Tomasz Konicz
Mais do que administração da miséria?
Os contornos das políticas sociais e económicas da administração Biden estão a tornar-se cada vez mais claros
Estará a América actualmente a viver uma viragem à esquerda, que revê o legado político e social do neoliberalismo no seu país de origem? A imprensa de referência da Alemanha parece certamente pensar assim. Na Spiegel-Online (1) o novo presidente dos EUA já em Fevereiro foi apelidado de "Camarada Biden", que estaria a dar ao seu país "uma volta à esquerda".
O Tagesschau (2) no final de Março quis mesmo identificar uma "revolução Biden" nos Estados Unidos. O chefe de Estado democrata quereria uma "mudança total de paradigma" em que “o sistema económico e a imagem da sociedade moldados pelo neoliberal Presidente Ronald Reagan fossem virados de pernas para o ar".
De facto, nos Estados Unidos estão actualmente a ser aplicados programas de estímulo e investimento bilionários, para lidar com as consequências socioeconómicas do último surto da crise e para iniciar uma renovação das infra-estruturas. Na quarta-feira, o Presidente Biden revelou o seu muito aguardado plano de infra-estruturas (3), que se espera totalizar cerca de dois biliões de dólares americanos. O dinheiro deve ser investido no prazo de oito anos.
O plano de investimentos visa iniciar uma recuperação a longo prazo através da modernização das deterioradas infra-estruturas da América. Entre outras coisas, o foco é a infra-estrutura de transportes, o abastecimento de água, a expansão da Internet de banda larga e a produção industrial. Este projecto de investimento deverá ser financiado por um aumento dos impostos sobre as sociedades de 21 para 28 por cento, bem como pela eliminação de lacunas fiscais. (4)
A maior parte destas despesas é destinada a infra-estruturas de transportes e à circulação: a modernização de pontes e estradas, a expansão de um sistema de transportes públicos, a rede ferroviária, as vias navegáveis e os aeroportos. Mais de 100 mil milhões de dólares estão reservados apenas para a promoção de automóveis eléctricos. Centenas de milhares de milhões são destinados a reforçar e modernizar a indústria e as cadeias de abastecimento.
Centenas de milhares de milhões de dólares irão também para a promoção de habitações "acessíveis e sustentáveis" para enfrentar o problema dos sem-abrigo generalizado nos Estados Unidos. De três dígitos são também os milhares de milhões investidos na modernização do sistema escolar público, investigação e educação, programas de emprego, rede eléctrica e sistema de águas.
Este programa de investimento foi precedido em meados de Março por um programa de crise (5) atingindo os 1,9 biliões de dólares. Aqui estiveram no centro das medidas de crise os pagamentos de ajuda temporária aos cidadãos americanos, destinados a impulsionar o consumo interno.
Para além do pagamento único de $1400 aos cidadãos americanos que ganham menos de $80 000 anualmente, (6) subsídios semanais de desemprego de $300 foram também prolongados até Setembro de 2021. Estes pagamentos suplementares deveriam ter expirado em Março.
Além disso, foi introduzido um abono de família de 300 dólares por criança (7) – também limitado a um ano por agora – a ser pago através de descontos fiscais, e que várias iniciativas no seio do Partido Democrata querem tornar permanente. Centenas de milhares de milhões entraram neste pacote de ajuda, particularmente em alívio directo da pandemia, como o financiamento da campanha de vacinação ou pagamentos de ajuda a cidades e vilas.
Os democratas podem tirar partido de uma janela de oportunidade nestes programas de ajuda e investimento de milhares de milhões de dólares que durarão pelo menos até às eleições intercalares de 2022. Presentemente, o Presidente Biden pode contar com uma maioria na Câmara dos Representantes e – embora muito estreita – no Senado, para que estes projectos possam, em última análise, ser levados por diante sem bloqueios legislativos substanciais por parte dos republicanos.
A batalha decisiva sobre a forma destes pacotes de medidas, bem como sobre a política de reformas da administração Biden, está pois a ter lugar no seio do Partido Democrático. E foi assim que precisamente as iniciativas decisivas, que poderiam realmente ter quebrado a tendência neoliberal das últimas décadas, foram bloqueadas pelos Democratas e pelos Republicanos.
De volta ao “business as usual”
Uma grande batalha foi travada entre as correntes de esquerda e de direita no seio dos Democratas sobre o aumento do salário mínimo que deveria fazer parte do referido pacote de ajuda pandémica. O salário mínimo deveria ser aumentado gradualmente de $7,25 para $15 como parte da iniciativa promovida pelo senador de esquerda Bernie Sanders. O salário mínimo foi aumentado pela última vez nos EUA em 2009.
