Thomas Meyer
BUSINESS AS USUAL
Sobre a loucura continuada do modo de produção capitalista
É sempre agradável, na análise do capitalismo em geral e da crise em 2007/2008 em particular, que a loucura real do capitalismo seja efectivamente percebida e a partir daí se formule uma crítica do mesmo. Acho que é esse o caso do livro de Paul Mattick Jr. (1), escrito em 2011 e traduzido para alemão em 2012, Business as Usual – The Economic Crisis and the Failure of Capitalism. (2)
Neste livro, Mattick descreve a história das crises económicas e pugna por um debate histórico concreto sobre o capitalismo. Por regra, no entanto, as crises não são realmente explicadas nem compreendidas, por incapacidade de relacioná-las com a história interna e com a lógica de valorização do capitalismo. Isto acontece frequentemente porque o capitalismo é percebido como natural, e nem se pensa em considerá-lo historicamente. É o que Mattick tenta remediar neste livro.
O capitalismo como imposição e crise
A situação é conhecida: Com o estouro da bolha imobiliária em 2007/2008 começou a chamada crise financeira. A maioria dos comentários comungavam de uma real falta de compreensão do capitalismo. Com razão se acusou o mainstream da economia, principalmente da neoclássica, (3) de não ter conseguido formular previsões razoavelmente confiáveis, nem ter explicações plausíveis para a actual situação económica. Os críticos do neoliberalismo, da desregulamentação, etc., por sua vez, também foram cegos perante a História, como o keynesiano Paul Krugman, que não se ocupou das razões por que a teoria keynesiana ficou desacreditada nos anos de 1970 (p. 25 ).
Um problema fundamental, segundo Mattick, "está na abordagem predominante [...] das questões económicas actuais. Parte do problema consiste nos conceitos com que se tenta entender o sistema social em que vivemos." (p. 30)
Para entender a crise actual, diz Mattick, é preciso olhar para a história do capitalismo e para a sua dinâmica histórica. Em particular, deve-se tomar nota da natureza das crises no capitalismo, de facto diferentes das crises de fome das sociedade pré-modernas: "Pois, à medida que a economia crescentemente dominada pelo dinheiro resultou na revolução industrial, e o capitalismo se estendeu para áreas tão grandes que se tornou o sistema social dominante, um novo fenómeno surgiu: crises do sistema social como um todo. É claro que muitos factores disruptivos, como a guerra, a peste e as más colheitas, já tinham afectado a produção social antes. No entanto, a introdução do capitalismo trouxe algo de novo consigo: Apesar das boas colheitas e de montes de alimentos, havia fome [...] Tais catástrofes já não tinham agora causas naturais ou políticas, mas remetiam para factores económicos específicos: faltava o dinheiro para comprar os bens necessários, os lucros eram muito baixos para que o investimento na produção tivesse valido a pena." (p. 35)
Não sendo estes factos tidos em conta, já então acontecia que os economistas burgueses procuravam as causas das crises em factores não-económicos ou não sociais, como William Stanley Jevons, "que teimosamente tentou estabelecer desde 1875 uma correlação entre os altos e baixos económicos e o ciclo das manchas solares […]." Bem contrária foi a posição de Marx:" Marx argumentou que a essência do capitalismo provocaria uma tendência de crise, que se realizaria em depressões constantemente recorrentes e acabaria por levar à queda do sistema. No entanto, a sua abordagem diferia tão fundamentalmente das teorias económicas habituais que outros teóricos que lidaram com a questão – incluindo a maioria dos que se consideravam marxistas – tiveram dificuldade em sequer entender as suas ideias, por muito que elas lhes pudessem parecer úteis" (p. 38s.)
Mas alguns economistas burgueses conseguiram reconhecer o óbvio, como B. Wesley Mitchell (1874-1948), em seu livro de 1927 sobre o ciclo económico, onde escreveu: "Não é o que a empresa produz, mas o que ela ganha, que constitui o seu objecto social. [...] O curso dos negócios numa economia monetária é determinado pelos lucros actuais e esperados. "(p. 43)
Mattick afirma que é bastante surpreendente que a maioria dos economistas até hoje tenha deixado escapar essa percepção.
