Thomas Meyer

Crimes económicos e outras bagatelas" Breve comentário ao novo livro de Gerd Bedszent

 

Ainda hoje, todo tipo de caricaturas assombra a história e o presente do capitalismo. Não só se recalca a violenta história da imposição, mas também se pretende que a violência do presente não tem nada a ver com ele. O capitalismo, ou "economia de mercado livre", seria alegadamente apenas a troca pacífica de mercadorias, para benefício mútuo de todos os envolvidos. (1) Um ponto de vista particularmente notório (se não mesmo nojento) é o recalcamento da violência realmente existente do capitalismo em seu "estado normal", especialmente quando idiotas burgueses se excitam com carros incendiados ou com um supermercado saqueado e, sentindo-se perturbados em sua ordem e harmonia burguesas, acabam a gritar por uma mão forte, por "lei e ordem", como é costume.

Gerd Bedszent contradiz claramente essas imagens distorcidas no seu novo livro. Num espaço curto, Bedszent resume todos os tipos de crimes da modernização. Sejam os do período da reforma, do colonialismo dos alemães em África ou dos britânicos na Índia (2), ou os dos regimes da modernização atrasada, como os da Turquia (ou do Império Otomano em desintegração). O livro consiste numa série de artigos bastante curtos, que também podem ser lidos separadamente, alguns dos quais já apareceram noutros sítios em versões anteriores. A intenção do livro é menos a discussão teórica do que um esboço empírico, no sentido de uma introdução ao tema.

Por um lado, Bedszent trata de crimes que geralmente podem ser subsumidos em maciços assassinatos ou extermínio através do trabalho e, por outro, de crimes que poderiam ser descritos em conceitos como corrupção. Pode de facto parecer problemático querer designar tudo por "crimes económicos".

Por exemplo, Bedszent refere num artigo o campo de concentração "Mittelbau-Dora", que terá desempenhado um papel essencial na produção de foguetões na Alemanha fascista. "(p. 48) Neste artigo, Bedszent dá um exemplo de "extermínio em massa através do trabalho" praticado maciçamente pelos nazis. Isso permaneceu assim nos últimos dias da guerra, quando os assassinatos não foram interrompidos (talvez porque houvesse algo "mais sensível" em termos de táctica militar do que a matança do maior número possível de reclusos). Como escreve Bedszent: "Mais de 1.000 presos, principalmente nos campos satélites do campo de concentração de Mittelbau, foram vítimas do massacre no distrito de Gardelegen em 11 de Abril de 1945, no celeiro do campo de Isenschnibbe. Homens da SS, soldados da Wehrmacht, membros da juventude hitleriana e milicianos da Volkssturm [ou seja, também "alemães perfeitamente normais", TM) levaram os prisioneiros para o celeiro, incendiaram-no e atiraram contra qualquer um que tentasse escapar das chamas." (p. 53) Como de costume, os responsáveis em geral não foram realmente incomodados após a guerra. Como o líder distrital do partido nazi, Gerhard Thiel, responsável pelo massacre acima, que depois fugiu para a Alemanha Ocidental, onde nunca foi procurado a sério. Morreu em 1994 como cidadão respeitável da República Federal da Alemanha." (ibid.)

Alguns aspectos dos factos apresentados neste artigo por Bedszent deveriam, em minha opinião, ter sido enfatizados ainda mais. Como disse Daniel Goldhagen (3), na explicação do massacre de Isenschnibbe, foram de facto "alemães comuns" que estiveram activamente envolvidos no Holocausto. (4) É bem conhecido, para dar outro exemplo, que os batalhões da polícia foram convocados para tiroteios em massa; mas, devido à falta de pessoal, foram completados com "alemães comuns". Por exemplo, o Batalhão de Polícia de Hamburgo nº 101 era formado com um terço de trabalhadores não qualificados e especialistas. Estes também foram ardentes anti-semitas e assassinos zelosos dos judeus (5) enquanto apolíticos e não-membros do partido nazi. Além disso, o Holocausto não pode ser reduzido aos interesses económicos, pelo contrário, o extermínio dos judeus era seu propósito próprio. (6) Tanto assim que foram conscientemente assumidas desvantagens em termos da economia da guerra ou da estratégia militar. Assim, os comboios foram utilizados no transporte de judeus para campos de extermínio em vez do transporte de equipamento militar. E o que também pode ser lido em Goldhagen: o extermínio de trabalhadores forçados judeus foi suspenso, tendo sido completado depois, quando, devido à falta de trabalhadores qualificados, o trabalho em várias fábricas só podia funcionar com limitações. Goldhagen enfatiza que com nenhum outro grupo de trabalhadores forçados se procedeu assim. (7) Para todos os outros, o extermínio foi assumido como resultado de condições infernais de trabalho, mas não era esse o objetivo principal. (8) O facto de o extermínio ser aqui o seu próprio propósito não está em contradição com o facto de, antes de serem deportados e exterminados, os judeus terem sido exterminados socialmente; os alemães enriqueceram com as suas propriedades, saquearam-nos por assim dizer, de modo que os motivos económicos também desempenharam um papel (o que Goldhagen também abordou). (9)

