Thomas Meyer

A liberdade da servidão

O anarcocapitalismo como pária do anarquismo

 

 

Introdução

Em tempos de crise, são cada vez mais aceites posições que antes ainda podiam ser tidas como minoritárias, ou como um excesso literário. Daí a possibilidade do seu impacto social. A meu ver, isso também se aplica ao "anarcocapitalismo". Não só se lhe referem revistas relevantes da nova direita (como a eigentümlich frei [verdadeiramente livre]), mas também é representado por pessoas mais ou menos notáveis, como Oliver Janich, que considera a UE uma ditadura socialista, e Hans-Hermann Hoppe, para quem uma monarquia seria um mal menor que a democracia.

Poderia supor-se que o anarquismo de esquerda se confrontaria teoricamente com o anarcocapitalismo (ou com os libertários de direita em geral). Mas não é esse o caso. (1) Na minha opinião, principalmente por incapacidade para fazê-lo, devido à sua falta de teoria e de conceitos. Pelo contrário, é possível estabelecer possibilidades de ligações recíprocas.

Para mostrar isso, vamos começar por esboçar as posições anarcocapitalistas, de que são exemplo as de Murray Rothbard, para concluir salientando os déficits teóricos decisivos que o anarquismo de esquerda tem em comum com o anarcocapitalismo.

 

O anarcocapitalismo de Murray Rothbard

Murray Rothbard (1926-1995) é considerado um influente anarcocapitalista do século XX, a quem os anarcocapitalistas de hoje gostam de se referir. (2) Ele próprio surgido na tradição da teoria económica da Escola Austríaca de Ludwig von Mises (tal como Hoppe), radicalizou o seu pensamento, na medida em que negou ao Estado a justificação e a necessidade e, ao contrário de von Mises ou Hayek, preconizou a sua abolição total (abolição na forma de privatização de todas as funções do Estado). Segundo Rothbard, uma sociedade livre já estaria realizada na propriedade privada e no mercado livre. O Estado é a única coisa que se atravessa no caminho dessa sociedade livre.

Suas visões críticas do Estado são semelhantes às de muitos na esquerda. Rothbard descreve a servidão do Estado num plano fenomenológico, à semelhança do que também faz muita gente na esquerda, seja essa servidão o militarismo e o imperialismo, a educação estatizada (que, segundo ele, não trataria principalmente da educação, mas de criar um povo leal ao Estado), a perseguição das relações homossexuais, o terror psiquiátrico, as restrições ao aborto ou as políticas proibicionistas de drogas, álcool, jogos de azar e pornografia.

O ponto de partida argumentativo de Rothbard é de natureza axiomática, a saber, parte de John Locke e das considerações de direito natural de que todo o ser humano é dono do seu próprio corpo, de que todos podem dispor livremente da sua propriedade e dos produtos de seu trabalho (como um fazendeiro), ninguém tendo o direito de atacar ninguém nem a sua propriedade ("axioma da não agressão") (3). Por isso rejeita, em princípio, que alguém, especialmente o Estado, pretenda usar à força um corpo, como no caso nas forças armadas, bem como que o Estado imponha aos cidadãos impostos, assim os roubando literalmente. Cada um tem direito à sua propriedade, incluindo a do seu corpo, e este direito de propriedade é absoluto. Absoluto no sentido de que Rothbard deriva dele quaisquer outros direitos civis e direitos humanos, reduzindo-os todos a direitos de propriedade. A única limitação é apenas o que viola os direitos de propriedade de outros, que é ilegal, podendo ser considerado um crime. Assim se exprime o ponto de vista liberal clássico de que os direitos próprios encontram o seu limite nos direitos dos outros. Segue-se, como Rothbard conclui, que "crimes sem vítimas", como actos homossexuais ou uso privado de drogas, não são crimes.

A posição de Rothbard pode ser vista como o liberalismo exacerbado de um "cidadão responsável" absoluto. Ele defende consequentemente uma liberdade contratual absoluta entre os cidadãos, sendo errada, portanto, qualquer intervenção do Estado. Sua ideia é que, em seguida, todos se confrontam num mercado total de "liberdade" e auto-propriedade livre, com uma liberdade absoluta de contratar, não podendo ser menorizados por nada nem por ninguém. Além disso, a ideia transmitida por Rothbard é que o mundo seria composto de pequenos burgueses e proprietários a trocar entre si. Daí o seu compromisso com uma liberdade contratual ilimitada. (4) Este momento pequeno-burguês também se encontra sem problemas no anarquismo de esquerda e nas suas diversas correntes, como os gesellianos ou o anarquismo de estilo de vida.

A absolutização dos direitos de propriedade foi por ele ilustrada em diferentes contextos, como em relação aos direitos da criança, dizendo friamente o seguinte:

"Se aplicarmos a nossa teoria a pais e filhos, segue-se que os pais não podem violar os direitos dos filhos, mas também que os pais não devem ser legalmente obrigados a alimentar, vestir ou educar os filhos, pois tais obrigações teriam como conteúdo acções positivas impostas aos pais, privando-os dos seus direitos. Portanto, os pais não estão autorizados a assassinar ou mutilar os filhos, e a lei correctamente os proíbe de fazê-lo. Mas os pais devem ter o direito legal de não alimentar a criança, ou seja, de deixá-la morrer. É correcto que a lei não obrigue os pais a alimentar ou a sustentar um filho. (Sendo uma questão completamente diferente se um pai não tem obrigação legal, mas tem uma obrigação moral de manter o filho vivo). Essa regra permite-nos responder a algumas questões controversas. Por exemplo, os pais devem ter o direito de deixar morrer um bebé deformado (porventura não o alimentando)? A resposta, obviamente, é sim, e decorre do direito mais geral de deixar morrer qualquer criança, deformada ou não (No entanto, veremos que, numa sociedade liberal, a existência de um mercado livre de bebés 'minimizará' tal omissão)." (5) (destaque no original)

De facto, não é inapropriado agradecer a Rothbard por tal franqueza; fica claro, a partir dessa monstruosidade, onde leva a sua "Ética da liberdade". Essa franqueza lembra também Mandeville, com sua famosa fábula das abelhas, onde ele foi muito cínico e descarado, revelando as consequências do liberalismo, para desconforto dos seus contemporâneos.