No entanto, Mitchell não consegue fornecer uma explicação teórica para a flutuação dos lucros. Tão pouco ele se coloca a questão de saber o que é realmente o dinheiro: "Essas são questões que nem a um economista de orientação histórica como Mitchell vêm à ideia, porque a existência do dinheiro lhe parecia perfeitamente natural [...]. Colocar essa questão ao cidadão de uma sociedade capitalista é como perguntar a um morador do antigo Egipto por que razão o nível da água do Nilo e, portanto, o crescimento e declínio dos rendimentos agrícolas são determinados por Osíris. Respondê-la requer uma suficiente distância mental das convenções sociais [...] para entender o dinheiro, e com ele o lucro, como instituições sociais historicamente peculiares, que têm certas consequências para o nosso modo de vida." (p. 48) O trabalho assalariado, ou seja, o ser humano reduzido a portador da força de trabalho, a relação de género burguesa, ou seja, a dupla idiotice da cozinha e da carreira, e um pensamento que apenas consegue reconhecer todo o mundo como um substrato para a valorização do valor, particularmente na sua prática, também seriam questões a acrescentar, na minha opinião.
Além disso, esquece-se que a maioria das pessoas "[...] em grande parte do mundo, mesmo no passado recente – pouco ou nada estavam dependentes do dinheiro[...], que o dinheiro aparece de facto em muitos tipos de sociedades, mas apenas no capitalismo desempenha um papel central na produção e na distribuição [...]. Em tal sistema, o dinheiro tem um significado social diferente do das sociedades anteriores. [...] No capitalismo, a distribuição ocorre identificando quais produtos são vendáveis e em que quantidades – e não através de um processo de decisão social sobre o que deve ser produzido." (p. 50s.) (4)
Mattick observa que as crises têm a ver com a dinâmica de valorização do capitalismo: por um lado, é preciso obter um máximo de "rentabilidade" – pois ganhar dinheiro é o aspecto decisivo da produção capitalista – por outro lado, é necessário impor-se na concorrência e reduzir custos, aumentando a produtividade do trabalho, reduzindo a proporção de mão de obra empregada em relação às quantidades produzidas. Como resultado, o custo dos meios de produção aumenta em relação ao dos salários, tornando cada produto mais barato. O que se manifesta em mercados saturados, declínio do investimento em meios de produção, etc., e aumento do desemprego (p. 59s.).
A miséria aparece como falta de procura. É exactamente aí que o keynesianismo começa. A ideia era que o Estado gerasse procura através do crédito (por exemplo, com projectos de infraestruturas) (5), a fim de realimentar a dinâmica da valorização, de modo a ultrapassar a depressão e, consequentemente, pagar a dívida, através do aumento das receitas fiscais. O modelo de Keynes parecia ser bem sucedido, a depressão foi ultrapassada (não em último lugar graças à Segunda Guerra Mundial, p. 86s.) E partes da humanidade puderam, então, ficar felizes com o milagre económico (a "idade de ouro", como Mattick lhe chama). No entanto, os métodos keynesianos continuaram após a verdadeira depressão. O milagre económico, portanto, dificilmente seria auto-sustentável: "Na realidade, a gestão da crise transformou-se num 'sistema económico misto' público-privado permanente, e a dívida pública, longe de ser paga, aumentou desde meados dos anos de 1970 em todos os países capitalistas desenvolvidos, tanto em termos absolutos e como em relação ao PIB [...] Quando Reagan deixou o cargo, a dívida pública tinha triplicado de 900 mil milhões para 2,8 biliões de dólares [...] Em 1930, a dívida do governo dos EUA totalizava 16 mil milhões de dólares; hoje vai em 12,5 biliões e continua a crescer" (pp. 69, 91-93) (6)
Mattick também descreve a génese do capitalismo conduzido pelas finanças: "Reduzir o investimento produtivo significava que cada vez mais dinheiro se tornaria disponível para outros propósitos. [...] Essa 'grande mudança para um uso especulativo da liquidez [...] expressou-se numa forte pressão para a desregulamentação legal'. A desregulamentação foi, portanto, uma reacção às pressões especulativas: facilitava os negócios arriscados, mas não era a causa da crescente especulação. Do mesmo modo, é duplamente estúpido quando o aumento de aquisições de empresas a crédito e outras formas de especulação é explicado como resultado da ganância, como muitas vezes acontece hoje: não só ainda não se explica por que aumentou repentinamente a ganância nas últimas décadas, como também se oculta o motivo básico das decisões capitalistas de investimento." (p. 75 s.)
