Tomasz Konicz

 

Pandemia da fome

O aumento da desnutrição e da miséria que ameaça a vida

 

 

 

"Toda tentativa de romper as imposições da natureza rompendo a natureza, resulta numa submissão ainda mais profunda às imposições da natureza".

Dialéctica do Iluminismo

 

A fome tem sido sempre uma companheira constante do capital nos seus cerca de trezentos anos de expansão. Desde a crua miséria do início da Modernidade capitalista, que até fez os níveis de oferta da Alta Idade Média parecerem "bons velhos tempos", até à actual crise global de fome: a sobreprodução, o desperdício alimentar e milhões de carências existenciais constituem apenas momentos diferentes de um modo económico irracional e destrutivo, ao qual as necessidades humanas – na medida em que podem ser forçadas à forma do valor monetário na procura do mercado – servem apenas como um meio, para o fim em si mesmo da valorização sem limites do capital.

Consequentemente, seria errado atribuir o actual aumento de fome e subnutrição em muitas partes do mundo apenas à pandemia. A incapacidade do sistema capitalista mundial de organizar uma eficaz resposta à pandemia sem afogar milhões de pessoas na miséria apenas reforça as tendências já existentes. O número de pessoas famintas em todo o mundo tem vindo a aumentar constantemente desde 2014 – após um breve período de declínio – segundo a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura). (1)

Em 2019, cerca de 690 milhões de pessoas sofreram de fome e subnutrição – um aumento de 60 milhões em relação ao ano anterior. De acordo com as estimativas, o número de pessoas subnutridas poderia até duplicar em 2020 devido à pandemia. (2) O Índice Mundial da Fome colocou o número de pessoas com fome em 822 milhões em 2019. (3)

Um exemplo actual desta interacção entre a pandemia e a crise capitalista da fome é a dramática situação das mulheres trabalhadoras dos têxteis no Sudeste Asiático, (4) onde milhões de mulheres assalariadas, cujos salários já se encontravam ao nível da subsistência, já nem a este conseguem chegar. As costureiras que trabalham por salários de fome (5) no Bangladesh, Paquistão ou Myanmar, cujos custos salariais se situam na ordem da permilagem do preço de retalho do vestuário de marca que produzem em condições brutais para os centros do sistema mundial, têm por vezes de contrair dívidas a fim de se alimentarem a si próprias e às suas famílias.

 

Do padrão da batata ao padrão do arroz

O teórico da crise Robert Kurz falou do "padrão da batata" para o qual o capital empurra repetidamente os seus assalariados – para as trabalhadoras têxteis do Myanmar, que por vezes têm de comer sopa de arroz três vezes por dia, o arroz da alimentação básica assume esta função. Em inquéritos, cerca de 80 por cento das trabalhadoras (ainda) empregadas disseram que agora prescindem de refeições para que os filhos possam ficar satisfeitos.

O mecanismo de empobrecimento capitalista mediado pelo mercado, que está em expansão na pandemia e não só na indústria têxtil, transforma a procura decrescente no mercado dos centros do sistema mundial em estômagos vazios na periferia. De acordo com o Frankfurter Allgemeine Zeitung (FAZ), (6) as vendas de têxteis na Europa e América do Norte caíram cerca de 16 mil milhões de dólares em 2020, o que se traduziu em reduções de rendimento de cerca de 21% na indústria têxtil do Sudeste Asiático. Com os salários na indústria a níveis de subsistência, milhões de trabalhadoras estão agora simplesmente a passar fome – ou a endividar-se. De acordo com inquéritos, 75% das trabalhadoras tiveram de contrair empréstimos para comprar comida suficiente.

As trabalhadoras que ainda conseguem coser roupas ou sapatos de marca para a Adidas & Co. com um estômago a dar horas continuam a ter "sorte" de acordo com a lógica capitalista de valorização, uma vez que cerca de 30% dos assalariados do ramo se tornaram simplesmente supérfluos. E nada é pior do que já não ser explorado sob o capital. No capitalismo apenas tem direito a existir quem contribui directa ou indirectamente para o processo de valorização do capital, ou seja, quem promove a multiplicação sem limites do dinheiro através do trabalho assalariado. Como recursos, as existências humanas não têm valor em si mesmas para o capital, são apenas importantes como meio para o insano fim em si mesmo da acumulação de capital.

Assim que isso deixa de acontecer, mesmo necessidades básicas como a alimentação já não são satisfeitas. As costureiras do Sudeste Asiático foram capazes ir vivendo no limite da subsistência, desde que contribuíssem para fazer do dinheiro mais dinheiro com o seu trabalho na indústria têxtil. E satisfaziam as suas necessidades básicas como consumidoras num mercado alimentar capitalista, onde o dinheiro também tem de ser transformado em mais dinheiro, através da produção de mercadorias.