A segunda parte do livro é mais sobre o mundo da corrupção no capitalismo. Bedszent reporta-se entre outros a eventos que vão da crise de unificação da Alemanha, cobrança de portagens e evasão fiscal, até à oligarquia russa.

Especialmente no artigo "Em boas mãos" descreve Bedszent os eventos na sequência do crash económico da Alemanha Oriental e os numerosos fenómenos concomitantes de crime e corrupção que o acompanharam. Já Robert Kurz chamou a atenção para isso no  livro O Retorno de Potemkin. (10) A RDA, como se poderia resumir sucintamente, foi saqueada após o colapso e os seus bens foram vendidos a preços ridículos.

Ao longo dos temas destacados por Bedszent torna-se claro que a corrupção é cada vez mais o modo normal da actividade económica. No entanto, uma moralização aqui não ajudaria, pelo contrário, a causa da corrupção e da criminalidade económica deve ser procurada na lógica da valorização capitalista; afinal a criminalidade económica, como disse Robert Kurz, não é senão a "continuação da concorrência por outros meios". Sobre isso diz Bedszent: "O crescente ignorar da legislação nacional pelos criminosos económicos ocorre principalmente sob a pressão da concorrência no mercado [...]. Em negócios ilegais, o risco empresarial é muito maior do que nos legais. No entanto, o lucro esperado é correspondentemente mais elevado. A actividade económica ilegal é, portanto, tão antiga quanto o próprio capitalismo e só cessará com ele. Mas, se a actividade económica ilegal exceder um certo nível, a estrutura da sociedade como um todo irá cambalear. [...] A crescente erosão da sociedade capitalista não é causada por erros individuais, mas está estruturalmente condicionada. O seu motivo reside no louco fim em si mesmo da economia capitalista, do lucro apenas por amor do lucro." (p. 136s.)

No capitalismo cometem-se inumeráveis crimes não só contra as pessoas, mas também contra a natureza. A natureza aparece apenas como um material para a valorização do valor ou como um factor de custo externo. Cada empresa tenta reduzir os custos para sobreviver na concorrência. Há também custos subsequentes a longo prazo. Consequentemente, a remoção do lixo (e a produção de lixo) é um grande problema no capitalismo. Uma vez que o custo da remoção do lixo deve ser minimizado, é grande o esforço para fazê-lo desaparecer silenciosamente ou exportá-lo. Assim, a África é usada como lixeira do mundo. Como Bedszent ressalta: "De acordo com o UNEP [Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, TM], a quantidade de lixo produzida anualmente pela indústria eléctrica é de 41 milhões de toneladas; está previsto para os próximos anos um aumento para os 50 milhões de toneladas. A Alemanha participa com cerca de 1,5 milhões de toneladas. Até 90% dos resíduos electrónicos são tratados e removidos ilegalmente. A nível mundial, apenas cerca de um terço dos dispositivos eliminados entram nos canais oficiais de remoção. O Gana e a Nigéria são actualmente os principais tomadores de resíduos electrónicos removidos ilegalmente." (p. 102)

Embora muitos crimes ambientais ainda possam ser "legais", "as gerações futuras, confrontadas com os efeitos secundários do pensamento da rentabilidade capitalista [], devem considerá-lo, em todo o caso, como criminoso" (p. 77).