Para Rothbard tudo é muito simples: se há algo de criticável (e com razão) nas tarefas que estão ao cuidado do Estado e na sua implementação (como decisões problemáticas dos serviços de juventude), então a causa é identificada rapidamente. Porque o Estado faz, os problemas surgem. Um mercado livre, pelo contrário, é a solução para tudo e, lembre-se, é o melhor possível!

Se o Estado fosse abolido, os cidadãos interessados organizariam autonomamente todos os seus interesses, para a manutenção e segurança dos seus direitos de propriedade e, claro, tudo voluntariamente, sem que ninguém lhes contestasse os seus direitos de propriedade. Por outras palavras, abolido o Estado, garantiriam os cidadãos interessados, ou o que quer que se chamaria às pessoas, milícias privadas, podendo a conformidade com o sistema jurídico, obviamente, ser diferente, dependendo da região e da milícia privada.

Assim, já está claro que, mesmo por razões lógicas, uma sociedade de mercado não pode existir sem Estado, pois qual a função a cumprir pela segurança privada, se não sobretudo proteger a propriedade privada? Então ela cumpre tarefas de facto do Estado. Se o Estado for privatizado, suas funções emergirão em outsourcing, não como abolidas, mas na forma substituta! (6)

Embora Rothbard descreva as muitas repressões, como elas (podem) emergir a partir do Estado, em lado nenhum se apercebe que a sua visão de um mercado total (juntamente com os verdadeiros substitutos do Estado) também levaria à servidão, desde logo e especialmente porque ele no fundo não entende o que é o Estado, nem o que as suas funções representam; para ele, o Estado é pouco mais que uma quadrilha de ladrões, que impôs aos "cidadãos livres" proibições absurdas e os rouba. Basicamente, para Rothbard há apenas uma diferença quantitativa entre um gangue ou uma máfia e o Estado. Não diferentemente de muitos/as anarquistas, como por exemplo Bakunin: "Nós rejeitamos toda a legislação, autoridade e influência privilegiada, registada, oficial e legal, mesmo sendo o resultado do sufrágio universal, cientes de que só podem ser usadas em benefício de uma minoria governante e exploradora, contra os interesses da imensa maioria escravizada. Nesse sentido, somos realmente anarquistas". (7)

Embora as ambições de Rothbard de abolição do Estado não surjam da experiência de erosão do Estado, mas de uma percepção ideologicamente marcada do Estado e das suas funções, é preciso prosseguir e desenvolver a ideia de um "Estado como um bando de ladrões" tendo em vista os processos actuais.

Bem, é verdade que, quando se fala de "Estados falhados", trata-se de facto de pouco mais do que de gangues criminosos e bandos concorrentes lutando entre si, que saqueiam o Estado e a sociedade (ou o que sobrou deles) para a sua clique e clientela. No entanto, esta é uma situação muito especial e dificilmente pode ser equiparada à estatalidade como tal, como ela aparece em tempos de acumulação e prosperidade. Pelo contrário, um Estado como uma colecção de milícias privadas, de bandos e de corrupção como modo normal da actividade estatal, ou seja, tornando-se regra a infracção à regra, é um produto do decaimento da própria soberania do Estado. Um Estado decadente, que perde a sua soberania, não vai assimilar o que os anarcocapitalistas gostariam de ter implementado. O Estado já consiste apenas nos seus substitutos, não podendo em consequência continuar a falar-se de "economia de mercado" em funcionamento. Nem de uma "ordem jurídica". Pode ser verdade que os serviços de segurança privada são de facto "mais eficientes e mais baratos", como se diz no jargão; mas o que significa isso em termos concretos? Isso pode significar que, a fim de dominar o crime, o roubo ou similares, essas milícias privadas simplesmente se poupam a processos de acusação e a processos judiciais (e até mesmo a faculdades de direito) e cortam aos pedaços no local os suspeitos (!) de criminosos, despejando depois gasolina sobre eles, como é costume na Nigéria. (8) Não custa quase nada e é feito rapidamente.

Assim, pode-se concluir: "Quanto mais fraco o Estado, quanto mais avançada a ruína do Estado numa região, maior a tendência para afirmar os interesses do Estado com a ajuda de milícias, bandos e outros gangues". (9) Aí as milícias correspondentes podem formar-se natural e espontaneamente, sem que o Estado as mobilize conscientemente para "apoiar" o seu aparelho de violência em erosão. E o resultado é a barbárie nua e crua!

De certo modo, o anarcocapitalismo transforma-se por si só, nas condições da crise final, sendo que não termina numa sociedade livre, em que todos trocam as suas mercadorias entre si de forma feliz, pacífica e auto-determinada, mas termina em caos e guerra civil molecular .