Mattick salienta ainda que a crise financeira de 2007/2008 não deve ser isolada da crise desde os anos 70, e que a sua causa deve ser vista na lógica da valorização; tal como as crises menores desde a década de 1980. Pelo contrário, a situação actual é "a expressão da depressão que se anunciou dramaticamente em meados dos anos 70, mas que pôde ser mantida sob controlo por mais de trinta anos – em parte através do seu deslocamento para regiões mais pobres do mundo, mas especialmente através de um endividamento historicamente sem precedentes de Estados, empresas e indivíduos na parte mais rica do mundo." (p. 82)
Mas qual é a diferença fundamental entre a crise actual e a depressão de 1929, além da dívida soberana desenfreada?
Infelizmente, Mattick quase não aborda esta questão crucial. Embora ele mencione que, com os gastos do Estado, "o declínio anterior da taxa de lucro foi de facto contrariado, mas não ultrapassado, [portanto] não é de estranhar que as empresas usem os fundos disponíveis menos para construir novas fábricas para produzir mais bens, mas acima de tudo tentem espremer mais lucro a partir da produção existente: eles investiram em tecnologias de poupança de trabalho e de energia, e baixaram os custos do trabalho, deslocalizando a produção de países de salários elevados para países de baixos salários [...] Os resultados finais incluem o aumento permanente do desemprego na Europa Ocidental e no Rust Belt nos EUA." (p. 73)
O qualitativamente novo, a crise da sociedade do trabalho, a revolução microeletrónica e os seus potenciais de racionalização ainda não totalmente utilizados (7) não são realmente postos em evidência com clareza. Referindo-se a Marx, Mattick, no entanto, já constata que a dinâmica de valorização do capitalismo deve, em última instância, conduzir à sua queda (ver acima), ainda assim ele não se refere explicitamente ao "Fragmento sobre as máquinas" dos Grundrisse, mas apenas à queda tendencial da taxa de lucro.
Outra imprecisão na questão de saber por que os métodos keynesianos não podem funcionar é afirmar que "a produção financiada pelo Estado não gera lucro. [...] O governo não tem dinheiro próprio, mas paga com receitas fiscais ou com dinheiro emprestado, que em última análise tem que ser reembolsado com dinheiro dos impostos. [...] Os gastos do Estado não conseguem por isso resolver o problema da depressão [...]. O governo pode adiar o problema, fornecendo a empresas financeiras e outras o dinheiro necessário para sustentar os negócios. Pode aliviar o sofrimento causado por ele, pelo menos temporariamente, ocupando ou alimentando os desempregados, pode construir infra-estruturas que beneficiem a futura produção rentável. [...] O problema básico numa fase de depressão só pode ser resolvido pela própria depressão [...]. A depressão pode [...] aumentar as taxas de lucro, reduzindo o custo de bens de capital e da força de trabalho, aumentando a produtividade por meio de inovações tecnológicas e concentrando a propriedade do capital em unidades maiores e mais eficientes" (p. 100s.)