O livro reúne todo o tipo de material empírico, com muitas coisas tratadas sucintamente. Além disso, na minha opinião, ainda seria de fazer uma distinção clara entre a violência na história da constituição do capitalismo, a violência do capital em processo sobre as suas próprias bases, ou seja, no tempo do estado de excepção coagulado, em que a violência foi de certo modo legalizada e "exportada" para a periferia (guerras por procuração, como no Vietname, golpes na América do Sul, etc.), e a violência em tempos da crise e do limite interno, ou seja, nos tempos em que o estado de excepção permanente e o discurso da segurança se tornam cada vez mais factos consumados. No último caso, as elites capitalistas já não levam a sério os seus maravilhosos ideais (se é que alguma vez o fizeram realmente), cujos pressupostos sociais caem cada vez mais, assim se tornando uma farsa qualquer apelo (ainda que bem intencionado) aos "direitos humanos". (11)

Deste modo, o livro, como se poderia dizer, tem um caráter mais "positivista". Isso pode ser devido à sua natureza introdutória. Não que os factos recolhidos sejam meramente secundários e o conhecimento crítico resida numa espécie de "acrobacia conceptual": Em vez disso, é preciso insistir que os factos têm de ser referidos em relação com a dinâmica do processo fetichista, o que neste livro em grande parte não acontece. (12) É preciso desenvolver o correspondente contexto de mediação social e historicamente concreto que abrange os factos individuais. Este é o objetivo do livro de Robert Kurz A guerra de ordenamento mundial. (13) Neste evidencia-se, por exemplo, por que não pode o imperialismo, nas condições do limite interno, ser equiparado ao imperialismo no início do século XX. Se se olha apenas para os factos como factos (crimes de guerra, tapetes de bombas, etc.), talvez se possa concluir que tudo já existia de algum modo (só que as bombas hoje têm mais eletrónica ou até são "inteligentes"). Similarmente seria preciso determinar que as expropriações no início da modernidade ou nas colónias eram algo diferente do saque da propriedade pública da RDA pela empresa pública de privatizações (o que não exclui que haja semelhanças). No último caso trata-se, por assim dizer, da integração de um Estado capitalista noutro, em que a "redistribuição" da propriedade burguesa (ou propriedade do Estado) pode não ter sido feita "pelo justo valor". Mas, no caso da expropriação e conquista protomoderna e colonial, trata-se da destruição activa dos modos de produção e relações de propriedade pré-modernas, enquanto processo de constituição da propriedade burguesa, e da conexa dinâmica processual fetichista. (14) Mas Bedszent parece não apreender esta diferença quando escreve: "Será o capitalismo no seu conjunto criminoso, todo o capitalista um criminoso económico? Essa seria uma definição muito redutora. Mais correcto é que o capitalismo é baseado no roubo. A apropriação predatória pode ser ilegal, isto é, um crime. Mas também pode ser feita de acordo com as leis em vigor." (p. 10)

Naturalmente, Bedszent também escreve que o colonialismo destruiu os modos de produção pré-modernos e que a RDA era capitalista. No entanto, fica aqui uma certa confusão conceptual se tudo isso for registado como "crime económico" ou "roubo".

 

Gerd Bedszent: Wirtschaftsverbrechen und andere Kleinigkeiten [Crimes económicos e outras bagatelas], Frankfurt am Main 2017, Nomen-Verlag, 148 páginas.

 

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(1) Apenas um exemplo: Assim escreveu a filósofa liberal e escritora americana Ayn Rand (1905-1982): "O capitalismo do laissez-faire é o único sistema social baseado no reconhecimento dos direitos individuais e, portanto, o único sistema em que a violência física é excluída das relações sociais. [Parágrafo] Por seus princípios e interesses, é o único sistema que é fundamentalmente contra a guerra. Quem pode produzir livremente não têm incentivo para roubar; não tem nada a ganhar com a guerra e tem muito a perder. [...] O negociante e o guerreiro sempre foram adversários fundamentais. [...] Quem está realmente preocupado com a paz deve ver que o capitalismo deu à humanidade o período mais longo de paz na história um período em que não houve guerras envolvendo todo o mundo civilizado desde o fim das guerras napoleónicas em 1815 até a eclosão da primeira guerra mundial em 1914." (p. 44s., destaque no original), in: Ayn Rand: Kapitalismus Das unbekannte Ideal, Jena 2017; original Capitalism: The Unknown Ideal, New York, 1966.

(2) Bedszent refere-se, entre outros, ao livro de Mike Davis: Die Geburt der Dritten Welt Hungerkatastrophen und Massenvernichtung im imperialistischen Zeitalter [O nascimento do Terceiro Mundo Fomes catastróficas e destruição em massa na era do imperialismo], Berlim 2011; [original: Late Victorian Holocausts: El Niño Famines and the Making of the Third World. 2001] ver também a recensão do mesmo: Gerd Bedszent: Sob os abutres Um livro sobre os esqueletos no armário da modernidade capitalista, em: EXIT! Crise e Crítica da Sociedade das Mercadorias, nº 10, Berlim 2012, p. 257-261.

