Thomas Meyer
VIGIAR E PUNIR
Terror de Estado democrático em tempos de neoliberalismo
É sabido que, no patriarcado produtor de mercadorias, o ser humano apenas é reconhecido na medida em que possa provar que é um trabalhador produtivo. Os direitos que lhe são concedidos pela autoridade do Estado são válidos apenas sob reserva. O ser humano tem de enfiar-se à força na capa da forma da subjectividade burguesa, para poder depois lutar pela sua "felicidade" como "agente do trabalho abstracto" (Robert Kurz) (1) ; o que, desde logo, significa ter de vender-se de corpo e alma. Ao mesmo tempo, as categorias reais capitalistas, como dinheiro, mercadorias e trabalho, são consideradas pelo senso comum burguês como determinações ontológicas da existência humana. Assim que se começa a questioná-los na prática, os muito alardeados tolerância e pluralismo burgueses esbarram no seu limite absoluto, e os sujeitos começam a sentir claramente a força da mão visível do Estado (na verdade, já clara nas lutas sociais puramente imanentes ao sistema, como mostram o passado e o presente) (2).
No entanto, se a venda da própria força de trabalho não for bem sucedida, os desastres sociais que se seguem são percebidos, mesmo pelo Estado de direito mais liberal, apenas como um "problema de segurança". (3) Como Robert Kurz anotou no seu livro Schwarzbuch Kapitalismus [O Livro Negro do Capitalismo], a reacção contra os caídos fora e contra os pobres na terceira revolução industrial apenas pode assumir a forma de uma guerra contra os factos, a forma de uma cruzada ("A última cruzada do liberalismo"). (4)
Quanto à guerra contra os factos sociais, o sociólogo francês Loic Wacquant (5), no seu livro Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos, analisou a mudança na política de justiça criminal e prisional e suas causas nas últimas décadas. Essas mudanças reflectem-se sobretudo na crescente população prisional. (6) Embora o livro já tenha sido lançado há alguns anos [edição original 2009], e também então tenha sido objecto de recensão, ainda vale a pena prestar-lhe atenção, dado que o conjunto das observações de Wacquant, em tempos de limite interno e de estado de excepção permanente, não está de modo nenhum obsoleto, mas continua válido e eficaz. Ainda que Wacquant olhe principalmente para a situação nos EUA, na parte final também entra em desenvolvimentos paralelos na Europa. (7) Naturalmente que nem todos os detalhes e aspectos podem ser aqui delineados, sendo que o material reunido por Wacquant é muito extenso.
Do Estado caritativo ao Estado prisional
No início do século XXI, havia nos EUA aproximadamente 700 pessoas presas por 100.000 habitantes, num total de cerca de dois milhões. Em 1975 ainda não chegavam a 400.000. (8) "Mesmo na África do Sul, ao sair da guerra civil contra o apartheid, com 369 presos por 100 mil habitantes em 1993, encarcerava-se duas vezes menos que na próspera América do Presidente Clinton." (p. 136 [61], destaque no original)
Além disso, o sistema penal é agora o terceiro maior empregador (!) do país. E o Estado neoliberal não poupa despesas quando se trata do seu financiamento. Assim, "no Texas, o orçamento para a execução das sentenças era seis vezes superior ao orçamento para as universidades" (p. 165s.).
Mas não é só a população prisional que é exorbitantemente elevada, também são muitas as pessoas que estão sob "vigilância penal," ou seja, pessoas "condenadas a pena suspensa ou postas em liberdade condicional depois de cumprir a maior parte da pena [...] No seu conjunto, o número dos norte-americanos sob vigilância penal aumentou em 20 anos mais de quatro milhões e meio: subiu de 1,84 milhões em 1980 para [...] 6,47 milhões no ano 2000 [...]" (9) (p. 149 [69], destaque no original).