A tentativa falhou numa votação no Senado de 42-58. Oito senadores democratas (8) votaram com republicanos contra a introdução de um salário mínimo que teria reduzido o número de trabalhadores pobres (9) nos Estados Unidos.
A reforma do sector privado da saúde dos Estados Unidos, um dos mais caros e ineficazes de qualquer país industrializado, era já um ponto central de discórdia durante as primárias democráticas. Bernie Sanders, o concorrente de esquerda de Joe Biden na altura, apelou à introdução de um sistema de saúde público nos Estados Unidos. (10) Esta era uma das exigências mais populares do socialista de Vermont.
Joe Biden, em resposta à crescente pressão, quis criar uma "opção pública" dentro dos cuidados de saúde privados – mas não é claro, mesmo no início de Abril, se este plano se vai tornar realidade. (11)
Os cuidados de saúde farão parte das próximas medidas de reforma da administração Biden, disse numa entrevista o porta-voz da Casa Branca, Ron Klain (12). A intenção é baixar "os custos para a maioria dos americanos", especialmente os dos "medicamentos com receita médica", disse ele. Mas as promessas sobre modelos de seguros de saúde públicos não se concretizaram. Os cidadãos americanos só podem continuar a sonhar em abolir o ineficiente e ruinoso sistema de saúde privado.
Outra disputa que pode realmente ser usada para avaliar até que ponto o "camarada" Biden quer superar o sistema económico moldado pelo neoliberal "Presidente Ronald Reagan" é a política fiscal. As propostas (13) actualmente em discussão, para além do já mencionado aumento dos impostos sobre as sociedades de 21 para 28 por cento, exigem também uma nova taxa máxima de 39,6 por cento – actualmente é de 37 por cento.
Mas isto só parcialmente reverteria os cortes fiscais extremos para as empresas e para os ricos que o populista de direita Donald Trump implementou em 2017. Seria um prosaico retorno ao “business as usal” neoliberal, uma vez que os cortes fiscais em vigor desde o início da era neoliberal sob Ronald Reagan não seriam tocados. Em comparação, entre os anos 60 e 80 – até Reagan tomar posse – as taxas do imposto sobre as sociedades flutuavam entre mais de 50 e 45 por cento. (14)
O New York Times recordou, no final de 2019, por exemplo, que Trump baixou a taxa do imposto sobre as sociedades de uma média de 35 por cento para 21 por cento (15) enquanto a administração Biden está agora a debater se deve aumentar novamente para 25 ou para 28 por cento (16). A taxa máxima de imposto sobre as pessoas singulares antes de Trump era exactamente os 39,6 por cento (17) para os quais deve ser aumentada novamente sob Biden.
Assim, até as tentativas modestas de fazer com que a oligarquia norte-americana pague falharam. Isto aplica-se sobretudo à iniciativa da senadora de esquerda-liberal Elizabeth Warren, cuja recusa (18) em apoiar o socialista Bernie Sanders nas primárias contribuiu significativamente para a vitória aí obtida por Biden. No final de Março, os media dos EUA noticiaram que, contrariamente às expectativas gerais, a administração Biden não implementaria o imposto sobre a riqueza concebido por Warren. (19)
A proposta era de impor um imposto de dois por cento aos milionários com activos superiores a 50 milhões de dólares, enquanto os milionários com activos superiores a mil milhões de dólares pagariam um imposto sobre a riqueza de três por cento. O imposto Warren, que as sondagens mostram ser apoiado por cerca de dois terços dos cidadãos dos EUA, teria angariado três biliões de dólares para o tesouro na próxima década. Bernie Sanders, no entanto, queria impor impostos de 53 a 97,5 por cento à oligarquia dos EUA. (20)
Clima: muito pouco e muito tarde
Finalmente, estes planos de investimento da administração Biden não conseguem abordar as alterações climáticas, a maior ameaça actual ao processo da civilização. As organizações não governamentais (ONG) criticam (21) que estes planos de investimento têm o foco errado e são demasiado pequenos para atingir a meta de 50 por cento de redução das emissões até 2030. (22)
O "plano de infra-estruturas amigo da indústria" de Biden perde "uma das nossas últimas boas oportunidades de parar a emergência climática", advertiu Brett Hartl, do Center for Biological Diversity. Em vez de iniciar um novo "Plano Marshall" para o clima, Biden confia nos subsídios e "no fantástico desejo de que o mercado livre nos salve". Não há "medidas ambiciosas" no programa de investimento para "eliminar os combustíveis fósseis" rapidamente.