(3) Certamente há muito para criticar em Goldhagen, o que eu não pretendo fazer aqui. Refiro, de qualquer modo, que ele junta todo o tipo de material que deve ser tomado em consideração. Refira-se apenas que Goldhagen negligenciou incluir, por exemplo, o movimento fetichista do capital, do qual ele em todo o caso não tem a mínima ideia e, portanto, não fica claro por que a Alemanha tomou essa "rota especial". Ver sobre isso.: Esboço e crítica das actuais teorias do anti-semitismo: Roswitha Scholz: Differenzen der Krise Krise der Differenzen: Die neue Gesellschaftskritik im globalen Zeitalter und der Zusammenhang von Rasse, Klasse, Geschlecht und postmoderner Individualisierung [Diferenças da crise crise das diferenças A nova crítica social na era da globalização e a relação entre "raça", classe, género e individualização pós-moderna], Bad Honnef 2005 p.74-120.

(4) Daniel Jonah Goldhagen: Hitlers willige Vollstrecker Ganz gewöhnliche Deutsche und der Holocaust, München 2012; original: Hitler's Willing Executioners: Ordinary Germans and The Holocaust,  New York 1996; [trad. port.: Os Carrascos Voluntários de Hitler. O Povo Alemão e o Holocausto, Lisboa, 1999]. Ver também: Robert Gellately: Hingeschaut und weggesehen Hitler und sein Volk [Viram e fecharam os olhos Hitler e o seu povo], München 2002, original: Backing Hitler: Consent and Coercion in Nazi Germany, Oxford 2001.

(5) Goldhagen, p. 219s., p. 243s., p. 247.

(6) Cf. Moishe Postone: Nationalsozialismus und Antisemitismus (2005), online:  www.ca-ira.net/verlag/leseproben/pdf/postone-deutschland_lp.pdf.

(7) Goldhagen, p. 368s., p. 372s., p. 375s.

(8) Sobre o desvario anti-semita ver também: Robert Wistrich: Der antisemitische Wahn Von Hitler bis zum Heiligen Krieg gegen Israel [O desvario anti-semita De Hitler à guerra santa contra Israel], Ismaning bei München 1987, original London 1985.

(9) Ver também o capítulo A fábrica negativa Auschwitz, in: Robert Kurz: Schwarzbuch Kapitalismus Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft [O livro negro do capitalismo Um canto de despedida à economia de mercado], Frankfurt 1999, S.478496.

(10) Robert Kurz: Potemkins Rückkehr Attrappen-Kapitalismus und Verteilungskrieg in Deutschland, Berlin 1993. [Trad. port.: O retorno de Potemkin. Capitalismo de fachada e conflito distributivo na Alemanha, São Paulo, 1993]

(11) Ver, por exemplo: Herbert Böttcher: Wir schaffen das! Mit Ausgrenzungsimperialismus und Ausnahmezustand gegen Flüchtlinge ["Nós podemos fazê-lo!" Contra os refugiados com o imperialismo de exclusão e o estado de excepção], comunicação apresentada no seminário da EXIT! em Mainz em 08.10.2016. http://www.exit-online.org/link.php?tabelle=autoren&posnr=554.

(12) Mas insiste-se, por exemplo, em que o aumento da corrupção a todos os níveis está ligado à crise do capital.

(13) Robert Kurz: Weltordnungskrieg Das Ende der Souveränität und die Wandlungen des Imperialismus im Zeitalter der Globalisierung [A Guerra de Ordenamento Mundial. O Fim da Soberania e as Metamorfoses do Imperialismo na Era da Globalização], Bad Honnef 2003.

(14) Com maior desenvolvimento em Roswitha Scholz: Christoph Kolumbus forever? Zur Kritik heutiger Landnahme-Theorien vor dem Hintergrund des Kollaps der Modernisierung [Cristóvão Colombo forever? Para a crítica das actuais teorias da colonização no contexto do "Colapso da modernização"], in: EXIT! Crise e Crítica da Sociedade das Mercadorias, Nr. 13, Angermünde 2013, p. 46100.

 

 

http://www.obeco-online.org/

http://www.exit-online.org/