O conceito de Estado de Rothbard, bem como de muitos/as anarquistas, sugere que o Estado é mais ou menos uma clique de dominação pessoal, cujo aparelho de dominação e violência é imposto externamente à sociedade ou aos "cidadãos". Com este erro Rothbard consegue acreditar que o Estado poderia ser abolido, mantendo todas essas conexões e relações sociais que se podem resumir em "economia de mercado"; aí as funções do Estado seriam de facto objecto de outsourcing; sofrendo talvez erosão ou asselvajamento, mas de modo nenhum seriam abolidas.

Contudo é preciso discordar dum entendimento da dominação que a vê como puramente exterior, como se pode facilmente ver em muitos esquerdistas ou anarquistas de esquerda. A dominação, pelo contrário, deve ser entendida num sentido muito mais amplo, nomeadamente em termos de uma constituição fetichista, que simultaneamente constitui os sujeitos submetidos à dominação:

“A 'dominação do homem pelo homem' não deve, portanto, ser entendida em seu tosco sentido externo e subjetivo, mas como constituição abrangente de uma forma compulsória da própria consciência humana … O conceito de dominação não deve assim ser meramente descartado, para em seu lugar se erguer o conceito de constituição de fetiche, que rebaixaria o sujeito e suas declarações a simples marionete. Antes, o conceito de dominação e seu conceito mediador 'poder' devem ser deduzidos como conceitos da forma fenoménica universal das constituições do fetiche, que por sua vez se manifestam tanto prática como sensivelmente como espectro da repressão ou auto-repressão em diversas formas e em diversos planos. A forma de si mesmo inconsciente à consciência manifesta-se como dominação em todos os planos. Na figura da dominação, o sujeito, como ser constituído pelo fetiche, trava contacto real consigo mesmo e com os outros. As categorias objectivadas da constituição formam assim o (respectivo) padrão ou a matriz da dominação.” (10)

Algumas posições de Rothbard, superficialmente consideradas, teriam o acordo de muita gente de esquerda ou de mentalidade liberal: por exemplo, a abolição de uma política repressiva de drogas, ou seja, a rejeição de uma atitude que determina que consciência deve ter uma pessoa adulta (se outras não sofrerem danos), ou quem se deita com quem; ou seja, de todos os actos que podem ser classificados na categoria de "crimes sem vítima". Sendo a pessoa dona do seu corpo, assim se fundamenta, segundo Rothbard, o uso de drogas, o aborto, a negação do serviço militar e assim por diante. Mas Rothbard tira conclusões apressadas: Sendo estas posições vistas no contexto da sociedade de mercado total, que paira sobre elas, então possivelmente não ocorreria uma impressão positiva de concordância. Mas, sob as condições capitalistas, esse maravilhoso dono do próprio corpo é um sujeito burguês, que tem de comercializar o seu corpo e provar ser um material viável, um portador de força de trabalho. Pelo que também seria um escândalo, para continuar a pensar a exposição de Rothbard, "roubar" aos outros a sua propriedade (por meio de impostos) para pagar pela manutenção de alguém (por exemplo, um desempregado), em vez de este, como empresário do seu corpo, cuidar de si mesmo, e, na sequência lógica das afirmações de Rothbard, oferecê-lo necessariamente "de modo autodeterminado", em todo o seu conteúdo, no mercado de órgãos!

Na visão anarcocapitalista, as pessoas socialmente atomizadas podem de facto ser aparentemente livres do Estado (aparentemente, porque as funções do Estado reaparecem como milícias privadas), mas não são definitivamente livres do mercado; livres do imperativo da valorização e da reserva de financiamento da própria existência. O indivíduo isolado, tão livre, ao qual Rothbard se refere, deve antes ser considerado como determinado na sua forma pelo todo fetichista (embora não fique absorvido nele), e não como alguém cujas livres escolhas são realmente livres. A liberdade propagada por Rothbard não passa da "liberdade" propagada pelo neoliberalismo e seus capangas, algo como quando se fala do ser humano "como empresário da sua força de trabalho". (11) O anarcocapitalismo pode, por isso, ser entendido como um neoliberalismo radicalizado; como uma escalada de ideologemas neoliberais. Não é por acaso que as posições anarcocapitalistas surgiram após o fim do boom fordista (como é o caso de Rothbard) obtendo uma certa ressonância (até à fundação, nos anos setenta, do Libertarian Party e do Cato Institute, em que estas ideias a meu ver tiveram acolhimento).

 

Do radicalismo de mercado neoliberal ao Estado como empresa startup

Indo além de um radicalismo de mercado neoliberal, que queria minimizar o papel do Estado, pelo menos na intenção (!), o anarcocapitalismo pode ser entendido, como já sugerido, como a sua radicalização, ou como a sua consequente escalada. Uma vez que as promessas de salvação do neoliberalismo não foram, obviamente, cumpridas, ou porque as medidas realmente aplicadas não foram suficientemente longe ou porque não foram executadas suficientemente de acordo com a doutrina, os seus adeptos reagiram com ainda maior negação da realidade, procurando a causa de todos os males no Estado: no sentido em que se assume que o Estado seria "ineficaz" em todas as suas funções, que realizaria "com custos demasiado elevados", e que a solução para todos os problemas seria mais privatizações e um (maior) recuo do Estado. O problema básico da crítica positivista ou superficial do Estado ou do mercado é que não se reconhece a polaridade de ambos, nem a relação fetichista entre eles. Assim, em cada caso o outro pólo é positivamente conotado na crítica, não sendo ambos os pólos realmente compreendidos na sua lógica e na sua conexão.