Ao que é preciso contrapor que os métodos keynesianos são bastante eficazes, se e quando levam à produção em escala ampliada; quando se trata de medidas de concentração e mobilização estaduais para uma maior absorção de força de trabalho viva, quando o embaratecimento dos bens leva a uma expansão dos mercados, quando na sequência de uma expansão do capital total há um aumento na massa de valor social total, seja por meio de uma guerra ou não. Isto leva a maiores receitas fiscais, para que esses empréstimos, que eram uma antecipação do futuro ainda a ser alcançada, possam então ser reembolsados. É bem sabido que a razão por que isso de algum modo funcionou foi a expansão maciça das indústrias fordistas. Por que as medidas keynesianas definitivamente não são eficazes hoje, embora tenham funcionado noutros tempos?
Como já mencionado, esses métodos deixaram de funcionar nos anos de 1970, porque a subsequente revolução microeletrónica não levou a uma renovada absorção de força de trabalho viva, e justamente por isso o capitalismo conduzido pelas finanças e a ideologia neoliberal representaram a forma de desenvolvimento histórica pela qual o capitalismo, embora completamente cego perante a história e cada vez mais resistente aos factos, digeriu essa contradição.
Que a depressão pudesse ser resolvida por um ajustamento do mercado (que fora evitado por empréstimos em níveis sem precedentes) é definitivamente falso para o presente, de acordo com Mattick. Uma concentração adicional de capital, mais medidas de racionalização, etc., aumentaria a dificuldade das pessoas, para poderem funcionar como portadores de força de trabalho valorizável; bem como a massa de supérfluos "que se acumularam em centenas de milhões em enormes favelas" (p. 81s.). O próprio Mattick parece um tanto a-histórico na sua determinação às vezes imprecisa da crise, embora ele seja bastante claro sobre a extensão da miséria, citando o Planeta Favela de Mike Davis. Felizmente, ainda assim, não cai no falso optimismo de quem se ilude passando ao lado da realidade, como é frequentemente o caso da lumpen-inteligência burguesa (ver, por exemplo, nota de rodapé 7).
Mattick, em contraste com muitos outros, também escreve que a China e a Índia não podem representar nenhuma esperança para um capitalismo restaurado, porque "o crescimento da China [...] está estreitamente ligado ao dos países desenvolvidos [...]. A Índia, onde a maioria da população ainda é constituída de trabalhadores rurais pobres (8), está ainda mais longe de representar uma potência económica independente. De facto, o comércio externo das economias indiana e chinesa continua consistindo em grande parte na reexportação de produtos e serviços finais ou intermédios produzidos por multinacionais sediadas na Europa ou nos Estados Unidos." (p. 110)
Que fazer?
O que fazer diante de milhões de situações de miséria, da degradação ambiental, até das alterações climáticas provocadas pelo homem? Que conclusões práticas são tiradas por Mattick?
Da esquerda tradicional, se é que não está marginalizada, dificilmente será de esperar, segundo Mattick, que possa ultrapassar o horizonte do capital. Porque a esquerda tradicional (da social-democracia e do socialismo real) está definitivamente esgotada historicamente, uma vez que "o movimento operário tradicional não era um prenúncio da derrocada do capitalismo, mas um aspecto de seu desenvolvimento, na medida em que, através de organizações capazes de negociação e dispostas ao compromisso, cumpriu a tarefa de normalizar uma nova modalidade de relações sociais." (p. 122s.)
Mas o desaparecimento da esquerda tradicional não é pretexto para a aceitação apática da loucura capitalista: porque, em tempos de crise, a diferença entre riqueza material e riqueza monetária, como a tentou delinear Karl Marx, pode tornar-se evidente para muitos, o que poderia motivar as pessoas para a acção. Mattick também esboça esta ideia: o dinheiro pode ser desvalorizado, as fábricas podem ser fechadas, mas a riqueza material ainda está em certa medida ao alcance: "Enquanto presentemente ainda estão esperando o prometido regresso da prosperidade, os milhões de novos sem-abrigo, tal como muitos dos seus antecessores na década de 1930, poderão em algum momento olhar para as casas vazias postas à venda, para os bens de uso invendáveis e depósitos públicos de alimentos, e reconhecer aí as coisas de que precisam para viver. Mas apropriar-se simplesmente de habitação, de alimentos e outros bens rompe com as regras de um sistema económico baseado na troca de bens por dinheiro, e aponta já para um tipo completamente diferente de sociedade." (p. 133)
A apropriação autónoma dos meios de produção pode ser um primeiro passo para se livrar do capitalismo e, assim, encontrar uma outra forma de sociedade, ainda que a humanidade tivesse de combater por um longo tempo os legados desastrosos do capitalismo (degradação ambiental, etc.): "Seja como for que se chame, teria assim de se começar a abolir a separação entre aqueles que exercem controle sobre a produção e aqueles que a executam, e a substituir um mecanismo social baseada na troca mercantil monetária (também da capacidade de trabalho) por algum tipo de decisão social" (p. 137).
