Atenção Plena como propaganda e narcótico
Thomas Meyer
1. A submissão como liberdade: para a felicidade no “melhor dos mundos” (Cândido/Voltaire)
No regime neoliberal as pessoas são obrigadas a ver-se a si mesmas como empresárias da sua força de trabalho, de modo a poderem satisfazer sempre os imperativos do mercado, com o objectivo de se submeterem “autodeterminadamente” ao processo de valorização capitalista e aos seus constrangimentos. Nas democracias ocidentais esta auto-escravização é entendida como liberdade. A democracia neste caso mais não significa do que o facto de todos estarem formalmente sujeitos à mesma liberdade coerciva. O neoliberalismo foi apenas a última etapa da “jaula da servidão” (Max Weber) que o capitalismo sempre foi (cf. Kurz 1999). No “patriarcado produtor de mercadorias” (Roswitha Scholz), a liberdade de personalidade é tão livre como a constrição de um espartilho. Temos de nos adaptar exactamente às exigências do mercado, pelo que temos a liberdade de tirar o ar por nossa própria responsabilidade. Cada um tem a liberdade de lutar pela sua própria felicidade, o que implica nada mais nada menos do que o fracasso, o atraso e o insucesso são também da responsabilidade de cada um. O sucesso e o fracasso, o sofrimento e o stress são privatizados. Através da subjectivização o indivíduo é lançado sobre si próprio no neoliberalismo. As estruturas sociais são desvanecidas, o pensamento e a acção colectivos são negados ou suprimidos. A luta colectiva e a solidariedade parecem impossíveis. Ser flexível e permanecer resiliente é a liberdade forçada de cada indivíduo (ver Graefe 2019). As consequências para a saúde tornam-se culpa privada. As pessoas alegadamente comeram os alimentos errados e fizeram muito pouco exercício. De acordo com a propaganda neoliberal, isto também é da exclusiva responsabilidade do indivíduo e não do stress causado pelo trabalho e pela restrição da “liberdade de escolha” devido aos baixos rendimentos (cf. Mayr 2021). As doenças tornam-se um problema puramente médico. As chamadas doenças da civilização, como as doenças cardiovasculares, têm muito a ver com o facto de muitas pessoas estarem permanentemente “a 180” ou terem de estar, o que fisiologicamente resulta num aumento da tensão arterial. As consequências a longo prazo de uma tensão arterial mais elevada são danos nos vasos sanguíneos, o que contribui maciçamente para as doenças cardiovasculares (ver Cechura 2018). Consequentemente as doenças mentais também se tornam uma doença privatizada, as suas causas estão supostamente localizadas no próprio cérebro e não nas circunstâncias da vida, de modo que a cura, de acordo com o materialismo vulgar neurocientífico, deve ser o consumo de drogas psicotrópicas (cf. Schleim 2021 & Hasler 2023).