Sua situação continua precária; a probabilidade de voltarem para trás das grades é elevada. Além disso, eles são tratados como párias, sendo-lhes imposto um regime de vigilância rigorosa: "Pois, além do desdobramento das penas ditas intermediárias, tais como a prisão domiciliária ou num centro disciplinar (boot camp), a “colocação à prova” e a vigilância telefónica ou electrónica (com a utilização de pulseiras electrónicas), o domínio do sistema penal dos EUA alargou-se consideravelmente, graças à proliferação de bancos de dados criminais [...] Estima-se assim que as diversas polícias (locais, estaduais e federais) detêm hoje cerca de 55 milhões de “fichas criminais” – contra 35 milhões uma década atrás – referentes a cerca de 30 milhões de indivíduos, isto é, quase um terço da população adulta masculina do país. Têm acesso a estes bancos de dados não somente as administrações públicas, como os serviços de estrangeiros e os serviços sociais, mas também as pessoas e os organismos privados. Estes registos criminais são utilizados correntemente pelos empregadores, por exemplo, para eliminar os condenados pela justiça que procuram emprego. E não importa se os dados que neles figuram estão frequentemente incorrectos, caducados ou irrelevantes, quiçá ilegais: a sua circulação coloca sob a mira do aparelho policial e penal não apenas os criminosos e os simples suspeitos de delitos, mas também suas famílias e amigos, seus vizinhos e seus bairros” (p. 150 [70]).
Além disso, em muitos Estados é negado a essas pessoas o direito de voto durante o tempo na prisão, e em 13 Estados também durante o período em que estão sob vigilância penal (!), estando assim "cerca de 4,2 milhões de americanos excluídos do chamado sufrágio universal, dos quais 1,4 milhão de negros, ou seja, 14% dos eleitores afro-americanos." (p. 196 [97]) (10)
Como mencionado acima, os direitos civis são válidos apenas sob reserva. O desenvolvimento delineado por Wacquant para os EUA e para a Europa é um claro exemplo disso. (11)
Mas como aconteceu historicamente que a população prisional tenha continuado a crescer, embora a taxa de crimes violentos permanecesse constante ou mesmo declinasse? (12) O rápido aumento da "população prisional dos EUA não pode ser explicado por um aumento do crime violento; é uma consequência da extensão das penas de prisão a vários delitos de rua [...] que antes não tinham penas de prisão, em particular pequenos delitos de droga e a conduta conhecida como contravenção ou perturbação da ordem pública; e é uma consequência do contínuo agravamento das penas. (13) A partir de meados da década de 1970 [...] quando o governo federal declarou a "guerra às drogas" foram impostas penas de prisão cada vez mais longas a toda a gama de infracções, independentemente de se tratar de criminosos profissionais ou de criminosos ocasionais, de grandes criminosos ou de pequenos criminosos, de criminosos violentos ou não violentos." (p. 142s., destaque no original). Contrariamente a repetidas afirmações conservadoras, por conseguinte, as prisões não estão cheias de criminosos violentos, mas principalmente de pequenos criminosos não violentos (por infracções relacionadas com droga, por exemplo), na maior parte dos estratos inferiores da sociedade. Wacquant enfatiza repetidamente que aqui se trata sobretudo de "controlar a perturbadora 'populaça de rua'" (p. 148). Além disso, a população prisional é hoje (14) predominantemente (com base em sua participação na população total) de origem afro-americana, enquanto em 1950 era ainda constituída por 70% de brancos (p. 207).
