Tomasz Konicz
Nós é que decidimos quem é ditador!
O governo alemão tem certamente um grande coração para os autocratas – desde que eles sejam os seus ditadores. Um comentário ao duplo padrão imperial da geopolítica alemã
Muitas vezes as notícias que não chegam à opinião publicada são de particular interesse. Enquanto os políticos alemães e o público [1] estão indignados com a acção brutal [2] das forças de segurança na Bielorrússia, por exemplo, a Grécia está cada vez mais insatisfeita com a atitude do governo alemão.
O que aconteceu? Numa teleconferência do Conselho de Ministros dos Negócios Estrangeiros da União Europeia realizada em meados de Agosto, que entre outras coisas tratou da ameaça de escalada no Mediterrâneo oriental, não foi possível encontrar uma linha uniforme no que diz respeito às exigências territoriais da Turquia.
A Alemanha e a Grécia não conseguiram chegar a acordo sobre uma declaração final, relataram os meios de comunicação gregos [3], uma vez que não foi possível convencer Berlim a exigir o fim das actividades turcas na zona marítima rica em recursos. Em resposta, a Grécia bloqueou uma declaração final conjunta do Conselho de Ministros dos Negócios Estrangeiros sobre a crise na Bielorrússia.
A disputa [4] sobre as zonas ricas em recursos no Mediterrâneo oriental, que se situam na zona económica exclusiva de Chipre, por exemplo, tem vindo a incendiar-se há meses e está a ser alimentada pela grave crise económica na Turquia. O governo Erdogan de Ancara, que é aliado dos islamistas, está a tentar desviar a atenção do desastre económico em curso [6] alimentando o febril sonho imperial de reconstruir um Grande Império Otomano com sempre novas aventuras imperiais na Líbia, norte da Síria e Iraque, com acções chauvinistas como a conversão de Hagia Sophia numa mesquita e ameaças contra a Arménia [5].
Até agora, o regime de Ancara – que amalgamou o genocida nacionalismo turco com o islamismo extremista – sempre pôde contar com o apoio activo do governo alemão nos seus esforços de expansão regional. Para além da actual táctica de bloqueio de Berlim no Conselho de Ministros dos Negócios Estrangeiros da UE, que por sua vez tornou evidentes as tensões entre a Alemanha e a França sobre esta questão, o governo alemão pode olhar para trás, para uma longa tradição de apoio aberto e encoberto ao regime assassino em massa [7] de Ancara [8], ao qual só com muita imaginação se pode conceder legitimidade democrática.
A Turquia é um dos maiores destinatários de dinheiro da República Federal da Alemanha e da UE, e o regime Erdogan é literalmente apoiado [9] por Berlim. Já em 2018, a República Federal estava envolvida na prestação de apoio económico maciço a Ancara [10], após as tarifas punitivas impostas pelos EUA terem desencadeado uma crise monetária [11] na Turquia.
Berlim tem vindo a injectar cerca de 35 mil milhões de euros para a modernização da rede ferroviária turca desde finais de 2018, a fim de fornecer contratos lucrativos a empresas como a Siemens e estabilizar o debilitado islamismo estatal turco. Isto sucederia ao infame caminho-de-ferro de Bagdade, um grande projecto imperialista da fase final da era imperialista, pouco antes do início da Primeira Guerra Mundial, "que o imperador alemão já estava a tentar realizar com o sultão", como disse a Spiegel-Online [12].
A soldadesca assassina de Erdogan, que está a travar guerras de aberta agressão no Norte da Síria [13] e no Iraque, é um dos melhores clientes da indústria de armamento alemã [14].
Berlim tem flanqueado as suas aventuras sangrentas sempre que possível. Quando a Turquia, em aliança com os islamistas, iniciou a sua guerra de agressão contra o governo autónomo curdo em Rojava, a própria Chanceler Merkel [15] torpedeou o estabelecimento de um embargo de armas contra a Turquia a nível europeu.
Seria possível fazer mais por um regime que tortura [16] em massa, [17] que realiza a limpeza étnica [17], a destruição de cidades inteiras [18] e o assassínio em massa [19]?
Claro que sim! Por vezes Berlim chega ao ponto de financiar a limpeza étnica dos curdos ou de minorias religiosas nas zonas do norte da Síria conquistadas pela Turquia [20], sem que isso seja notado no panorama mediático da República Federal da Alemanha, que se encontra agora numa febre democrática.