Essa radicalização pode ser vista exemplarmente nos Friedman. Milton Friedman ainda podia ser considerado um "liberal defensor do Estado guarda-nocturno" (mais precisamente, ele era um representante do monetarismo) (12), sendo considerado um "ideólogo chefe" do neoliberalismo, a par de Hayek. Ele escreveu alegre e abertamente que a única responsabilidade social das empresas consiste precisamente em obter o maior lucro possível. (13) Não é este o verdadeiro escândalo, como muitos concluiriam, mas sim o facto de um tal comportamento ser de facto imanentemente muito racional, não derivando de uma veia anti-social, mas brotando da absurda lógica de valorização do capitalismo.

Seu filho David Friedman, porém, já era considerado um anarcocapitalista, que entendia que todas as funções do Estado poderiam ser divididas em duas categorias, nomeadamente, as já privatizadas e aquelas das quais se pode esperar que possam ser privatizadas amanhã, naturalmente incluindo explicitamente todas as "tarefas do Estado guarda-nocturno" (polícia e justiça). Segundo Friedman, não há nenhuma função própria do Estado que possa justificar a sua existência. O Estado é, em última instância, supérfluo, e o mercado seria, de qualquer maneira, mais eficiente e mais barato. Esta é a razão de David Friedman para o seu anarquismo. (14)

Leis, direito e sistema judicial, portanto, nada mais são para ele do que mercadorias, como quaisquer outras. "Quem faria as leis em tal sociedade anarquista? Com que base decidiria o árbitro privado quais as acções que são criminosas e com que penalidades seriam ameaçadas? A resposta é que os sistemas legislativos seriam produzidos para o lucro no mercado, como os livros e os sutiãs são produzidos hoje. Pode haver concorrência entre diferentes marcas de leis, assim como há concorrência entre marcas de automóveis diferentes hoje em dia." (15)

O facto de David Friedman se concentrar em categorias como o direito e o sistema judicial mostra, no entanto, que ele, como anarquista ou anarcocapitalista, não pode ignorar as funções do Estado. Dá-se assim uma situação, ao contrário da pretensão de Friedman, de não conseguir negar o Estado e as suas funções, que são afirmadas simultaneamente com o mercado, com a forma mercadoria, etc. O que ele não vê é que o mercado e o Estado estão funcionalmente interrelacionados e interdependentes.

O mesmo acontece com Patri Friedman, neto de Milton Friedman, que vai ainda mais longe do que David Friedman, ao defender a criação de Estados insulares artificiais. Estes Estados insulares deveriam actuar como empresas startup experimentais: "O sistema estatal é uma tecnologia – e não existem neste sector empresas startup (!). Gostaríamos de possibilitar às pessoas a experimentação de formas de Estado, assim facilitando o progresso". (16)

Às sociedades existentes, porém, Patri Friedman não reconhece quaisquer possibilidades de modificação, pois há pouca concorrência entre os Estados. Patri Friedman gostaria de remediar isso construindo Estados insulares, que não deveriam ultrapassar o tamanho de Hong Kong. Esses Estados insulares experimentais poderiam ser constituídos livremente, em termos de conteúdo e de direito, desde que as pessoas da respectiva ilha estivessem de acordo; então, definitivamente, também deveria haver ilhas para fascistas! Mesmo ilhas de canibais (!) não são problema para ele: "Quando entre adultos há livre acordo para o canibalismo, não vejo nenhum problema nisso." Além disso, essas sociedades flutuantes deveriam decidir elas próprias quais os direitos humanos que deveriam aplicar-se nelas, pois "se fôssemos ditar aos Estados a que direitos humanos deveriam aderir, a experiência não teria sentido”. (17)

Assim, Patri Friedman pode imaginar qualquer sociedade concebível, não tendo problemas mesmo com o canibalismo, desde que tudo aconteça apenas com "autodeterminação"; só está fora do seu horizonte uma sociedade não mais baseada em dinheiro, mercadorias, trabalho, forma estatal, etc..

Que pensar disto? Será mais uma espécie de excesso literário, como os escritos do Marquês de Sade, ou será antes a expressão ideológica de processos iminentes de falência do Estado nos próprios Estados capitalistas centrais ?

As teses anarcocapitalistas, na minha opinião, podem perfeitamente ser entendidas no sentido de legitimarem "teoricamente" a falência do Estado (mesmo que isso possa não ser claro para os seus representantes), imaginando, com completa ignorância, uma sociedade de mercado (supostamente) sem Estado como uma sociedade livre. No entanto, tal sociedade já é logicamente impossível e mais provavelmente se desenvolverá como dominação de bandos e guerra civil molecular (que não exclui a dominação de bandos de "ordem superior", como os cartéis da droga) do que conseguirá realizar algo de desejável. Assim, várias formas de colapso do Estado são possíveis. Um delas seria, por exemplo, que as regiões ricas se separassem das restantes regiões mais enfraquecidas do país, proclamando "cidades privadas". Esta ideia de criar tais "cidades privadas livres", de que já se fala em vários lugares, assemelha-se ao conceito de pequenos Estados flutuantes de Patri Friedman, e é de facto claramente defendida por diversos libertários do direito. (18) Uma possibilidade ligeiramente diferente seria que certas regiões fossem efectivamente declaradas zonas económicas especiais do Estado, com a sua própria jurisdição e as suas próprias forças de segurança. Por exemplo, as Honduras permitiram a investidores privados a criação e construção de cidades-Estados privadas, ou seja, a construção de cidades inteiramente novas, porque o Estado já não domina o crime (!) nas suas próprias cidades, na suposição ingénua de que o crime e a corrupção aí não ocorreriam (esperança que, obviamente, não se cumpriu). Parece, de facto, uma última tentativa do governo para "criar normalidade e segurança", bem como uma "capitulação perante a própria lei." (19) Abdicando o Estado, por causa da sua impotência factual, de conseguir proporcionar "segurança", retirando-se o Estado, não fica para trás simplesmente uma sociedade livre, de pessoas livres, mas as formas sociais sobrevivem em substitutos zombies, e o resultado não é senão a barbárie!