A razão para o rápido aumento da população prisional, constituída principalmente por pobres (15), estará também no desmantelamento do Estado social, ou melhor, do "Estado caritativo", desde meados dos anos 70 (p. 68s.). A sublevação social daí resultante foi recebida com um reforço do Estado penal; em vez de "bem-estar" anunciava-se agora "trabalho forçado" e "prisão" – com o padrão explicativo ainda hoje comum de que os pobres apenas seriam pobres ou desempregados devido à sua dependência de subsídios sociais e à sua "depravação moral" (p. 70). Em qualquer caso, as numerosas reformas levaram a um novo entendimento do Estado para os pobres: "De acordo com esse entendimento, o comportamento dos cidadãos carentes e dependentes deve ser estritamente vigiado e, se necessário, punido, com base em protocolos rigorosos de controlo, de dissuasão e de sanção, não diferentes dos que são geralmente utilizados para os infractores do direito penal, que estão sob vigilância penal. A mudança 'da cenoura para o chicote´, de programas voluntários que facultam recursos, para programas obrigatórios que pretendem assegurar que as regras de conduta sejam respeitadas, com a ajuda de multas, de cortes nos benefícios e retirada das prestações, sem levar em conta a sua necessidade, ou seja, programas que tratam os pobres culturalmente como criminosos, violando o direito civil do trabalho assalariado, esta mudança pretende, portanto, impedir as camadas inferiores da classe trabalhadora de fazer exigências de recursos públicos, por um lado, e, por outro, obrigar à força os seus membros a submeterem-se à moral convencional". (p. 79, destaque no original)
O culminar provisório dessas reformas foi a adoptada por Clinton em 1996: Esta "reforma" historicamente não trouxe de facto nada de novo, "limitou-se a reciclar remédios vindos directamente da era colonial e que, no passado, já deram provas da sua ineficácia: estabelecer uma demarcação rígida entre pobres 'dignos' e 'indignos', empurrando assim estes últimos, através da coacção, para os segmentos inferiores do mercado de trabalho, e obrigando-os a 'corrigir' os comportamentos supostamente desviantes e questionáveis, considerados a causa da miséria" (p. 98 [41])
A criminalização da pobreza também assumiu novas dimensões sob Clinton: "A transformação da assistência social num programa penal estende-se mesmo ao seu contexto material e ambiental. Mesmo externamente há uma notável semelhança entre o serviço social pós-reforma (16) e uma prisão [...] As actividades obrigatórias, com que os beneficiários do Estado social devem ser permeados pelo ethos do trabalho, e a série de incentivos [...] e, especialmente, de penalidades (escalada de cortes de benefícios, até à retirada permanente do direito à prestação) são suspeitosamente semelhantes aos programas de vigilância intensiva para os condenados a penas suspensas ou em liberdade condicional ou com outras "sanções intermédias" – campos de educação, serviços comunitários, etc. E seminários como as "oficinas de prontidão para o trabalho" [...] ou os "treinos de capacidades vitais" [...] lembram fortemente os cursos de ressocialização sem conteúdo para presidiários [...] Além disso, vendo bem, abstraindo do encarceramento, as condições de trabalho dos detidos não são assim tão diferentes das que os assalariados não qualificados encontram cá fora, depois da "reforma do Estado social". (p. 120, 194)
Quando os pobres são tratados como criminosos, é sinal de que estão a ser privados do estatuto de sujeito burguês e reduzidos à sua "vida nua" (Agamben). Sobre eles paira a ameaça do estado de excepção. Como caídos fora, eles são objeto de controlo do punho visível do Estado, armado com cacetes, canhões e burocratas criminosos. Eles são praticamente feitos "ciganos"; porque seu tratamento é muito semelhante ao dos Sinti e Roma – que durante séculos representaram a antítese dos companheiros burgueses, civilizados e diligentemente trabalhadores – no racismo anticigano. (17)
O que ainda precisa ser esclarecido é por quê houve uma mudança na política penal desde meados dos anos 70? Wacquant salienta em vários pontos que naquela época houve a uma "fragmentação do trabalho assalariado" (p. 291), uma "degradação do mercado de trabalho" (p. 80), um "avanço do trabalho assalariado dessocializado, como vector de insegurança social" (p. 285 destaque no original). Wacquant anota fenomenologicamente a precarização do trabalho assalariado, isto é, a crise da sociedade do trabalho, como poderíamos chamá-la, mas sem qualquer justificação em termos de teoria do valor. A consequência das mudanças económicas desde a década de 1970 foi que se tornaram economicamente supérfluos especialmente os negros que trabalhavam nas indústrias fordistas. Para muitos, em seguida, o tráfico de droga tornou-se a mais importante fonte de rendimento, (18) daí também a proclamada guerra contra as drogas, dado que assim se poderia tornar a pobreza invisível, fazendo desaparecer os economicamente supérfluos atrás das grades. A prisão é, como Wacquant escreve pertinentemente, “[um] repositório para corpos negros indesejados" (p. 80).