A indignação sobre a repressão na Bielorrússia
Tendo em conta tudo o que a política externa da Alemanha é capaz de fazer contra um regime que põe em acção literalmente bandos islamistas de cortadores de cabeça uniformizados nas suas guerras de agressão [21], a súbita indignação com as acções das autoridades estatais na Bielorrússia é absolutamente ridícula.
A indignação deve, acima de tudo, ser desencadeada pela falta de vergonha com que os funcionários políticos e líderes de opinião da República Federal da Alemanha actuam – com base na memória curta do público. O Governo Federal, na figura do Ministro dos Negócios Estrangeiros Heiko Maaß, que não quis impor um embargo de armas mesmo no caso das guerras de agressão turcas, apela agora a maiores pressões [22] e sanções à Bielorrússia, uma vez que a repressão das unidades policiais bielorrussas é "inaceitável na Europa do século XXI". Erdogan teve novamente sorte.
A indignação mediática e política sobre as acções brutais das forças estatais na Bielorrússia, nas quais duas pessoas morreram e milhares de manifestantes desapareceram nas prisões, contrasta com a contenção em relação aos relatos de assassinatos em massa nas zonas curdas da Turquia, onde a "prova" é infelizmente tão incrivelmente "difícil", como disse o FAZ [23] em 2017, quando o Estado turco, no decurso de uma campanha assassina [24] mal notada na Alemanha, roubou de facto à sua minoria curda a sua representação democrática.
Milhares de civis curdos [25] foram mortos, distritos inteiros foram arrasados, dezenas de milhares de funcionários do partido liberal pró-curdo HDP, que trabalhavam para uma solução não violenta para a questão curda, apodrecem nas prisões turcas, dezenas de presidentes de câmara eleitos do partido foram simplesmente depostos, sem que isso tivesse um efeito particularmente negativo na relação cordial – e para a Siemens & Cª extremamente lucrativa – entre Heiko Maas e o seu homólogo turco Cavusoglu.
Olaf Scholz ficou chocado [26] com os vestígios de tortura apresentados pelos manifestantes na Bielorrússia devido à violência policial. Segundo o ZDF [27], o candidato do SPD a chanceler, que recusou ver a violência policial [28] na cimeira do G20 em Hamburgo, vê agora o chefe de Estado bielorrusso Lukashenko como um "ditador ilegítimo" (o ZDF parece pensar que também há ditadores legítimos).
O desesperado candidato do SPD a chanceler encontraria certamente um dos interlocutores mais competentes para falar sobre técnicas de tortura no seu colega do governo turco, onde a tortura contra curdos e membros da oposição faz novamente parte do repertório padrão da repressão estatal [29]. Erdogan, que pode chantagear Merkel a qualquer momento com uma nova vaga de refugiados, deve portanto ser um desses "ditadores legítimos" – mesmo que nos seus discursos públicos questione abertamente as fronteiras da Turquia [30] e faça extensas reivindicações territoriais.
Para esclarecimento: Não há dúvida que a Bielorrússia é governada por um regime autoritário e antidemocrático que usa a força bruta contra os manifestantes, que têm todo o direito no mundo de protestar contra o resultado de uma antidemocrática eleição de opereta. E, claro, Lukashenko pode e deve ser comparado a Erdogan. As diferenças teriam, no entanto, de saltar imediatamente à vista: É a diferença entre assassinato e assassinato em massa.
Esta esquizofrenia na percepção de regimes autoritários e ditaduras na opinião publicada da Alemanha é apenas um sintoma das mudanças geopolíticas dos últimos anos: o que está actualmente a estabelecer-se na República Federal, que aspira ao poder político, [31] é um discurso imperial, como tem sido habitual há décadas nos EUA decadentes para legitimar intervenções geopolíticas – e no qual a percepção selectiva ou o ignorar das violações dos direitos humanos funciona como um meio de propaganda da política externa e da geopolítica.
O estóico ignorar de toda a carnificina promovida por Erdogan, aliado próximo de Berlim, vai perfeitamente de par com o escândalo perante a repressão policial da agitação no quintal geopolítico da Rússia, semelhante à perpetrada também na Alemanha por forças policiais [32] que por vezes agem como braço uniformizado do extremismo de direita alemão [33].