 

Anarquismo como anacronismo

Os círculos anarquistas de esquerda geralmente rejeitariam com veemência ser incluídos na fileira do anarcocapitalismo. Ora uma equiparação imediata pode, na verdade, não se justificar, uma vez que os primeiros rejeitam um capitalismo radical por conta própria. Isto vale sobretudo para aqueles agitadores que se engajam na "resistência não-violenta" contra a energia nuclear, contra o militarismo, etc. (embora eles possam facilmente referir-se a Rothbard na sua agitação). Além disso, os círculos anarquistas de esquerda têm ainda assim uma pretensão de solidariedade (pelo menos sempre gostosamente afirmada) que dificilmente pode ser reivindicada pelo anarcocapitalismo e seus adeptos, para quem a famosa propriedade privada tem um estatuto quase divino.

O ponto decisivo, no entanto, é se essa rejeição e demarcação do anarcocapitalismo (20) também podem ser fundamentadas teoricamente.

Ora tal pretensão de fundamentação é desde logo difícil porque, segundo algumas críticas, a meu ver com razão, o anarquismo apresenta graves deficiências teóricas. (21) Em especial, grande parte dos/das anarquistas persistem na sua incompetência essencial, ou seja, não fazem a mínima ideia da crítica da economia no sentido de Marx. É o que se vê designadamente no facto de Marx ser geralmente equiparado ao marxismo, o que tem a sua origem no facto de os resultados da Nova Leitura de Marx e da Crítica do Valor, por exemplo, serem ignorados. O Marx "esotérico", portanto, permanece um livro fechado a sete chaves para os anarquistas de esquerda (ou mesmo um livro de cuja existência eles nem sequer suspeitam). Por maioria de razão um questionamento fundamental do capitalismo, que vá além de uma crítica androcêntrica do valor, como faz a crítica da dissociação-valor, não é assumido pelos círculos anarquistas de esquerda. (22)

A maioria dos/das anarquistas de esquerda não tem pejo em se juntar aos gesellianos e aos críticos dos juros (como Gerhard Senft), o que diz algo sobre o entendimento anarquista da "crítica da economia".

Mas o entendimento não conceptual da economia não é a única semelhança entre o anarquismo de esquerda e o anarcocapitalismo. Assim, o chamado anarquismo individual gosta de se referir a Max Stirner. Rothbard sofreu influências, além da Escola Austríaca, também de Benjamin Tucker, que por sua vez era um seguidor de Stirner. Assim, dadas as raízes históricas comuns, não surpreende que tanto o anarquismo de esquerda (pelo menos parte dele) como o anarcocapitalismo possam referir-se enfaticamente ao sujeito burguês (do mercado). O que já precisa de explicação é porque não é esta pista sistematicamente investigada. Simplesmente não basta dizer que o anarcocapitalismo não tem nada a ver com o anarquismo clássico, como faz Senft (ver nota 20). Quase não se pode falar de uma análise crítica da sua própria história entre os círculos anarquistas. (23) Se é que as respectivas publicações se ocupam da história do anarquismo, é mais no sentido de nostalgia, elaborando uma hagiografia anarquista. O resultado é uma certa arbitrariedade no conteúdo. (24) Para muitos, o anarquismo é mais um "sentido da vida" do que um ponto de vista teoricamente fundamentado.

Não é só uma crítica da economia completamente imprestável que constitui um obstáculo decisivo a qualquer pretensão teórica digna desse nome, mas também uma "crítica não-conceptual do Estado" (Robert Kurz), que é comum em círculos anarquistas, não deixa de ser semelhante à dos anarcocapitalistas. (25) Uma crítica da dinâmica do processo fetichista, uma apreensão teórica da síntese social, um questionamento fundamental da forma do sujeito burguês, são, portanto, fundamentalmente inatingíveis com o anarquismo. Essa é a intersecção teórica e a interconexão recíproca entre o anarquismo de esquerda e o anarcocapitalismo. (26)

Robert Kurz escreveu, criticando a crítica anarquista do Estado:

