Marx é que está a dar, no trabalho, no desporto e a brincar
O actual jubileu de Marx revela sobretudo uma coisa: o crescente conservadorismo duma esquerda que se adapta cada vez mais ao reaccionário espírito do tempo
Finalmente, olhando para o século XIX, a esquerda parece experimentar alguma relevância pública, pelo menos a curto prazo. Karl Marx teria 200 anos – e por isso todos os média relevantes, que caso contrário legitimariam as restrições usuais, vão publicando alguma forma de apreciação.
O falatório em torno Marx, alimentado por um capitalismo tardio em crise, que parece confirmar todos os clichés anticapitalistas dos séculos anteriores, é acompanhado pelas estratégias usuais de domesticação do teórico crítico que em tais ocasiões costuma ter saída no mainstream. O destaque é dado ao biográfico, ao "ser humano" Marx, como na produção da ZDF sobre Karl Marx, que caracterizou o autor da Ideologia Alemã (1) como um "profeta alemão" – e isto em pleno tempo de populismo direitista. Nesse docudrama pode saber-se muito sobre a família, sobre as suas preocupações com o dinheiro, as mortes e a "permanente acusação de que Marx teve mais cuidado com os seus estudos e com a política do que com os seus familiares", como se diz numa recensão. (2) Mas a obra de Marx – justamente a obra que fez dele um teórico famoso – foi "muito negligenciada" na produção da ZDF.
O Marx aqui ao lado
A tentativa da indústria cultural de "aproximar" Marx como ser humano do público mediático é, assim, acompanhada por uma desfocagem do conteúdo da sua teoria, de modo que quase qualquer um possa tomar o comboio de Marx. Na maioria dos casos, as referências a algo de desigualdade social, globalização ou crises do capitalismo bastam para participar no falatório mediático. Assim que é feita essa referência positiva formal a Marx, hoje em dia – onde curtos vídeos do YouTube (3) substituem o laborioso trabalho textual nos originais – praticamente tudo é possível.
Até mesmo o SPD pretende agora ter redescoberto Marx, que, segundo Andrea Nahles, teria visto "a necessidade de uma política democrática de melhoria gradual das condições de vida". (4) O "comunismo", na época da Guerra Fria, apenas teria obscurecido esse suposto reconhecimento do autor do Manifesto Comunista, tal é o discurso orwelliano da marxista do SPD, que também afirmou num Tweet (5) que Marx teria marcado o SPD, partido de Hartz IV, "como nenhum outro".
Muito mais à esquerda do que o SPD (e de grande parte do Partido da Esquerda, Linkspartei) está actualmente a Igreja Católica do Papa Francisco, que – ao contrário de Nahles ou de Lafontaine – consegue formular, pelo menos, uma crítica razoavelmente útil do capitalismo. (6) Consequentemente, parecia ser apenas uma troca de nomes com o ateu militante ("a religião como o ópio do povo"), o facto de que o Cardeal Reinhard Marx estivesse predestinado a louvar, em entrevista a um jornal, o seu homónimo, como "analista perspicaz do capitalismo" – e ao mesmo tempo a publicitar a doutrina social da Igreja Católica, que "nunca terá negado a análise marxista do capitalismo nem os riscos que dele surgem". (7)
E o FDP também reconhece Karl Marx como o grande pensador liberal que continua muito actual. (8) Em entrevista a um jornal, o político do FDP Kubicki declarou que gostava de Marx por causa da sua inclinação para o comércio livre. De acordo com a eminência do FDP, Marx votaria hoje "por acordos de comércio livre, como o CETA". No entanto, Kubicki esquivou-se de conceder postumamente a Karl Marx a qualidade de membro do FDP: "Isso seria um pouco exagerado".
Marx na crítica
Apenas a editora Springer não quis participar no grande abraço a Marx, que agora está a moldar a comemoração de Marx na República Federal da Alemanha, quase transversalmente às classes. Os empregados de Friede Springer (fortuna estimada, certamente muito suada: 5,4 mil milhões de dólares) (9) repreenderam Marx como um parasita, (10) cujos textos causaram "um nó no cérebro" – e que terá sido responsável por centenas de milhões de mortes, que as suas teses terão causado.
Um exame crítico da contraditória construção teórica marxiana – especialmente tendo em vista a actual onda de Marx, que ameaça afogar tudo na arbitrariedade pós-moderna – seria de importância central para uma teoria e uma prática radicalmente anticapitalistas. No entanto, este trabalho teórico, que descarte partes anacrónicas da teoria marxiana, só pode ser feito pela esquerda, num esforço para elevar o marxismo ao nível do século XXI.