Para Wacquant, no entanto, a economia não é a única razão para o aumento da população prisional, uma vez que ainda não consegue explicar o racismo óbvio; os negros são desproporcionalmente afectados. (19) Devido ao movimento negro dos direitos civis, que também teve o apoio de sectores da classe média branca, os guetos negros foram rompidos nas cidades e a promoção social parecia possível. Mas, quando Martin Luther King começou a atacar não apenas a desigualdade jurídica burguesa, mas também a desigualdade social entre negros e brancos, o apoio dos brancos diminuiu. Segundo Wacquant, o desmantelar do Estado social (aproveitado por muitos negros) pode ser entendido como uma tentativa de restabelecer um racismo de exclusão, após o sucesso do movimento dos direitos civis (p. 205s.). Com a política de detenção a isso associada, a prisão tornou-se um "gueto de substituição".
Os perversos ao pelourinho!
Mas os negros e os pobres não são os únicos que caem sob a alçada do novo regime da lei penal. Num outro alvo principal deste regime, evidenciam-se-se claramente a histeria e o desejo de vingança em que o desejo burguês de harmonia (de cunho protestante) se transforma: é o caso dos (alegados!) (20) criminosos sexuais.
Wacquant escreve: "Pessoas suspeitas ou condenadas por um crime sexual, naturalmente que há muito têm sido objecto de medos violentos e de duras sanções, porque numa cultura puritana, (21) que está sob o jugo de tabus, que até recentemente declaravam como crime a contracepção, o adultério, jogos sexuais (como sexo oral e anal), mesmo entre marido e mulher, bem como práticas auto-eróticas banais, como ver revistas pornográficas, para não falar de casamentos mistos, atinge essas pessoas com um estigma particularmente malicioso."
A histeria contra criminosos sexuais não é aqui novidade. A actual tem vários precedentes históricos: Nos anos 1890-1914 "os sexualmente 'perversos' eram identificados pela primeira vez e separados (! TM) para medidas eugénicas (22) […], e nos anos 1936-57, acreditava-se que hordas de 'psicopatas sexuais' vagueavam em busca de vítimas inocentes por todo o país [e] estavam prontos para atingir todos os cantos”, antecipando a actual histeria alimentada pela indústria cultural (p. 219).
Também aqui as "actividades legislativas" do regime penal não têm nada a ver com o real "desenvolvimento estatístico desses delitos". Toda uma série de leis foi aprovada nos anos 90, que são agrupadas por conveniência na 'Lei de Megan' (23). Aqui se incluem medidas que não podem ser chamadas senão de totalitárias. Na Louisiana, por exemplo, um ex-criminoso sexual "sob pena de um ano de prisão […] é pessoalmente responsável por comunicar por escrito o seu estatuto ao seu senhorio, aos seus vizinhos e aos responsáveis das escolas vizinhas e dos parques públicos [...] Além disso a lei permite "todas as formas de publicidade", incluindo comunicados à imprensa, cartazes, folhetos e autocolantes no pára-choques do carro do criminoso sexual. Os tribunais podem até mesmo exigir que um (ex-)criminoso condenado por delito sexual use determinado vestuário, indicando o seu estatuto jurídico, à semelhança da estrela ou do barrete amarelo que os judeus eram obrigados a usar nas cidades medievais." (p. 226)
Naturalmente que os ex-infractores são registados em bancos de dados públicos (e disponíveis em CD-ROM). Não é preciso dizer que esses bancos de dados estão se tornando cada vez maiores, por exemplo, em 1998, estavam registados na Califórnia um em cada 150 adultos do sexo masculino. No entanto, esses dados, que ninguém se preocupa em verificar, acabam por se revelar errados em muitos casos. [...] Além disso, o CD-ROM de Megan não dá a data das infracções – que podem ir até 1944 – nem refere os factos, sendo que muitos desses delitos já há muito deixaram de ser puníveis […]" (p. 229)
Além disso, muitos Estados adoptaram a lei dos "dois crimes", segundo a qual criminosos sexuais reincidentes ficam automaticamente toda a vida na prisão, podendo aí ser obrigados a deixar-se castrar quimicamente (!) (p. 225). Para criminosos sexuais, os métodos de terapia psicoterapêutica, muito eficazes, foram massivamente reduzidos (p. 240). Cumprida completamente uma pena de prisão, pode surgir o internamento forçado permanente em psiquiatria, que não é muito diferente de uma prisão de alta segurança (cela solitária, etc.). É suficiente para este propósito que, devido a uma "anormalidade mental", um perigo correspondente seja considerado (!) (p. 244).