“O socialismo anarquista e qualquer socialismo pequeno-burguês em geral, que abstrai das formas transcendentais da relação social previamente ligadas à vontade empírica, gostaria de reduzir a questão da alternativa sempre a relações de vontade imediatamente empíricas e 'simples'. Por isso se lembra sempre de 'modelos' pequenos e razoáveis de cooperativas e comunidades com democracia de base. Dentro de cujos limites tudo deve decorrer 'livre de dominação' e de acordo com decisões comuns. Ora assim não se alcança nem a realidade nem o conceito de contexto social, e parece que se pretende fazer regredir a humanidade ao nível de aldeolas isoladas entre si, com a mais tosca produção de subsistência. Com base nas quais se constituiriam então, por maioria de razão, toscas e primitivas estruturas de dominação. A questão decisiva é a das formas de organização abrangentes das múltiplas produções, infra-estruturas e 'comunidades' isoladas, de acordo com o seu relacionamento interno que apenas enquanto todo constitui algo como socialização e com ela uma relação social. Nem podemos contentar-nos em definir a socialidade libertada como mera 'soma' exterior daquelas micro-estruturas cooperativas, nem o seu 'modelo' é suficiente para uma mediação social global, até transnacional ou planetária, de milhares de milhões de actividades de reprodução isoladas. (…) Se se quiser determinar mais de perto a 'totalidade' social e consequentemente o carácter de um 'plano comum' abrangente, então terá de se formular em traços largos a determinação da forma social qualitativamente diferente, que se veja livre do ditame da 'riqueza abstracta'. Trata-se, portanto, não de uma descrição utópica de detalhes nem de uma antecipação da práxis futura, mas sim da determinação geral de diferença em relação à socialização capitalista. (…)  Não admira que a esquerda impregnada por este deficit habitualmente também recue assustada perante o problema da 'síntese social' e se refugie no 'modelo platónico' da ideologia cooperativa, que desde o século XIX vem sendo invocado em múltiplas variações, até às ideias alternativas de um 'trabalho com sentido e sem chefe' e às comunas da década de 1980. O horizonte limitado à empresa ou à comuna não se perdeu aí; e sempre que a 'síntese social' cai no horizonte, a ideia regride de imediato para formas quase ou proto-estatistas, com o ilusório resseguro da 'democracia de base'. O anarquismo nunca chegou sequer além de uma estrutura cooperativa micro ou local, imaginada 'livre de dominação' (…), e em situação de aperto, tendo de considerar na prática um contexto social das suas comunidades de base (por exemplo, na hipótese de um desenvolvimento diferente da guerra civil de Espanha), tão-pouco ele poderia renunciar nesse caso a uma natural estatalidade que por si se constitui alienada, como expressão política da 'riqueza abstracta' não abolida e do seu contexto formal.” (27) (destaques no original)

Se os/as anarquistas de esquerda, em todo o caso sob condições de crise e de limite interno, tivessem a oportunidade de tornar realidade as suas habituais concepções cooperativas, quase nada daí sairia senão uma troca local pequeno-burguesa, com a respectiva moeda local. Isso diz respeito especialmente às partes do anarquismo que se referem a Silvio Gesell. Embora não muitos estejam organizados, o seu impacto e a recepção das suas ideias vão muito além do seu círculo. É o caso, por exemplo, da ATTAC, do "Movimento Pós-Crescimento", etc. (28) A brutalidade de tais projectos ficaria clara se esses contextos locais, supostamente "autodeterminados" e "livres de dominação e de hierarquia", fossem abordados em tempos de crise estatal e de inflação. Dinheiro local, como pretendem os gesellianos, seria "desviar a procura de fornecedores remotos para fornecedores locais." O resultado seria que "uma introdução geral de moedas locais (conforme exigido por algumas facções dos críticos do dinheiro) levaria a uma regressão do processo de socialização, que sempre foi o anseio secreto de muitos pequenos burgueses de mentalidade capitalista." (29) (destaque TM). Fazer regredir o processo de socialização também seria o resultado prático se a realização do anarcocapitalismo fosse efectuada especificamente em relação à privatização completa da polícia e da justiça.

Sob condições de crise, o gesellianismo ou equivalente seria um possível modo de continuação da concorrência por outros meios (e, claro, não uma via de saída do capitalismo) e nem outra coisa seria de esperar de um ponto de vista pequeno-burguês abalado pela crise, capaz de se ligar ao padrão de argumentação anti-semita. (30)

Além disso, das estruturas de poder informais, hoje existentes em contextos de esquerda (ou anarquistas), como podem ser vistas na "political correctness" e nas chamadas "awareness-teams" etc., poderia desenvolver-se algo dificilmente distinguível dos serviços de segurança privada, das milícias anarcocapitalistas, etc. (embora não necessariamente no sentido das milícias nigerianas com catanas, mas quem sabe).

Em resumo, pode-se dizer que o anarquismo de esquerda, no plano teórico, tem mais em comum com o anarcocapitalismo do que gostaria de admitir. Desta comunhão, sob as condições da crise, poderia surgir mais ou menos uma convergência prática. Porque não? Afinal de contas, os anti-imperialistas também não têm problema em marchar contra Israel com islamistas e outros anti-semitas, com os correspondentes slogans (como nas "Manifestações pró-Gaza" em 2014). Claro, isso não tem que acontecer, mas para isso os/as anarquistas de esquerda terão de se questionar radicalmente, em vez de se abespinharem perante a crítica que lhes é formulada (ver notas 1 e 24).

 

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(1) A propósito, note-se como a revista do anarquismo na Alemanha reagiu à crítica do mesmo (ver nota 24). Veja-se o editorial da Graswurzelrevolution (Revolução de Base) nº 384 (dezembro de 2013).

(2) Mesmo quando não as cite explicitamente, de seguida refiro-me às duas obras de Murray Rothbard: Für eine neue Freiheit – Kritik der politischen Gewalt [Para uma nova liberdade – crítica da violência política] Vol 2, Berlim 2012, 1ª ed. 1973; e Die Ethik der Freiheit [A ética da liberdade], 4ª ed., Sankt Augustin 2013, 1ª ed. 1982.

(3) Para uma nova liberdade, vol. 1. p. 11.