Assim que tal já não for possível, as pessoas e o material são simplesmente eliminados. As mercadorias, incluindo a mercadoria força de trabalho, só funcionam como meros factores de custo se não puderem ser valorizadas. O desperdício de recursos e a ineficiência do capitalismo atingem consequentemente novas dimensões na pandemia. O aumento da fome em massa é acompanhado pela destruição em massa de alimentos – especialmente nos Estados Unidos (7) – porque estes já não podem ser vendidos de forma rentável nos mercados.

Segundo a Welthungerhilfe, (8) o “business as usual” capitalista já é sempre acompanhado por um monstruoso desperdício de alimentos, com 1,3 mil milhões de toneladas de alimentos destruídos todos os anos, enquanto centenas de milhões de pessoas morrem à fome ao mesmo tempo. A crise capitalista da fome contrasta assim com o excesso de produção, pois os assalariados famintos não conseguem criar uma procura solvente nos mercados.

 

A fome nos centros

Só nos Estados Unidos, milhões de toneladas de alimentos básicos (9) foram destruídas em 2020, porque já não podiam ser comprimidos na forma de mercadoria nos mercados, como suportes de valor para o lucro – e consequentemente são consideradas pelo capital apenas como factores de custo, a serem escoados o mais barato possível, por exemplo, enterrando-os.

O aumento da fome e da subnutrição, já um fenómeno de massas nos Estados Unidos antes do surto da pandemia, contrasta consequentemente com um monstruoso desperdício alimentar no ano pandémico de 2020. A organização não governamental Feeding America afirma que, num dos Estados capitalistas mais ricos do mundo, cerca de 37 milhões de cidadãos dos EUA (10) sofriam de "insegurança alimentar" em 2018e por isso tinham problemas em assegurar uma nutrição adequada. De acordo com o relatório, o número de pessoas que sofreram de desnutrição e subnutrição nos EUA deverá aumentar para cerca de 50 milhões em 2020, incluindo 17 milhões de crianças.

O britânico The Guardian (11) relatou que o medo da escassez de alimentos, geralmente associado à luta pela sobrevivência na periferia, está agora a alastrar aos centros. De acordo com o inquérito, "menos de metade" dos lares americanos com crianças se sentiam confiantes de que teriam dinheiro suficiente para pagar "comida no próximo mês". Em Novembro, 5,6 milhões de lares já tinham lutado para pôr comida suficiente na mesa, segundo o relatório.

O aumento da desnutrição na antiga potência hegemónica do Ocidente, onde está simultaneamente desenfreada uma epidemia de obesidade (12) alimentada pelo empobrecimento, segue-se aos surtos de crise do século XXI, como revelam as séries de dados a longo prazo (13): O grande pico histórico de insegurança alimentar nos Estados Unidos ocorreu em 2008, na sequência da crise financeira global, tendo-se mantido em níveis elevados durante anos, apenas com uma ligeira diminuição nos últimos anos. É provável que se atinjam novos máximos históricos em 2020.

A grande diferença entre a fome capitalista no Bangladesh e nos EUA é que, nos centros, alguns cuidados de emergência ainda podem ser prestados, pelo menos a algumas das pessoas afectadas. Em Houston, Texas, de acordo com relatos dos jornais locais, (14) cerca de 45% de todos os assalariados não conseguem agora fazer face às despesas necessárias para a subsistência. Consequentemente, as filas em frente aos bancos alimentares na região têm quilómetros de comprimento – porque os membros da classe média decadente que sofrem de desnutrição têm de conduzir até lá os seus veículos, apenas para esperar horas nos carros para obter a comida. De facto, Houston neoliberalmente deformada não dispõe de transportes públicos funcionais.

 

A fome na periferia

A sul do Texas, na América Central e Latina, quase ninguém pode esperar num automóvel pela distribuição de alimentos. O exército de subnutridos e famintos a sul do Rio Grande deverá aumentar de 11 milhões para 14 milhões na pandemia, (15) com a crise da fome a interagir com uma crise da saúde e uma grave crise económica.

Mais de 1,6 milhões de pessoas (16) na América Latina já contraíram o coronavírus. A economia irá contrair-se em média 5,6% no continente. Particularmente afectados são o Brasil, governado pelo extremista de direita e negador da pandemia Jair Bolsonaro, a casa pobre do continente, o Haiti, e a Colômbia, onde pessoas desesperadas em bairros de lata penduram lenços vermelhos nas janelas, num apelo por comida.

No Mediterrâneo Oriental e no Levante, o Líbano e a maltratada Síria são os epicentros da actual pandemia de fome. A crise económica do Líbano (17) varreu grande parte do que outrora foi a classe média da antiga ilha regional de prosperidade. Centenas de milhares dependem de doações de alimentos depois de a moeda ter sido maciçamente desvalorizada e de o colapso económico ter levado o desemprego disparar.