Ora esta “viagem a Jerusalém”, a que todos estão mais ou menos expostos no regime capitalista e que é vendida como liberdade pela propaganda dominante, não tem necessariamente de terminar no hospital psiquiátrico ou na morgue. Mas a concorrência universal leva a que cada vez mais pessoas sejam esmagadas por ela, o que tem consequências psicossociais e sanitárias. Os sujeitos afectados pelo capitalismo, sobretudo na solidão e no isolamento, tentam no entanto “de algum modo” processar o que lhes acontece. Existe muita literatura de aconselhamento e cursos pagos para ajudar os indivíduos a lidar consigo próprios e com o mundo: Basta acreditar em si próprio, pensar positivamente, ser optimista, mudar de dieta, aceitar as crises económicas ou pessoais como oportunidades, descobrir potencialidades não reconhecidas em si próprio e ao seu lado etc. É uma mistura de adaptação ao mercado, negação da realidade e maus tratos a si mesmo. Quem é “realista” transfigura a realidade e subordina-se a ela. O esoterismo também faz parte deste contexto de auto-optimização do indivíduo. O esoterismo promete a muitas pessoas um sentido e uma orientação para as suas vidas, oferecendo aparentemente uma perspetiva holística em contraste com a “racionalidade fria” da ciência objectiva (ou da medicina). No entanto, em vez de se colocar as crises da vida num contexto social e possivelmente defender-se colectivamente contra as imposições (por exemplo, através de greves e sabotagem), o esoterismo serve também como oportunidade para se reinventar continuamente como sujeito neoliberal, retirando-se para a esfera privada e para o interior, através da passivização e da tagarelice, através do “holismo” e da saúde, ou serve simplesmente para suportar o stress (cf. Barth 2012). O esoterismo parece muitas vezes um auto-engano inofensivo, mas sempre esteve e ainda está ligado ao pensamento reacionário e fascista (cf. Kratz 1994, Speit 2021). É claro que o esoterismo aqui não tem nada a ver com o seu significado original na antiguidade, como conhecimento secreto ou de difícil acesso que nem todos podem ou devem partilhar, mas é um negócio de milhares de milhões de dólares. Naturalmente também são explorados para este fim e instrumentalizados para a propaganda neoliberal e para a autodoutrinação elementos ou aspectos de várias tradições religiosas ou filosóficas.
2. A meditação como “ópio do povo” (Marx)
Há alguns anos o budista zen e professor de gestão Ronald Purser criticou a instrumentalização e exploração neoliberal da prática da meditação budista no seu livro McMindfulness: How Mindfulness Became the New Capitalist Spirituality (Purser 2019) (1). Nos países ocidentais, a chamada “mindfulness” (atenção plena ) tornou-se uma moda generalizada. A Atenção Plena, que pode ser alcançada através de uma determinada forma de prática de meditação, destina-se principalmente a reduzir o stress e a reforçar a concentração. Esta prática de meditação é designada por Mindfulness-Based Stress Reduction (MBSR). Um dos principais agitadores e pregadores é Jon Kabat-Zinn, a quem Purser se refere repetidamente no livro. Diz-se que se deve ficar no aqui e agora, não se apegar, não julgar, não ter sentimentos negativos nem positivos, inspirar e expirar constantemente, comer uma sultana com atenção etc. Os cursos correspondentes são utilizados e oferecidos em quase todo o lado: Nas escolas, nas universidades, para gestores stressados, para empregados stressados, para empresários, em todo o tipo de conferências, em Davos, e até nas forças armadas (para que os soldados respirem fundo antes e não disparem a torto e a direito). Os pregadores da Atenção Plena afirmam que, se muitas pessoas praticassem a Atenção Plena, o mundo poderia mudar e tudo ficaria bem. Assim tudo depende do indivíduo. Não é preciso fazer mais nada (como um envolvimento político, sindical ou sobretudo de crítica social). Basta estar atento ao agora. Será que Kabat-Zinn e companhia acreditam mesmo na sua própria propaganda? Seja como for, esta ideia baseia-se numa ignorância sem fundo que não tem nem quer ter a mínima ideia de como o mundo funciona realmente, de como as outras pessoas vivem realmente, de quais são os problemas dos pobres, dos negros, das mulheres etc. Os pregadores da Atenção Plena “assumem falsamente uma uniformidade da experiência humana” (ibid., 211) e, aparentemente, nem sequer se apercebem a partir de que bolha de filtros sociais estão a argumentar. Por um lado, os pregadores da Atenção Plena sublinham que a prática de meditação que oferecem não tem nada a ver com o budismo, mas é secular (e portanto legal nas escolas públicas dos EUA), e que a sua eficácia positiva está supostamente (neuro)cientificamente comprovada (as provas, no entanto, como resume Purser, são bastante ténues, estatisticamente insignificantes, indistinguíveis do placebo ou simplesmente inexistentes). Por outro lado, as mesmas pessoas enfatizam, dependendo da ocasião e da situação – o que sublinha ainda mais o carácter instrumental e intelectualmente desonesto de tudo isto – que a MBSR é supostamente a essência do Dharma, ou seja, fundamental e essencialmente relacionada com o Budismo, e que tudo o resto que faz do Budismo o Budismo é mais ou menos supérfluo ou sem sentido. Há aqui uma certa arrogância branca ocidental. O budismo é desvalorizado, não há um compromisso sério com ele, o que aparentemente seria prejudicial para a comercialização da meditação nos regimes neoliberais do Ocidente. O título do livro não foi escolhido por acaso: McMindfulness.