(4) Os problemas associados à liberdade absoluta de contratar foram reconhecidos no século XIX, o que levou à sua restrição. Com repercussão na crescente intervenção do Estado, bem como na legislação do trabalho e na legislação social. O historiador do direito Otto von Gierke, em 1889, refere-se assim a uma liberdade contratual ilimitada: “A liberdade contratual sem restrições destrói-se a si mesma. Uma arma formidável nas mãos do forte, um instrumento cego nas mãos do fraco, tornando-se um meio de opressão de um pelo outro, uma implacável exploração da superioridade intelectual e económica. A lei que, com formalismo imprudente, pode surgir como querida ou como tal assumida, a partir do livre movimento do negócio jurídico, traz, sob a aparência de uma ordem de paz, a bellum omnium contra omnes [guerra de todos contra todos] em formas legais. Hoje, mais do que nunca, o direito privado tem por missão defender o fraco contra o forte, o bem-estar geral contra o egoísmo dos indivíduos", citado por Uwe Wesel: Juristische Weltkunde – Eine Einführung in das Recht (Estudos jurídicos a nível mundial – Uma Introdução ao Direito, 8ª ed. Frankfurt 200 [1984]. Mas o facto de a restrição da liberdade contratual ter razões históricas não é tido em consideração por pessoas como Rothbard.

(5) Ética da Liberdade, p. 111s.

(6) Ainda que a ideia não possa ser aqui desenvolvida, note-se, no entanto, que a irracionalidade fetichista do Estado não se esgota necessariamente nas suas funções para o processo de valorização.

(7) Mikhail Bakunin: Gott und der Staat [Deus e o Estado], Grafenau 2003, p. 69

(8) Ver Robert Kurz: Weltordnungskrieg – Das Ende der Souveränität und die Wandlungen des Imperialismus im Zeitalter der Globalisierung [A guerra de ordenamento mundial -. O fim da soberania e as mudanças do imperialismo na era da globalização], Bad Honnef 2003 p.290s.

(9) Tomasz Konicz: Kapitalkollaps – Die finale Krise der Weltwirtschaft [O colapso do capital – A crise final da economia mundial], Hamburgo 2016, p.230.

(10) Robert Kurz: Subjektlose Herrschaft – Zur Überwindung einer verkürzten Gesellschaftskritik (1993), p. 206s, in: Blutige Vernunft – Essays zur emanzipatorischen Kritik der kapitalistischen Moderne und ihrer westlichen Werte, Bad Honnef 2004, p.153-221. Trad. port.: Dominação sem sujeito. Sobre a superação de uma crítica social redutora, in: http://www.obeco-online.org/rkurz86.htm

(11) Cf. Robert Kurz: Schwarzbuch Kapitalismus – Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft [O Capitalismo de Livro Negro – Um adeus à economia de mercado], Frankfurt 1999, p.680.

(12) Especialmente uma política monetária estatal é muito importante para o monetarismo.

(13) Milton Friedman: Kapitalismus und Freiheit [Capitalismo e Liberdade], 7ª ed. Munique 2010, 1ª ed. Chicago 1962, p. 164.

(14) David Friedman: Das Räderwerk der Freiheit – Für einen radikalen Kapitalismus [O mecanismo da liberdade – para um capitalismo radical], Grevenbroich 2016, de acordo com a 3ª ed. alargada de 2014, 1ª ed. 1973, p. 38.

(15) O mecanismo da liberdade, p. 162. Quanto às forças armadas, no entanto, D. Friedmann não parece ter a certeza, cf. p. 231s.

(16) Patri Friedman em conversa com o FAZ em 7.9.2009.

(17) Patri Friedman em conversa com o Zeit de 29.05.2008.

(18) Tito Gebel, por exemplo, ver freeprivatecities.com, bem como a entrevista com Andreas Marquart, outro representante da Escola Austríaca, "Lasst tausend Lichtensteins blühen – ‚Kleinstaaterei’ als Zukunftskonzept [Deixem florir mil Lichtensteins – Pequenos Estados como um conceito para o futuro]"; em: eigentümlich frei [verdadeiramente livre] n º 171 (abril de 2017).

(19) Inga Methling: Honduras permite que sejam fundadas cidades-Estados privadas, Süddeutsche Zeitung de 7.9.2012.

(20) Quase nunca há demarcação do anarcocapitalismo, sobretudo no sentido em que ele é mencionado "de passagem" e não se toma como foco da crítica justamente a pretensão dos anarcocapitalistas no plano da teoria do Estado. Por exemplo, Gerhard Senft, em seu texto "Zum Verhältnis zwischen Anarchismus und Ökonomie [Sobre a relação entre anarquismo e economia]", on-line em anarchismus.at.

(21) Sobre as críticas ao anarquismo contemporâneo, ver Evgeniy Kasakov: Den Anarchismus gibt es nicht! – Kritik einer Strömung, die sich der Kritik zu entziehen sucht [Não existe anarquismo! – Crítica de uma corrente que tenta furtar-se à crítica] (2015), em: Phase 2 nº 50; e Peter Bierl: Making Anarchism a Threat again? – Kritische Auseinandersetzung mit aktuellen anarchistischen Debatten [Making Anarchism a Threat again? – Análise crítica dos debates anarquistas actuais] (2015), em: Associazione delle Talpe/ Rosa Luxemburg Initiative Bremen (Hg): Maulwurfsarbeit III, online em www.rosalux.de/publikation/id/8328/.