Na devastada Síria, que tem estreitos laços económicos com o Líbano, cerca de 9,3 milhões de pessoas (18) sofrem de escassez de alimentos ou fome. Nos primeiros seis meses do ano corrente, este número aumentou em 1,4 milhões – alimentado principalmente pela desvalorização incontrolável da moeda síria, que desvaloriza os rendimentos da população. As crianças foram particularmente atingidas, constituindo cerca de metade das pessoas afectadas.

A pandemia também levou a um agravamento da situação já precária de abastecimento em partes de África, (19) onde as consequências económicas acima descritas interagiram com a instabilidade política. Os países afectados incluem a Nigéria, o Chade, o Burkina Faso e o Sudão do Sul. A este respeito, o Índice Mundial da Fome classificou grande parte do continente africano como propenso à fome, já em 2019. (20)

 

Fome em abundância

Globalmente, esta última crise da fome capitalista parece ameaçar a existência física de centenas de milhões de pessoas. O New York Times, (21) num relatório de fundo sobre a fome global em rápido crescimento, citou números das Nações Unidas segundo os quais cerca de 265 milhões de cidadãos da Terra enfrentariam em 2020 níveis de "insegurança alimentar" que ameaçam a vida. Isto representa quase uma "duplicação" do número de pessoas em risco de morrer à fome. O FAZ (22) fala também de 270 milhões de pessoas que se encontram actualmente a "caminho da fome".

As consequências económicas da pandemia equivalem assim a um capitalista assassinato em massa mediado pelo mercado – enquanto milhões de toneladas de alimentos são destruídas devido à falta de procura no mercado. Ao mesmo tempo, porém, a mania capitalista de crescimento está a destruir os fundamentos ecológicos da civilização humana, de modo que as consequências da crise climática cada vez mais evidente complicarão ainda mais a situação alimentar futura da humanidade.

 

 

1.https://www.bpb.de/politik/hintergrund-aktuell/316899/welternaehrungstag

2.https://www.swr.de/swr2/wissen/hunger-pandemie-vereinte-nationen-schlagen-alarm-100.html

3.https://www.dw.com/de/krieg-und-klimawandel-foerdern-hunger/a-50827881

4.https://www.faz.net/aktuell/wirtschaft/textilbranche-gibt-pandemiekosten-an-naeherinnen-weiter-17102357.html

5.http://www.konicz.info/?p=2667

6.https://www.faz.net/aktuell/wirtschaft/textilbranche-gibt-pandemiekosten-an-naeherinnen-weiter-17102357.html

7.https://www.heise.de/tp/features/Marode-kapitalistische-Misswirtschaft-4717812.html

8.https://www.welthungerhilfe.de/aktuelles/blog/lebensmittelverschwendung/

9.https://www.heise.de/tp/features/Marode-kapitalistische-Misswirtschaft-4717812.html

10.https://www.feedingamerica.org/sites/default/files/2020-04/Brief_Impact%20of%20Covid%20on%20Food%20Insecurity%204.22%20%28002%29.pdf

11.https://www.theguardian.com/food/2020/nov/25/us-hunger-surges-spiraling-pandemic

12.http://www.konicz.info/?p=2544

13.https://www.nationalgeographic.com/history/2020/11/one-in-six-could-go-hungry-2020-as-covid-19-persists/

14.https://www.dallasnews.com/business/economy/2020/11/20/food-lines-late-payments-falling-income-as-covid-cases-surge-in-dallas-and-texas-so-do-signs-of-distress/

15.https://www.npr.org/sections/coronavirus-live-updates/2020/05/28/864076929/14-million-people-in-latin-america-caribbean-at-risk-of-hunger-u-n-report-says

16.https://www.voanews.com/americas/wfp-warns-looming-hunger-crisis-latin-america

17.https://www.heise.de/tp/features/Libanon-vor-dem-Kollaps-4866035.html

18.https://www.wfp.org/news/more-syrians-ever-grip-hunger-and-poverty

19.https://www.voanews.com/covid-19-pandemic/coronavirus-pandemic-worsens-hunger-malnutrition-parts-africa

20.https://www.dw.com/de/krieg-und-klimawandel-foerdern-hunger/a-50827881

21.https://www.nytimes.com/2020/09/11/business/covid-hunger-food-insecurity.html

22.https://www.faz.net/aktuell/wirtschaft/textilbranche-in-der-corona-pandemie-naeherinnen-hungern-17102357.html

 

 

Original Pandemie des Hungers publicado em www.exit-online.org em 16.02.2021, agradecendo a permissão da Telepolis onde o texto saiu originalmente em 20.12.2020. Tradução de Boaventura Antunes

 

 

http://www.obeco-online.org/

http://www.exit-online.org/