Acresce que, no caso dos crimes sexuais, os media, com o seu sensacionalismo, empolam de tal modo os casos isolados que o idiota burguês de classe média tem a impressão de que haveria uma "epidemia". Assim é fornecida uma determinada imagem do criminoso sexual: O criminoso sexual é desviante e perigoso, ninguém fala de uma possível reabilitação, e as sanções impostas seriam demasiado frouxas (p. 220s.). Não estamos longe de uma mobilização para o linchamento. Mas depois de sabido que um criminoso sexual está detido, pode acontecer que ele tenha de ser transferido, por causa da multidão de linchadores protestante-burguesa, razão pela qual "os serviços prisionais da Califórnia estão a considerar criar no deserto da Califórnia uma espécie de "reserva legal" (!, TM), onde poderiam colocar sob observação os criminosos sexuais postos em liberdade […]" (p. 232) (24) Deve sublinhar-se que qualquer pessoa que tenha cometido uma infracção correspondente, ou supostamente a tenha cometido, é classificada na categoria de "sex offender" com todas as consequências implícitas. (25) Provavelmente seria realmente mais humano fuzilar os (supostos) criminosos sexuais, e até seria mais barato...
O tratamento dos caídos fora nos EUA é um excelente exemplo da guerra neoliberal contra os factos sociais. O estado de excepção paira potencialmente por cima de todos. Ele está se tornando cada vez mais a normalidade, estendendo-se por princípio a cada vez mais pessoas. O clube do Estado democrático é correspondentemente rearmado. O terror de Estado torna-se um programa que promete lei e ordem. Cacete e prisão foram sempre a ultima ratio do Estado – justamente também para as maravilhosas democracias ocidentais; no entanto, a diferença em relação aos tempos anteriores pode estar em que o regime de direito penal actual, com as suas medidas de vigilância, já não estabelece limites (e provavelmente não pode estabelecer). Escreve Wacquant: "Em fevereiro de 1999, a Assembleia da Virgínia deu início ao exame de um projecto de lei visando permitir o acesso via Internet à lista completa de todos os condenados em processo penal, adultos e menores, mesmo por simples infrações ao Código da Estrada e por faltas relativas à regulamentação de licenças e registos. O panoptismo punitivo tem um futuro promissor nos EUA" (p. 245 [144], destaque no original)
Quando o Estado burguês em crise não consegue qualquer êxito na luta contra a realidade, com a sua prática de encarceramento e vigilância, nem pretende definir para si um paraíso de virtude cívica, ele reage apenas com uma intensificação de sua famosa prática de terror, que continua a aumentar em delírios paranóicos. Assim, o mundo que se torna caótico continua a não ser compreendido pelos fanáticos da ordem penal burguesa, decretando estes, em sua insanidade, medidas e regulamentos que, embora prometam como meta o resgate da "segurança" e da "liberdade", transformam cada vez mais toda a sociedade numa prisão, assim tornando qualquer liberdade e segurança numa farsa.
Loic Wacquant: Bestrafen der Armen – Zur neoliberalen Regierung der sozialen Unsicherheit, Opladen/Berlin/Toronto, Verlag Barbara Budrich, 2ª ed., 2013, 360 p.
[Loic Wacquant: Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos, Rio de Janeiro, 2ª ed., Revan, 2003, 168 p.]
(1) Ver Robert Kurz: "Die Substanz des Kapitals – Abstrakte Arbeit als gesellschaftliche Realmetaphysik und die absolute innere Schranke der Verwertung", Zweiter Teil, p. 210, in: EXIT! – Krise und Kritik der Warengesellschaft, Nr. 2 (2005), S. 162-235. Trad. port.: A Substância do Capital. O trabalho abstracto como metafísica real social e o limite interno absoluto da valorização. Segunda parte, in: http://www.obeco-online.org/rkurz226.htm
(2) O que também é muito claro nas reacções contra a resistência ao capitalismo emergente, em tempos da acumulação original, ver, por exemplo, Peter Linebaugh, Marcus Rediker. – Die vielköpfige Hydra – Die verborgene Geschichte des revolutionären Atlantiks [A Hidra de muitas cabeças – A História Oculta do Atlântico Revolucionário], Berlim / Hamburgo, Assoziation A, 2008; ver também Silvia Federici: Caliban und die Hexe – Frauen, der Körper und die ursprüngliche Akkumulation [Caliban e a bruxa – As mulheres, o corpo e a acumulação original], Viena, mandelbaum, 2012.