De acordo com Purser, nada disto tem realmente nada a ver com o budismo. Não se pode dizer que esteja a surgir aqui uma escola ocidental de budismo (tal como o budismo Chan, por exemplo, deu origem a um budismo chinês independente). Pelo contrário: os programas de Atenção Plena são um produto da sociedade neoliberal dos Estados Unidos; situam-se portanto num contexto específico que não é habitualmente tornado óbvio. A Atenção Plena, por outro lado, como Purser deixa claro, é apenas um aspecto da prática budista que não pode ser isolado e certamente não pode ser considerado como uma panaceia. Purser não tem, portanto, objecções de princípio à Atenção Plena e às práticas de meditação que a cultivam. O que é decisivo, como ele sempre sublinha, é o contexto social e o objectivo a atingir. A meditação é instrumentalizada porque é despojada do seu contexto, porque os fundamentos éticos em que se baseia e o objectivo a que aspira são excluídos (é isto que torna possível a sua utilização nas forças armadas). (2) A Atenção Plena não é apenas, e certamente não em primeiro lugar, a redução do stress e a respiração passiva no agora; em vez disso, a meditação faz parte de um cultivo ético (sila), a Atenção Plena correcta, como parte do caminho óctuplo, tem como objectivo a compaixão, um alargamento do olhar e de modo nenhum um estreitamento e fixação em si mesmo. Não é o indivíduo enquanto indivíduo que se torna atento e “compassivo”, mas como parte de uma comunidade (sangha). A Atenção Plena, despojada do seu contexto ético e reduzida ao único objectivo de lidar com o stress, enquadra-se perfeitamente na ideologia neoliberal, tal como acima descrita. O budismo reduzido a consumo de fast-food como forma de lidar com o stress no regime neoliberal não é, como Adorno provavelmente perceberia com horror, nem sequer uma “semiformação”. Em vez de procurar as causas do stress, por exemplo, as condições de trabalho contra as quais poderíamos lutar em conjunto, o stress é individualizado e transformado num problema privado. O objectivo da redução do stress é ser ou continuar a ser um trabalhador produtivo, e simplesmente lidar melhor com o stress, suportá-lo simplesmente e adaptar-se de forma bem disposta e descontraída. O objectivo é manter a máquina capitalista a funcionar sem problemas. Neste ponto, é preciso concordar com Lenine quando escreve que “a religião [...] é uma espécie de aguardente espiritual na qual os escravos do capital afogam a sua humanidade e as suas reivindicações de uma vida minimamente decente” (Lenine 1956, 7). A bebida com a qual a realidade é afogada consiste em chupar uma sultana durante minutos a fio e (deixar-se persuadir) de que a sua própria vida pode de algum modo ser melhorada ou quaisquer problemas resolvidos se prestar atenção ao agora. O objectivo da “redução do stress com base na Atenção Plena” não é criticar o stress e as suas causas, mas adaptar-se às condições e circunstâncias de trabalho. Claro que isto também não tem nada a ver com o budismo socialmente empenhado (como o de Thich Nhat Hanh). E certamente nada tem a ver com a crítica do capitalismo. Os agitadores do Mindfulness como Kabat-Zinn estão por assim dizer entre os sacerdotes do neoliberalismo.