Se tivesse tempo, também Karl Marx poderia deitar fora muito disparate. E este não pequeno: a teleologia de Marx, segundo a qual o socialismo/comunismo herdaria quase automaticamente o capitalismo, com a inevitabilidade de uma lei natural, na verdade já apenas actua embaraçosamente, tendo em vista a história recente – bem como o actual desenvolvimento de crise, tendendo para a barbárie. A luta de classes, postulada pelos marxistas de todas as cores como alavanca central para o derrube do capitalismo, revela-se ela própria, num breve olhar sobre a história social dos últimos 200 anos, como uma luta pela distribuição no interior do capitalismo – e, assim, como um meio de integrar a classe operária na sociedade do trabalho capitalista, em sua fase de ascensão histórica.
E pode-se, portanto, perguntar com toda a razão quando se dignará finalmente o valoroso proletariado a cumprir, como sujeito revolucionário, a sua missão histórica, que lhe foi atribuída por Marx e Engels. Não resta muito tempo à amada classe operária para completar esta "missão histórica", perante o rápido avanço da automação. A actual tendência de crise está, sim, a culminar no surgimento de uma humanidade economicamente supérflua – veja-se a crise dos refugiados.
Marx é necessário
E, no entanto, Marx é necessário. Sem a teoria de Marx, o actual mundo do capitalismo tardio é simplesmente incompreensível. Todas as díspares distorções que surgem, todas as confusas tendências de crise, todo o caos generalizado (miséria maciça, ameaça de guerra, crise de refugiados, nova direita, caos climático) – tudo isso pode ser reduzido a um denominador teórico, graças ao núcleo clássico da teoria de Marx. A grande narrativa teórica, cuja mera possibilidade foi categoricamente negada na pós-modernidade com a sua "nova opacidade" (Habermas), ainda pode ser fornecida por uma teoria de Marx ao nível do século XXI. E não se trata de uma bela história – mas é a história verdadeira para o caso.
Para isso, Marx tem de ser entendido como teórico. (11) A ultrapassagem do marxismo, enquanto utensílio de moda altamente identitário, ou ideologia anacronicamente ortodoxa, em que palavreado dos escritos "sagrados" de Marx é reproduzido à letra, e vendido como a última conclusão da sabedoria, constitui, assim, o pressuposto básico para o renascimento de Marx no século XXI. A estrutura de pensamento de Marx tem de ser, antes de mais, percebida como contraditória. Por um lado, Marx era um filho do seu tempo, que atribuiu à classe operária, então ainda em crescimento, uma missão histórica, e forneceu à crença geral no progresso do século XIX uma superstrutura comunista. Por outro lado, ele foi o clássico e visionário que criticou as formas fundamentais da socialização capitalista, e revelou as suas decisivas contradições internas.
É necessário, portanto, libertar o núcleo teórico clássico da teoria de Marx da escória anacrónica que se acumulou ao longo das décadas. O núcleo da contraditória construção teórica e intelectual de Marx é a sua análise do sistema capitalista. Mais precisamente, a análise das "leis do movimento" do capital, ou seja, a análise da forma do valor, feita na sua principal obra, O Capital. A determinação do trabalho abstracto como a substância do valor, como o conteúdo da forma do valor, bem como a determinação do tempo de trabalho social médio como a verdadeira magnitude do valor, fizeram de Marx um clássico. Esse núcleo da sua análise do capital, portanto, permanece válido, enquanto existir o objecto da sua análise – o capital.
Mais ainda: Marx também indicou a contradição decisiva entre o valor realmente abstracto e o valor de uso concreto de uma mercadoria (na verdade, já no famoso e visionário "fragmento sobre as máquinas" dos Grundrisse, Linhas Gerais para a Crítica da Economia Política) (12), contradição que está na base do actual período caótico de desenvolvimento de crise do capitalismo tardio. Uma vez que o valor de uso apenas é importante como portador do valor abstracto, como fim em si mesmo, o instável sistema tende para a permanente expansão – e, em perspectiva, para a autodestruição. A queima do mundo real, tendo por finalidade o crescimento ilimitado do valor abstracto, a acumulação de quantidades cada vez maiores de trabalho abstracto, resulta desta contradição interna do próprio capital, que já é inerente a qualquer mercadoria, como "forma elementar" da riqueza capitalista.
Sem exagero, portanto, pode-se afirmar que, por exemplo, a crise climática em pleno desenvolvimento (13) não pode ser compreendida sem um adequado entendimento da referida contradição interna da relação de capital. A autodestrutiva coerção de crescimento do sistema capitalista tardio, em que se produz afinal um monte de lixo, para prolongar a dinâmica de valorização do capital, que já está aos soluços – não pode ser reduzida ao seu conceito preciso sem a análise marxiana da forma do valor.