No entanto aqui ainda tem de se contradizer evidentemente Mattick, quando ele escreve que os meios de produção ficam sob o controle de determinados sujeitos. É de facto verdade que não está previsto um uso diferente do capitalista para os meios de produção e o imobiliário etc., e, portanto, esse será defendido por todos os meios de violência, se as pessoas se acharem no direito de os arrancar do movimento de valorização capitalista, como Mattick sugere: "Tal como nos Estados totalitários, também nos países democráticos os órgãos do poder directo da população representam uma ameaça para quem está no poder, por muito limitados que sejam os seus objectivos. (9) Ameaças ao sistema económico vão chamar, sem dúvida, a repressão num plano superior ao do aumento da violência já ocorrido nos últimos anos, com as forças armadas e a polícia contra manifestantes em Atenas, funcionários públicos em greve na África do Sul, estudantes em Londres e noutras cidades [ ...]" (p. 135)
Ora esta formulação, basicamente do marxismo tradicional, sugere que certos sujeitos teriam efectivamente controle determinante sobre a produção e seus conteúdos. A lógica de funcionamento da dinâmica da valorização não pode ser reconduzida à determinação da vontade dos indivíduos, o que não significa que ninguém possa ser responsabilizado por nada, pois os imperativos do capitalismo terão de ser mediados pelos sujeitos, de modo que estes possam agir no sentido desses imperativos (ou melhor, se vejam obrigados). Mas isso não significa que as pessoas sejam o sujeito do evento global capitalista. Neste ponto começaria um plano de crítica do sujeito e da ideologia, plano que falta em Mattick (além de uma crítica ideológica da economia e de diversas concepções da história).
A questão nunca foi a mera apropriação: Pois os legados produtivos (ou, mais ainda, os destrutivos) do capitalismo e, especialmente, a forma de economia empresarial da sua concretização, devem ser criticados, e não simplesmente ocupados de maneira positiva. Seria um desperdício de esforço adquirir a sucata capitalista apenas para mantê-la autonomamente (como se pode ver nas fábricas ocupadas) (10). Se o modo de produção deve ser transformado, então o mesmo se aplica aos conteúdos da produção, o que, naturalmente, implica que determinados conteúdos da produção devem ser abolidos ou reduzidos, basta pensar da indústria automóvel.