[1] https://www.welt.de/politik/deutschland/article213696322/Weissrussland-Olaf-Scholz-fuer-Sturz-Lukaschenkos-schlimmer-Diktator.html
[2] https://www.sueddeutsche.de/politik/belarus-proteste-folter-polizei-1.5002185
[3] https://www.ekathimerini.com/255905/article/ekathimerini/news/during-eu-teleconference-greece-and-germany-disagree-on-turkey-stance
[4] https://www.heise.de/tp/features/Erdogans-Mare-Nostrum-4651081.html
[5] https://www.heise.de/tp/features/Taut-der-eingefrorene-Konflikt-um-Berg-Karabach-auf-4846825.html
[6] https://www.al-monitor.com/pulse/originals/2020/08/turkish-lira-falls-two-percent.html
[7] https://www.bbc.com/news/world-europe-36354742
[8] https://www.focus.de/politik/ausland/ausland-tuerkei-der-sultan-kaempft-um-das-ueberleben_id_12268074.html
[9] https://www.faz.net/aktuell/wirtschaft/wie-die-eu-und-deutschland-die-tuerkei-mit-geld-unterstuetzen-16447869.html
[10] https://www.handelsblatt.com/politik/international/export-absicherung-bundesregierung-hebt-obergrenzen-fuer-tuerkei-buergschaften-auf/22829208.html
[11] https://www.heise.de/tp/features/Mit-Allah-gegen-den-US-Dollar-4134016.html?seite=all
[12] https://www.spiegel.de/wirtschaft/tuerkei-peter-altmaier-und-joe-kaeser-werben-fuer-bahnprojekt-a-1234836.html
[13] https://www.heise.de/tp/features/Der-Krieg-der-Neuen-Rechten-4569842.html?seite=all
[14] https://www.tagesschau.de/wirtschaft/waffenexporte-tuerkei-109.html
[15] https://www.bild.de/bild-plus/politik/ausland/politik-ausland/tuerkei-deutschland-blockierte-schaerfere-massnahmen-gegen-erdogan-65367318,view=conversionToLogin.bild.html
[16] https://www.al-monitor.com/pulse/originals/2020/07/torture-turkey-rise-erdogan-republic-fear.html
[17] https://www.independent.co.uk/voices/erdogan-turkey-kurds-border-syria-war-trump-ethnic-cleansing-a9204581.html
[18] https://www.dw.com/en/unprecedented-destruction-of-kurdish-city-of-cizre/a-19265927
[19] https://www.bbc.com/news/world-europe-36354742
[20] https://www.heise.de/tp/features/Tuerkei-Merkels-zivilisatorischer-Tabubruch-4645780.html
[21] https://www.oe24.at/welt/neue-schock-videos-beweisen-sie-die-kriegsverbrechen-erdogans/402091822
[22] https://www.zeit.de/politik/ausland/2020-08/heiko-maas-aussenminister-belarus-wahl-demonstrationen-lukaschenko
[23] https://www.faz.net/aktuell/politik/tuerkische-armee-soll-kurden-gefoltert-haben-14890672.html
[24] https://www.dw.com/en/unprecedented-destruction-of-kurdish-city-of-cizre/a-19265927
[25] https://www.lifegate.com/cizre-turkey-civilians-burnt
[26] https://www.bild.de/video/clip/news-inland/proteste-in-weissrussland-der-moment-als-scholz-die-wunden-des-folteropfers-sieh-72419912-72433358.bild.html
[27] https://www.zdf.de/nachrichten/politik/olaf-scholz-belarus-diktator-lukaschenko-joe-biden-100.html
[28] https://www.zeit.de/gesellschaft/2017-07/olaf-scholz-g20-demonstranten-polizei-verfahren-hamburg
[29] https://www.al-monitor.com/pulse/originals/2020/07/torture-turkey-rise-erdogan-republic-fear.html
[30] https://www.focus.de/politik/ausland/ausland-tuerkei-der-sultan-kaempft-um-das-ueberleben_id_12268074.html
[31] https://lowerclassmag.com/2020/07/30/europaeische-union-von-der-dominanz-zur-hegemonie/
[32] https://taz.de/Polizeigewalt-bei-Demo-in-Ingelheim/!5708401/
[33] https://www.heise.de/tp/features/Inflation-der-Einzelfaelle-4259590.html
Original Wer Diktator ist, das bestimmen wir! in: Telepolis, 19.08.2020. Tradução de Boaventura Antunes.