(3) Também aqui se descobre alguma coisa olhando para as origens históricas do pensamento burguês sobre segurança, ver Matthias Bohlender: Metamorphosen des liberalen Regierungsdenkens – Politische Ökonomie, Polizei und Pauperismus [Metamorfoses da ideia de governo liberal – Economia Política, polícia e pauperismo], Weilerswist, Velbrück Wissenschaft, 2007. Se se perceber a dimensão social, então os apoios sociais, as esmolas estatais são concedidos com o objetivo pretendido de lealdade ao sistema existente; a pobreza, portanto, sempre foi considerada um problema pedagógico.
(4) Robert Kurz: Schwarzbuch Kapitalismus – Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft [O livro negro do capitalismo – Um adeus à economia de mercado], Frankfurt a. M„ Eichborn, 1999, p. 667s.
(5) Wacquant lecciona na Universidade da California, em Berkeley, ver loicwacquant.net.
(6) Wacquant, de resto, não é o primeiro a apresentar tal análise: Cerca de uma década antes apareceu o livro de Nils Christie: Kriminalitätskontrolle als Industrie – Auf dem Weg zu Gulags westlicher Art [O controlo da criminalidade como indústria – A caminho do Gulag de estilo ocidental], 2ª edição, Pfaffenweiler, Centaurus, 1995, 1ª ed. Oslo, 1993. Na primeira edição do subtítulo ainda vinha com um ponto de interrogação, que foi omitido na edição seguinte, por razões óbvias.
(7) A experiência das últimas décadas mostra que vale para os países do núcleo capitalista que certos desenvolvimentos nos EUA chegam também à Europa após um certo lapso de tempo. Se a conexão com o capitalismo não é reflectida na sua totalidade e tais desenvolvimentos são atribuídos causalmente aos EUA, isso pode ser uma fonte de anti-americanismo, cf. Barbara Fried: "Antiamerikanismus als Kulturalisierung von Differenz – Versuch einer empirischen Ideologiekritik" ["Anti-americanismo como culturalização da diferença – Tentativa de uma crítica empírica da ideologia"], em: Associazione delle Talpe, Rosa Luxemburg Initiative Bremen (Hg.): Maulwurfsarbeit II – Kritik in Zeiten zerstörter Illusionen, (2012), S. 70-88.
(8) P. 132s. Dados mais recentes, que hoje, sem surpresa, tendem a ser mais elevados, podem ser encontrados em prison studies.org. Além disso, cerca de um quarto dos prisioneiros de todo o mundo estão em prisões nos EUA, embora eu nem sempre tenha a certeza de quão confiáveis os números realmente são. Wacquant observa, por exemplo, que na China, em 2003, foram executadas cerca de 726 pessoas. Se se contarem as execuções não ordenadas pelos tribunais, chegar-se-ia a 10 000 – 15 000 (p. 57). Para algumas populações de presos, pode haver discrepâncias semelhantes entre números "oficiais" e "não oficiais". As condições catastróficas nas prisões superlotadas, sobre as quais Wacquant fornece material muito chocante, não serão relatadas aqui por razões de espaço; os interessados podem verificar em hrw.org.
(9) Números recentes falam de cerca de sete milhões de pessoas na prisão ou sob vigilância penal, ou seja, um em cada 31 (!) adultos.
(10) Um estudo recente menciona um número de 5,85 milhões de pessoas afectadas por uma privação de direitos, ver Jean Chung: "Felony Disenfrachisement: A Primer", 2016/05/10, em sentencingproject.org.