Como ideia básica, essa ideia não é tão nova assim. Erich Mühsam, por exemplo, escreveu em 1932: "A ideia infantil de que, com a ocupação das empresas pelos trabalhadores e sua continuação sob gestão própria, a revolução já teria efectuado a transição para o socialismo, é tão absurda como perigosa. [...] As empresas de todo tipo, sob condições capitalistas, estão ajustadas na orientação e organização exclusivamente para os cálculos de lucro dos empresários. Aqui, nenhuma consideração é tida pelo desejo das pessoas, nenhuma consideração é tida pelas exigências da justiça, da razão, pela vida e saúde dos trabalhadores e consumidores. [...] Uma economia que lança na miséria muitos milhões de pessoas sem trabalho e literalmente com fome, e ao mesmo tempo queima alimentos importantes, os lança ao mar, os deixa apodrecer nos celeiros ou os utiliza como fertilizante, tal economia não pode simplesmente ser assumida e continuada. Tem que ser transformada a partir da base." (11)
Em tempos de "Estados falhados", a apropriação ocorre de qualquer maneira, embora no sentido de uma economia de pilhagem. Que haja apropriação, por muito compreensível que isso possa ser em cada situação, pode, no entanto, significar também que os apropriadores se entendam como gangues étnicos, associações eugénicas racistas ou seitas religiosas terroristas, etc., e, assim, excluam outras pessoas dos seus meios de produção (ou dos restos dos mesmos), deste modo continuando a concorrência por outros meios; ou seja, a apropriação como sanguinário modo de redistribuição na "guerra civil molecular" (Enzensberger). A crítica de Mattick ao capitalismo é, como vimos, quase exclusivamente económica; o momento subjetivo é deixado de fora. Embora ele mencione que em situações de crise as pessoas são capazes de ser solidárias com bastante espontaneidade, o que deixa um pouco de esperança, escapa-lhe que também podem revelar-se igualmente capazes de racismo, sexismo, anti-semitismo e anticiganismo, não só na cabeça, mas também como acto realizado, como pogrom celebrado. Pelo menos aqui, devia-se pagar por evitar o plano da crítica da ideologia e do sujeito, numa crítica do capitalismo. Infelizmente, Mattick passa por cima de muitas das conclusões práticas acima citadas, sem parar para pensar nelas. Uma resposta à pergunta de Lenine pode ser hoje mais premente do que nunca, mas ela não deveria ser exigida reduzindo ou mesmo abandonando a reflexão teórica.
Paul Mattick: Business as Usual – Krise und Scheitern des Kapitalismus, Hamburg, Edition Nautilus 2012, 160 pags.
[Original: Business as Usual – The Economic Crisis and the Failure of Capitalism, Reaktion Books, New York, 2011]
1. Paul Mattick Jr., nascido em 1944, filho de Paul Mattick (1904-1981), ensina filosofia na Adelphi University em New York.
2. Ver também a entrevista sobre o livro dada por Paul Mattick à revista The Brooklyn Rail em 2011 [online: https://brooklynrail.org/2011/06/express/the-economic-crisis-in-fact-and-fictionpaul-mattick-with-john-clegg-and-aaron-benanav]. Há uma tradução alemã em kosmoprolet.org.
3. Sobre a incompreensão do capitalismo pela teoria económica neoclássica, ver Claus Peter Ortlieb: »Markt-Märchen – Zur Kritik der neoklassischen akademischen Volkswirtschaftslehre und ihren Gebrauchs mathematischer Modelle [Contos de fadas do mercado – Crítica da teoria económica académica neoclássica e seu uso de modelos matemáticos]", in EXITI- Krise und Kritik der Warengesellschaft Nr. 1 (2001), p. 166-183. A teoria económica convencional geralmente parece ser "livre de ideologias", uma vez que usa a matemática, que deveria garantir a objectividade, em vista do sucesso obviamente visível e historicamente efectivo nas ciências naturais. No entanto, será melhor falar aqui de um abuso metodológico da matemática, cf. Herbert Auinger. Mißbrauchte Mathematik-Zur Verwendung mathematischer Methoden in den Sozialwissenschaften [Matemática Abusada – O Uso de Métodos Matemáticos nas Ciências Sociais], Frankfurt a. M., Peter Lang, 1995. Cf. ainda: Knut Hüller: Kapital als Fiktion – Wie endloser Verteilungskampf die Profitrate senkt und .Finanzkrisen erzeugt [Capital como ficção – Como a infindável luta de distribuição reduz a taxa de lucro e gera crises financeiras], Hamburgo, tredição, 2015..
4. Ver, por exemplo, Robert Kurz: Geld ohne Wert – Grundrisse zu einer Transformation der Kritik der politischen Ökonomie, Berlin, Horlemann, 2012, Trad. port.: Dinheiro sem valor. Linhas gerais para uma transformação da crítica da economia política, Lisboa, Antígona, 2014; e Hartmut Apel: Verwandtschaft Gott und Geld – zur Organisation archaischer, ägyptischer und antiker Gesellschaft [Relação entre Deus e dinheiro – Sobre a organização da sociedade arcaica, egípcia e antiga], Frankfurt a. M., Campus, 1982
5. Ver Wolfgang Schivelbusch: Entfernte Verwandtschaft: Faschismus, Nationalsozialismus, New Deal. 1933-1939 [Relação distante: fascismo, nacional-socialismo, New Deal. 1933-1939], München/Wien, Carl Hanser, 2005.