3. Crítica e solidariedade em vez de auto-narcotização
Tal como se pode encontrar conteúdo na tradição judaico-cristã através do qual se tem de entrar numa contradição crítica com o capitalismo e a sua ideologia, o que torna possível desencadear a solidariedade colectiva contra as imposições e usurpações do capitalismo (ver Böttcher 2023 e 2022, Ramminger; Segbers 2018 e King 2018), também um budismo devidamente compreendido pode contribuir para a crítica prática e teórica do capitalismo. Se a Atenção Plena como momento da prática budista não for instrumentalizada e vulgarizada para a propaganda neoliberal e como um narcótico de bem-estar para a resiliência e o recalcamento da realidade, de modo a que através dela “os sistemas opressivos funcionem ainda mais suavemente” (Purser 2021, 202), ou seja, se ela não se reduzir a tornar o indivíduo mais resiliente e complacente, uma Atenção Plena correcta pode alargar a perspectiva e ajudar-nos a ser estáveis e claros na mente e no coração solidariamente. Nas palavras de Ronald Purser: “Uma vez que a libertação é um processo sistémico, não pode depender de métodos individuais. A atenção social começa com a perspetiva mais ampla possível e concentra a atenção colectiva nas causas estruturais do sofrimento. Os grupos trabalham em conjunto para criar significados partilhados, bem como um terreno comum, e desenvolvem uma motivação socialmente orientada antes de a pessoa se voltar para dentro. É claro que isto é diferente de um curso de oito semanas numa sala de reuniões. É muito mais profundo e visa objectivos a longo prazo, combinando a resistência com a prática da meditação. O objectivo não é reduzir o stress para voltar à actividade normal. Trata-se antes de ultrapassar a alienação, trabalhando com outros numa luta comum em prol da justiça social, utilizando os recursos interiores e resistindo ao poder injusto para libertar tanto os opressores como os oprimidos” (ibid., 215 ss.).
No entanto, uma crítica do neoliberalismo dificilmente será suficiente para compreender e criticar adequadamente o capitalismo como “totalidade concreta” (Scholz 2009), com o seu fetichista movimento de valorização D-M-D' e a forma de sujeito burguesa específica de género, bem como as múltiplas manifestações de crise (cf. e.g. Jappe 2003, Kurz 1999 & Scholz 1992). Mas o contributo de Purser para a crítica da ideologia neoliberal sob a forma de “Atenção Plena” não é de somenos importância, como mostra a dimensão da cena esotérica e de auto-optimização. É sabido que as igrejas cristãs também oferecem a autogestão esotérica nos seus “programas de cuidados pastorais” (cf. Böttcher 2022, 73ss.). Naturalmente que a Igreja não quer prescindir da quota de mercado correspondente, razão pela qual se deixa levar pelo espírito maligno predominante da época. Sem uma solidariedade colectiva que liberte o indivíduo da sua letargia e isolamento e das tentativas fúteis de lidar com todo o tipo de psicotécnicas e medicamentos, qualquer tentativa de se defender contra as imposições anti-sociais e o terror da economia está condenada ao fracasso. As práticas religiosas ou pseudo-religiosas que confirmam o indivíduo no seu isolamento e nem sequer sonham em ter em mente o “todo” não são uma alternativa à “racionalidade fria” do capitalismo, mas a sua realização.
(1) Por razões de espaço, as referências das páginas e as citações [da edição alemã] são em grande parte omitidas abaixo.
(2) Isto também se aplica à utilização neoliberal da filosofia antiga, como o Estoicismo ou Platão.
Bibliografia
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Scholz, Roswitha: Gesellschaftliche Form und konkrete Totalität – Zur Dringlichkeit eines dialektischen Realismus heute, in: exit! – Krise und Kritik der Warengesellschaft Nr. 6, Bad Honnef 2009, 55–100. Trad. port.: Forma social e totalidade concreta. Na urgência de um realismo dialéctico hoje, online: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz12.htm
Speit, Andreas: Verqueres Denken – Gefährliche Weltbilder in alternativen Milieus [Pensamento distorcido – Visões do mundo perigosas em meios alternativos], Berlin 2021.
Original “Achtsamkeit als Propaganda und Narkotikumem” em exit-online.org. Antes publicado em oekumenisches-netz.de. Texto da Netztelegramm de Outubro 2024. Tradução de Boaventura Antunes (10/2024)