(11) No contexto da luta contra o terrorismo, a vigilância e a mania de controlo intensificaram-se mais uma vez. O impacto sobre as liberdades civis, etc. já foram investigadas anos atrás, em vários livros, como Ilija Trojanow, Juli Zeh: Angriff auf die Freiheit – Sicherheitswahn, Überwachungsstaat und der Abbau bürgerlicher Rechte [Ataque à liberdade – Obsessão com a segurança, Estado de vigilância e desmantelamento dos direitos civis], München, dtv, 2010. Claro que não deve ser aqui minimizado o jihadismo, como foi e será o caso de alguns na esquerda; no entanto, as medidas antiterroristas dificilmente se opõem explicitamente ao islamismo; assim Trojanow e Zeh explicam que essas leis agora se aplicam em áreas completamente diferentes: "Há muito tempo que a mania de controlo deixou o campo do combate ao terrorismo, abrangendo também o sistema de saúde, o sistema fiscal ... e mesmo a vida quotidiana na rua. No Reino Unido, as autoridades locais utilizam a legislação anti-terrorismo (nomeadamente o 'Regulation of Investigatory Powers Act', 2000, RIPA) para espiar cidadãos que podem jogar lixo na rua, deitar fora excrementos de cão indevidamente ou vender ilegalmente pizas [... ] Os pais são espiados para descobrir se matriculam os filhos numa escola fora da área indicada. No primeiro semestre de 2008, foram iniciados 867 inquéritos judiciais por terrorismo contra delinquentes do quotidiano. Num abrir e fechar de olhos a "luta contra o terrorismo" tornou-se a espada afiada nas mãos do filisteísmo da lei e ordem, como se a melhor forma social se realizasse num campo reeducação [...] A luta contra o terrorismo tende a tornar-se uma luta contra o 'comportamento socialmente deletério'. Nessa situação, em cada cidadão espreita um pequeno terrorista e a sociedade livre está prestes a afundar-se" (p. 134s.). A chamada "segurança" acaba por ser sacrificada.
(12) Os números de 1960-2014 podem ser consultados em http://www.disastercenter.com/crime/uscrime.htm.
(13) Particularmente picante é a chamada "Three-strikes law" [lei dos três golpes], segundo a qual uma terceira sentença impõe automaticamente a prisão perpétua. Na Califórnia, isso conta para cerca de 500 delitos, incluindo crimes não violentos, como o simples furto em lojas (!) (p. 85).
(14) Em 2013, por exemplo, de um total de 18,5 milhões de homens negros estavam 745.000 na prisão, cf., por exemplo, Antonio Moore: "The black male incarceration problem is real and it's catastrophic", huffington post.com de 17.02.2015; para um negro a probabilidade de acabar atrás das grades é seis vezes maior que para um branco, ver Georg Gao: "The black-white gap in incarceration rates", pewre search.org de 18.07.2014.
(15) O facto de que nada mudou até hoje é repetidamente mostrado por vários estudos, como Bernadette Rabuy and Daniel Kopf: "Prisons of Poverty: Uncovering the pre-incarceration incomes of the imprisoned" (2015) em prisonpolicy.org.
(16) Aliás, os serviços locais dos ministérios sociais são chamados de "Job Centers" (!), (S. 119). Portanto, é muito lamentável que certa esquerda alemã se esforce para apresentar Hartz IV como algo especificamente alemão e não como uma "ofensiva do neoliberalismo", ISF: "Wechselbad der Gefühle, Produktion der Panik Hartz IV, die Wendung zum autoritären Staat und die Nazifikation des Subjekts" [Montanha russa emocional, a produção de pânico Hartz IV, a viragem para o Estado autoritário e a nazificação do sujeito], in: dies. Das Konzept Materialismus – Pamphlete und Traktate, Freiburg, ça ira, 2009.
(17) Ver Roswitha Scholz: "Homo Sacer und die 'Zigeunere'. Antiziganismus – Überlegungen zu einer wesentlichen und deshalb 'vergessenen' Variante des modernen Rassismus", in: EXIT!- Krise und Kritik der Warengesellschaft, Nr 4 (2007), p. 177-227; trad. port.: Homo Sacer e Os Ciganos. O Anticiganismo – Reflexões sobre uma variante essencial e por isso esquecida do racismo moderno, in: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz7.htm. Ver também as duas antologias sobre Antiziganistische Zustände [Situações anticiganas], Münster, Unrast, org. de Markus End e outros (2009) e (2013).
(18) Ver a entrevista com Curtis Price "In den Ghettos sind die Drogen zum wichtigsten Wirtschaftsfaktor geworden" [Nos guetos as drogas tornaram-se o factor económico mais importante] in Wildcat -Zirkular Nr. 42/43 (1998).