O conceito de fetichismo de Marx (14) – que não descreve nenhuma "ilusão", mas sim um processo social muito real – permite também compreender como o ser humano do capitalismo tardio parece confrontar-se impotentemente com esta dinâmica de valorização autonomizada do capital e com as suas consequências devastadoras, e a percebe como uma espécie de fenómeno natural, embora inconscientemente a elabore literalmente todos os dias. Como foi dito, não se trata de uma bela história, que pudesse fornecer uma teoria de Marx ao nível do século XXI. E esta é provavelmente uma das razões pelas quais tantos obstáculos estão no caminho deste projecto. Mas é necessário percorrer o "deserto do real" (Matrix) se, apesar de todas as evidências, ainda é preciso encontrar caminhos para fora desse deserto.
Uma leitura séria de Marx também constitui o melhor antídoto contra as reduções populistas das simplistas "crítica dos figurões" e busca de bodes expiatórios. O conceito de Marx de máscara de carácter da economia deixa claro que mesmo os capitalistas mais poderosos tiram o seu poder aparente apenas da optimização subjectiva da coerção sistémica objectiva à valorização do capital. Marx exige um pensamento sistémico, que actualmente é urgentemente necessário, numa esquerda contaminada pelas reduções populistas.
Marx também reconheceu que não se pode tratar de uma mera "redistribuição" social-democrata, mas que o sistema como tal pertence ao monte de lixo da história – a relação de capital tem de ser ultrapassada na sua própria dinâmica fetichista social global. Em última análise, o fetichismo capitalista tem de ser quebrado, as pessoas têm de passar efectivamente a uma configuração consciente do seu processo de redução social, que presentemente ocorre "atrás das costas" (Marx) dos sujeitos do mercado, inconscientemente conduzido pelo capital. Essa seria uma saída revolucionária da fetichista "pré-história da humanidade", como Marx lhe chamou.
A construção intelectual de Karl Marx, portanto, tem de ser finalmente levada a sério. Deve ser entendida como uma ferramenta teórica que serve para entender o mundo. Para este propósito, o invólucro anacrónico terá de ser removido e o núcleo relevante da teoria de Marx terá de ser erguido. A escola teórica da crítica do valor, que foi decisivamente moldada pelo filósofo Robert Kurz, é até agora a mais adiantada neste caminho. E, claro: Este não é um caminho simples, como a mera reprodução da ideologia ortodoxa, ou como o ajustamento do marxismo a uma identidade de pseudo-esquerda, a um acessório identitário de moda para os fãs (Só estas barbas espectaculares (15) – um sonho de barba húmida!), como é actualmente praticado por uma esquerda hiper-identitária.
Back to the rotten roots
A análise crítica e a expurgação da teoria de Marx, ultrapassando todos os momentos de ideologia dentro do "marxismo", que não estão alinhados com a realidade social em crise – quase nada disso foi feito por ocasião do aniversário de Marx.
Em vez disso, a retrospecção histórica nos festivais de Marx anda de mãos dadas com uma orientação retrógrada da esquerda, explicando o seu fracasso continuado com a perda de antigas verdades simples, perdidas algures no século XIX ou XX. O olhar para trás não está a servir para a análise, para aprender com os erros do passado. Em vez disso, anda-se à procura de certezas simples e antigas, que se crê poder encontrar algures no passado. Na verdade, a esquerda anda à procura de uma identidade na sua própria história. Os paralelos com a loucura identitária de direita da nova direita e do islamismo são aqui evidentes.
Aqui, o proletariado, a luta de classes, a "questão social" são redescobertos em certo sentido – e à primeira vista isso parece bem consequente. É que o capitalismo também volta a ser tão brutal, em muitos centros do sistema mundial, como no século XIX ou XVIII. Amplos sectores da população, como a classe média nos EUA, mergulham no pauperismo, enquanto uma fina camada de multimilionários acumula riquezas fabulosas, aumentando o fosso entre ricos e pobres para dimensões absurdas. Mesmo nas ilhas de bem-estar remanescentes, o trabalho já não protege contra a pobreza. Acrescente-se a isso as guerras crescentes, que lembram o auge do imperialismo do século XIX, ou as tendências para o Estado policial, que perpetuariam pela força a divisão social da sociedade. E, no entanto, isso é uma ilusão.