6. Actualmente (março de 2016), a dívida pública dos EUA, dependendo da fonte, está entre 19 e 20 biliões de dólares. No entanto, de acordo com vários economistas, a dívida pública é muito maior: por exemplo, se incluirmos o aumento constante dos custos da segurança social, ver http://deutsche-wirtschafts-nachrichten.de/2013/08/09/studie-deckt-auf-usa-haben-verdeckte-schulden-von-70-billionen-dollar/.
7. Por exemplo, de acordo com um estudo da Universidade de Oxford, nas próximas duas décadas cerca de metade de todos os empregos nos EUA poderiam ser eliminados por uma combinação de robótica e inteligência artificial. A coisa "mais progressista" apresentada perante tais perspectivas geralmente é a exigência de um Rendimento Básico Incondicional; uma ideia que pelo menos suspeita da impossibilidade crescente de uma sociedade de trabalho; uma ideia que, no entanto, é repelida em particular pelos "sábios da economia". Abstraindo do iminente colapso económico, não há motivo para preocupação, já que historicamente "os empregos racionalizados sempre foram supercompensados pela criação de empregos em ramos de negócios anteriormente inexistentes ou quase inexistentes". Por que deveria isso mudar, dado o actual desemprego em massa e mais de mil milhões de moradores em favelas? Veja Prof. Bert Rürup: »Bedingungsloses Grundeinkommen: Projektion unerfüllbarer Hoffnungen" [Rendimento Básico Incondicional: Projeção de Esperanças Irrealizáveis" (26.02.2016) aufreasearch.handelsblatt.com.
8. Mais especificamente, com metade da população trabalhando na agricultura, 800 milhões de indianos são considerados pobres, um terço da população é cronicamente subnutrida, 92% da população trabalhadora trabalha no setor informal sem qualquer seguro, segundo Dominik Müller: Indien – Die größte Demokratie der Welt? [Índia – A Maior Democracia do Mundo?], Berlim / Hamburgo, Assoziation A, 2014. Na subnutrição as meninas são as mais afectadas: É muito comum que os meninos de uma família pobre recebam mais do que as meninas, muitas vezes elas nunca comem o suficiente, se o tentam fazer são espancadas, e, se a comida não é suficiente, elas são deixadas morrer à fome (!), cf. Georg Blume / Christoph Hein: Indiens verdrängte Wahrheit – Streitschrift gegen ein unmenschliches System [A verdade escondida sobre a Índia – polémica contra um sistema desumano], Hamburg, edition Körber-Stiftung, 2014.
9. Pessoas auto-organizadas para alimentar os sem-abrigo já estão sendo combatidas pelo Estado, ver o material em aufnationalhomeless.org.
10. Quando as fábricas foram ocupadas na Argentina, também houve discussões sobre as restrições materiais e a expansão dos turnos da noite, cf. »Besetzte Fabriken in Argentinien – Bewegung gegen das Kapital oder Selbstverwaltung des kapitalistischen Elends?" [Fábricas Ocupadas na Argentina – Movimento Contra o Capital ou Autogestão da Miséria Capitalista?" in Wildcat No. 70 (2004). Uma ocupação também pode significar a continuação da concorrência por outros meios!
11. Erich Mühsam: Befreiung der Gesellschaft vom Staat [Libertar a Sociedade do Estado], Berlin, Karin Kramer, 1975, S. 75
Original BUSINESS AS USUAL. Vom fortlaufenden Wahnsinn der kapitalistischen Produktionsweise. Publicado no nº 14 da revista exit! Krise und Kritik der Warengesellschaft, ISBN 978-3-89502-403-0, Maio de 2017, pag. 311-320. Tradução de Boaventura Antunes