(19) A guerra contra as drogas é afinal uma guerra contra os negros, segundo Michelle Alexander, ver, por exemplo, Larry Gabriel: "Jim Crow's drug war – Why the War of Drugs is a war against black pepole", in: Detroit Metro Times vom 28.11.2012. Sobre o racismo do sistema penal nos EUA ver também a conversa com Michelle Alexander in Junge Welt, 25.08.2012.
(20) O "alegado" é enfatizado aqui porque o delito sexual é também sexo consensual entre jovens adultos e entre adolescentes. Nos EUA, chama-se a isso statutory rape, isto é, violação segundo a lei. O agravamento ainda hoje em curso do direito penal sexual, naturalmente também na Europa, levou de facto à crescente criminalização da sexualidade juvenil consensual (!), com todas as consequências mencionadas. Os media alemães são ocasionalmente assombrados com as notícias correspondentes, tais como o "caso" Kaitlyn Hunt, em queer.de. Não passa portanto de hipocrisia e ignorância sem fundo quando alguns se queixam da política homofóbica na Rússia (naturalmente com razão), cobrindo simultaneamente com um manto de silêncio a política sexual nos EUA. Este tema (e os desenvolvimentos paralelos na Europa / na Alemanha) foi sistematicamente desenvolvido no espaço de língua alemã por Max Roth: Uncle Sams's Sexualhölle erobert die Welt – Die neue Hexenjagd auf .Kinderschänder und die weltweite Enthumanisierung des Sexualstrafrechts unter US-Diktat [O inferno sexual do Tio Sam à conquista do mundo – A nova caça às bruxas em busca de pedófilos e a desumanização mundial do direito penal sexual sob a égide dos EUA], publicado pela editora anti-imperialista Ahriman, Freiburg, 2013. Embora o anti-feminismo e o anti-americanismo primário de Roth sejam de criticar, o material reunido sobre o tema (principalmente a partir de fontes norte-americanas) abona a seu favor e torna o livro bem digno de ser lido.
(21) Ver na obra citada de Roth, "A herança puritana da América", (p. 114-156).
(22) Sobre a eugenia nos EUA ver o capítulo “A civilização eugénica” in Jeremy Rifkin: Das biotechnische Zeitalter – Das Geschäft mit der Gentechnik, München, Bertelsmann, 1998 [O século da biotecnologia – Da valorização dos genes à reconstrução do mundo, 1999]
(23) Mas não se ficou por aqui. Em 2006, foi aprovada o chamado Adam Walsh Act. Esta lei prevê o registo público obrigatório dos "delinquentes sexuais" juvenis. Com o "Adam Walsh Act foi criada autenticamente uma nova agência federal (com a sigla obscena SMART) para o registo, tendo o custo dos Estados federados com a aplicação da lei sido estimados num total de quase mil milhões de dólares, apenas para o primeiro ano. O Adam Walsh Act expandiu tanto o âmbito dos registos (por exemplo, impressões digitais, impressões da palma da mão e amostras de DNA), como o das relações pessoais dos afectados [...] Acções não-violentas que o direito penal sexual americano declara actos ilícitos, são expressamente suficientes para justificar o registo. Contactos sexuais consensuais entre ou com adolescentes podem, portanto, ser suficientes para o registo, bem como, por exemplo, exibicionismo ou simples nudez em público, como tomar banho nu [...]” (Roth p. 231s.). Devemos também mencionar a actual definição de "pornografia infantil" que inclui fotos nuas feitas pelo próprio e trocadas entre menores, ver Roth, "Uma definição islamoide de pornografia infantil" (pp. 240-263). Só se pode chamar isso de delírio paranóico.
(24) Tais campos de internamento são agora realidade.
(25) Em 2015, estavam registados nos EUA cerca de 750.000 delinquentes sexuais, cf. statisticbrain.com.
Original ÜBERWACHEN UND STRAFEN – Zum demokratischen Staatsterror in Zeiten des Neoliberalismus. Publicado no nº 14 da revista exit! Krise und Kritik der Warengesellschaft, ISBN 978-3-89502-403-0, Maio de 2017. Tradução de Boaventura Antunes