A crescente miséria maciça actual resulta da plena dissolução, à escala global, da classe trabalhadora, que está sendo cada vez mais expulsa do processo de reprodução do capital. A miséria actual reflecte, como imagem num espelho, o pauperismo na fase de ascensão do capitalismo nos séculos XIX e XVIII, quando o proletariado crescia rapidamente. Agora, ele está a derreter-se, na fase histórica de declínio do capital – e o preço da mercadoria força de trabalho, cada vez mais supérflua, está a cair, de acordo com a falta de procura de capital, que está em baixa. O resultado do actual processo de crise não é, portanto, a proletarização da população – que Marx ainda podia esperar no século XIX – mas o surgimento de uma humanidade supérflua, como tendência global. Complementarmente a isso se passam as coisas com os fantásticos milhões acumulados pela casta oligárquica global: eles são a expressão de uma superacumulação do capital – na sua maior parte fictício – que dificilmente encontra possibilidades rentáveis de valorização na produção de mercadorias.
Com o foco actual da esquerda na classe trabalhadora, na luta de classes e na questão social, as formas de decadência da classe trabalhadora, que está a passar à história, são novamente declaradas o sujeito revolucionário. Também é conveniente imaginar-se uma "classe em si", que seria chamada à sua gloriosa revolução pela sua mera posição no processo de reprodução – mesmo que toda a empiria concreta, no que concerne à história e ao presente dos assalariados, que não se comportam de maneira diferente das outras camadas da população, fale contra isso. No entanto, nesse ambiente, gosta-se de esconder a verdadeira tragédia da realidade em crise: simplesmente não há nenhuma "classe revolucionária" – e, ao mesmo tempo, a ultrapassagem do capital em amoque é uma necessidade de sobrevivência civilizacional. Mas dificilmente qualquer "marxista" quer admitir isso.
O mesmo vale para a questão social, que é cada vez mais colocada pela esquerda de orientação social-democrata, com crescente chauvinismo alemão. Uma resposta honesta para isso é simples: a questão social simplesmente não é solucionável no actual capitalismo de crise. Isto quase ninguém quer realmente admitir, mas, dadas as crescentes tendências de crise – económica, ambiental, política – é realmente evidente. Fingir que o tempo poderia ser revertido não passa de uma mentira. Uma pessoa engana-se a si mesma – e a quem quiser acreditar que poderia haver um retorno à "economia social de mercado" dos anos de 1970. O populismo, que, na pós-social-democracia, anda de mãos dadas com uma orientação mais forte em direcção ao Estado-nação, não constitui nenhuma elaboração teórica.
Uma teoria de Marx à altura do século XXI, que empurrasse o processo de crise para o centro da reflexão teórica, estaria habilitada não só a entender, mas também a antecipar a dinâmica da crise. Em vez disso, domina no espaço de língua alemã uma esquerda pós-social-democrata, identificada com o chauvinismo alemão, que actua como aborto do reaccionário espírito do tempo.
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(1) http://www.mlwerke.de/me/me03/me03_009.htm
(2) https://www.zeit.de/kultur/film/2018-04/karl-marx-prophet-zdf-dokudrama-kommunismus-mario-adorf
(3) https://www.youtube.com/watch?v=fSQgCy_iIcc
(5) https://twitter.com/spdde/status/992769622901391362
(6) https://www.heise.de/tp/features/Das-Schisma-von-2013-3363111.html?seite=all
(7) https://rp-online.de/kultur/200- geburtstag-von-karl-marx-was-kardinal-reinhard-marx-bischof-von-trier-ueber-marx-denkt_aid-17443715
(8) https://www.zeit.de/2017/05/wolfgang-kubicki-fdp-ceta-karl-marx
(9) https://en.wikipedia.org/wiki/Friede_Springer
(10) https://www.bild.de/politik/inland/marxismus/marx-war-ein-schmarotzer-55561334.bild.html
(11) É altamente recomendável a leitura da antologia de textos de Marx editada e comentada por Robert Kurz: Marx lesen! – Die wichtigsten Texte von Karl Marx für das 21. Jahrhundert, Frankfurt am Main 2000. Em português: Ler Marx. Os textos mais importantes de Karl Marx Para o século XXI, em http://www.obeco-online.org/livro_ler_marx.htm
(12) http://www.mlwerke.de/me/me13/me13_615.htm
(14) http://www.mlwerke.de/me/me23/me23_049.htm#Kap_1_4
(15) https://www.maennersache.de/bartfrisuren-der-hipster-bart-1323.html
Original Marx macht mobil, bei Arbeit, Sport und Spiel in: http://www.exit-online.org. Publicado originalmente em Telepolis, 13.05.2018. Tradução de Boaventura Antunes