(22) Na mais conhecida e importante publicação do meio anarquista da Alemanha, a Graswurzelrevolution [Revolução de Base], Nicolai Hagedorn parece ser o único que se referiu a Robert Kurz, abstraindo de algumas recensões (como foi o caso do livro de Gerd Bedszent Zusammenbruch in der Peripherie [Colapso na Periferia] na GWR nº 397, março de 2015). Por exemplo, em "Kapitalismus – sonst nichts? – Vom Märchen der Wohlstandsmaschine zu Kriterien der Emanzipation [Capitalismo – nada mais? – Das fábulas da máquina da abastança aos critérios de emancipação]", em GWR nº 374, Dezembro de 2012 (embora Hagedorn se refira no artigo mais a Lohoff/Trenkle). Não me parece, no entanto, que isso tenha desencadeado qualquer debate teórico... Tenho a impressão que na Graswurzelrevolution se imprime mais facilmente o milionésimo artigo sobre a Revolução Espanhola do que uma série de artigos que aborde sistematicamente a teoria da crise. Do ponto de vista teórico há uma grande pobreza.

(23) Mas isso não exclui que existam estudos históricos bastante interessantes e merecedores de leitura, por exemplo, críticas anarquistas ao bolchevismo, uma revisão da relação entre anarquismo e anti-semitismo, ou aspectos pouco conhecidos da história do movimento operário, cf. Hendrik Wallat: Staat oder Revolution – Aspekte und Probleme linker Bolschewismuskritik [Estado ou Revolução – Aspectos e problemas da crítica de esquerda ao bolchevismo], Münster de 2012, e, do mesmo autor, Oktoberrevolution oder Bolschewismus – Studien zu Leben und Werk von Isaak N. Steinberg [Revolução de outubro ou bolchevismo – Estudos sobre a vida e obra de Isaac N. Steinberg], Münster de 2013; Jürgen Mümken / Siegbert Wolf (ed): "Antisemit, das geht nicht unter Menschen“ – Anarchistische Positionen zu Antisemitismus, Zionismus und Israel [Anti-semita, é coisa que não existe entre as pessoas" – posições anarquistas sobre anti-semitismo, sionismo e Israel], 2 vol., Lich 2013/14 ; e, por exemplo, Andreas W. Hohmann (ed.): Ehern, tapfer, vergessen – Die unbekannte Internationale – Anarchisten & Syndikalisten und der Erste Weltkrieg [Indomáveis, corajosos, esquecidos – A Internacional desconhecida – Anarquistas e Sindicalistas e a Primeira Guerra Mundial], Lich 2013.

(24) Ver também Peter Bierl: Der Geheimbund der Revolutionäre [A Sociedade Secreta dos Revolucionários], Jungle World, 21.11.2013.

(25) Assim David Friedman refere-se à Islândia medieval e observa que não havia lá nenhum poder central estatal, sendo aparentemente tudo resolvido em privado, o que ele usou para argumentar que a sociedade anarcocapitalista é possível, em princípio. Ideias semelhantes também se encontram, por exemplo, com Rudolf Rocker (1873-1958), como quando ele olha para as culturas das cidades gregas e constata que não havia qualquer Estado (central) (como em: Die Entscheidung des Abendlandes [A decisão do Ocidente], Hamburgo 1949 2 vol.). No entanto, desconsidera-se que essas sociedades pré-modernas eram tudo menos capitalistas, dificilmente podendo tais investigações ser tomadas como um argumento a favor do anarcocapitalismo ou do anarquismo.

(26) Aqui é preciso levar a crédito do anarquismo de esquerda que até agora não tenha desenvolvido nenhum pensamento à la Marquês de Friedman (Ilha de canibalismo).

(27) Robert Kurz: Es rettet euch kein Leviathan – Thesen zu einer kritischen Staatstheorie, Zweiter Teil, in: EXIT! – Krise und Kritik der Warengesellschaft, nº 8, Berlin 2011, p.109-162, p.129s. Trad. port.: Não há Leviatã que vos salve. Teses para uma teoria crítica do Estado. Segunda parte, in: http://www.obeco-online.org/rkurz396.htm

(28) Ver Peter Bierl: Regionalgeld und Sozialdarwinismus – Oder: Die Attraktivität der einfachen falschen Lösungen [Dinheiro regional e darwinismo social – Ou: A atractividade das soluções simplesmente falsas] (2015), em: Associazione delle Talpe/ Rosa Luxemburg Initiative Bremen (Hg): Maulwurfsarbeit III, online em www.rosalux.de/publikation/id/8328/; especialmente sobre o "Movimento pós-crescimento" ver Daniel Späth: Liberalismus in der Fundamentalkrise: Eine Kritik der „Postwachstumsbewegung“ (2014) em exit-online.org. Trad. port.: O liberalismo na crise fundamental: Crítica do "movimento pós-crescimento", in: http://exit-lisboa.blogspot.com/2015/03/Daniel-Spath-O-liberalismo-na-crise-fundamental.html

(29) Knut Hüller: Kapital als Fiktion – Wie endloser Verteilungskampf die Profitrate senkt und ‚Finanzkrisen’ erzeugt [O capital como ficção – Como a infindável luta de distribuição reduz a taxa de lucro e gera "crises financeiras"], Hamburg 2015, p.311.

(30) O tema do anti-semitismo não pode ser aprofundado aqui. Sobre isso ver Robert Kurz: Politische Ökonomie des Antisemitismus – Die Verkleinbürgerlichung der Postmoderne und die Wiederkehr der Geldutopie von Silvio Gesell (1995) em exit-online.org. Trad. port.: Economia política do anti-semitismo. O pequeno-aburguesamento da Pós-Modernidade e o regresso da utopia do dinheiro de Silvio Gesell, in: http://www.obeco-online.org/rkurz164.htm

 

Original Die Freiheit zur Knechtschaft. Der Anarchokapitalismus als Schmuddelkind des Anarchismus in: www.exit-online.org, 18.06.2017. Tradução de Boaventura Antunes

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