segue de modo nenhum uma unificação ou 'essencialização' psicossocial específica de género, nem de modo nenhum uma mulher seria assim "reduzida a uma vulva palpável e a uma função de procriação" (ibid.). Suas conclusões são meras afirmações, e certamente não têm nada a ver com as posições feministas de Scholz ou de Linkerhand etc. (embora Voß no texto não ache de todo necessário expor essas posições, cf. por contraste Scholz 2011, 2009, Mohs & Linkerhand 2013, Linkerhand 2019).
Assim, por exemplo, Mohs e Linkerhand escrevem na conclusão do seu artigo Naturalmente social? – Reflexões sobre Trabalho, Natureza e Género: "Determinámos o género como um conceito-limite porque a natureza dominada do sujeito burguês encontra a sua forma de movimento na relação de género patriarcal. O género deve, portanto, ser entendido como o produto da naturalização do social, que por sua vez emerge do processo específico de metabolismo com a natureza. A este respeito, os caracteres de género devem ser criticados como socialmente constituídos. Mas precisamente porque a relação entre sociedade e natureza deve ser conceptualizada numa perspectiva materialista, a natureza tem de ser pensada como algo independente da sociedade e oposta a ela. Se isso não acontecer, tiramos o terreno debaixo dos pés do processo metabólico humano. Como a reprodução do ser humano faz parte deste processo, pode supor-se que o género também tem inerentes momentos não sociais, indisponíveis. Além disso, pode dizer-se que estes têm sempre algo a ver com reprodução, procriação e afins. É impossível querer determinar com precisão as partes naturais, porque só temos acesso socialmente mediado à natureza [...] Não é a natureza, falsamente pensada como estática, que impõe às pessoas a sua relação ambivalente com o corpo e a identidade de género. A sociedade transformou o constrangimento natural que antes tornava a vida difícil; ninguém mais é directamente determinado por factos biológicos. [...] A culpa pelo facto de o género ainda dividir a humanidade como uma "rocha básica" (Freud) reside no contexto social coercivo, que poderia ser alterado, mas que foi recalcado no inconsciente juntamente com a natureza corporal e é por isso ideologicamente transfigurado. Se uma mulher ainda hoje morre no parto, já não se trata certamente da maldição da feminilidade (biológica). Pelo contrário, devem ser acusadas as circunstâncias que negaram o seu tratamento médico, por razões de custo ou de ideologia" (Mohs & Linkerhand 2013, 47s.).
Segundo Voß, justamente tais posições resultariam numa (re)naturalização. Antes se pode acusar Voß de querer justificar a diversidade de género queer, ou algo semelhante, com a ajuda da genética e de uma física assumida associativamente. Assim, Voß conclui seu artigo com as palavras: "O que me parece importante no desenvolvimento futuro [da teoria queer, TM] é que as características fisiológicas e físicas não se percam de vista e que continue a haver – e ainda mais claramente – uma conexão com o conhecimento científico. Há muito potencial aqui que ainda não foi 'explorado' – neste contexto, será crucial não renaturalizar o social, mas conectá-lo ao recente conceito processual de matéria" (ibidem, 10).
Para futuros artigos sem sentido, portanto, pode sugerir-se a Voß que não só consulte a física moderna disponível há um século, mas também se volte para domínios mais recentes, como a teoria de campo quântico (ou seja, aquelas teorias que reúnem física quântica e teoria da relatividade especial), onde "nem mesmo as possibilidades de interpretação estão claramente sobre a mesa" (Kuhlmann 2013, 205, ênfase no original). As melhores condições, portanto, para fornecer ao feminismo munições contra o patriarcado, com a ajuda dos mais modernos "conceitos de matéria".
Bibliografia
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Voß, Heinz-Jürgen: Making Sex Revisited – Dekonstruktion des Geschlechts aus biologisch-medizinischer Perspektive [Making Sex Revisited – Desconstrução do género numa perspectiva biológico-médica], 3. Aufl., Bielefeld 2011.
(1) Assim, com a física quântica são desmantelados 2500 anos de filosofia 'ocidental'.
(2) Quando se trata de temas "especiais", como a crítica da tecnologia, a saúde, as alterações climáticas etc., então o conhecimento das ciências naturais e possivelmente também da física moderna já é certamente útil e necessário.
Original Feminismus und Physik? Kommentar zu Heinz-Jürgen Voß’ »Das Unbehagen der Geschlechter – Judith Butler im deutschsprachigen Raum« in: www.exit-online.org. Publicado inicialmente em versão ligeiramente reduzida em Sexuologie – Zeitschrift für Sexualmedizin, Sexualtherapie und Sexualwissenschaft, Bd. 27 Heft 3/4, 2020. Tradução de Boaventura Antunes