Grupos progressistas, por outro lado, apelaram a um programa de investimento maciço, historicamente sem precedentes, de 10 biliões de dólares (23) para enfrentar eficazmente a crise social e climática nos Estados Unidos. Bernie Sanders, durante a campanha das primárias, defendeu um gigantesco programa de transformação num volume de 16 biliões (24) para enfrentar a crise climática.
Os espíritos críticos nos Estados Unidos estão consequentemente longe de apelidar o novo presidente de "camarada". O jornalista progressista Chris Hedges publicou uma avaliação negativa das políticas da administração Biden no website Salon em meados de Março. (25) Disse que estas se caracterizam por medidas temporárias e que evitam abordar reformas estruturais sérias.
Segundo Hedges, as "elites governantes" terão compreendido que estavam a enfrentar uma crise, pelo que "atiraram algum dinheiro" para proporcionar "alívio momentâneo" a partes da população. Mas o "motor da nossa distopia", que Hedges localiza no absurdo aumento da desigualdade social nos Estados Unidos, não seria tocado pelos planos de reforma.
Os dez por cento superiores da pirâmide de riqueza dos EUA controlavam 76 por cento da riqueza, enquanto os 50 por cento inferiores tinham apenas um por cento à sua disposição. Apenas um novo "New Deal" com "reformas estruturais profundas" mudaria isso, mas estas são um "anátema" para a actual administração amiga das empresas. Ao recusar-se a ir às "raízes" da crise social nos Estados Unidos, a administração Biden está a criar as melhores condições para o surgimento de um "demagogo como Donald Trump", advertiu Hedges.
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1. https://www.spiegel.de/politik/ausland/joe-biden-welches-kalkuel-hinter-der-linken-innenpolitik-des-us-praesidenten-steht-a-8af25620-3b7a-47c5-b2a1-4af42e838d30
2. https://www.tagesschau.de/ausland/amerika/biden-revolution-101.html
3. https://www.cnbc.com/2021/03/31/biden-infrastructure-plan-includes-corporate-tax-hike-transportation-spending.html
4. https://www.yahoo.com/finance/news/biden-infrastructure-plan-details-113700242.html
5. https://www.cnbc.com/2021/03/11/biden-1point9-trillion-covid-relief-package-thursday-afternoon.html
6. https://www.fr.de/politik/joe-biden-usa-corona-virus-hilfspaket-kongress-repraesentantenhaus-billionen-90221492.html
7. https://www.nytimes.com/2021/03/07/us/politics/child-tax-credit-stimulus.html
8. https://www.cnet.com/personal-finance/15-federal-minimum-wage-amendment-fails-in-senate-heres-what-you-should-know
9. https://www.qualityinfo.org/-/who-are-the-working-poor-
10. https://www.heise.de/tp/features/Frei-sein-high-sein-Enteignung-muss-dabei-sein-4663687.html?seite=all
11. https://www.cnbc.com/2021/04/01/biden-considers-health-care-public-option-in-economic-recovery-plan.html
12. https://www.politico.com/live-stream/playbook-with-white-house-chief-of-staff-ron-klain
13. https://www.nytimes.com/2021/03/27/business/biden-taxes-business-rich.html
14. https://en.wikipedia.org/wiki/Corporate_tax_in_the_United_States
15. https://www.nytimes.com/2019/12/30/business/trump-tax-cuts-beat-gilti.html
16. https://www.nytimes.com/2021/03/27/business/biden-taxes-business-rich.html
17. https://www.cnbc.com/2020/02/13/these-are-the-winners-and-losers-of-the-trump-tax-cuts.html
18. https://www.heise.de/tp/features/Das-Imperium-schlaegt-zurueck-4675916.html
19. https://www.politico.com/news/2021/03/30/biden-elizabeth-warren-wealth-tax-478642
20. https://www.heise.de/tp/features/Frei-sein-high-sein-Enteignung-muss-dabei-sein-4663687.html?seite=all
21. https://www.commondreams.org/news/2021/03/31/critics-warn-biden-infrastructure-plan-falls-woefully-short-climate-crisis
22. https://www.commondreams.org/news/2021/03/30/scientists-biden-slash-emissions-50-below-2005-levels-2030
23. https://www.commondreams.org/news/2021/03/29/biden-prepares-unveil-infrastructure-plan-progressives-push-10-trillion-investment
24. https://www.heise.de/tp/features/Frei-sein-high-sein-Enteignung-muss-dabei-sein-4663687.html?seite=all
25. https://www.salon.com/2021/03/15/bandaging-the-corpse-bidens-big-bailout-cant-pull-america-out-of-its-death-spiral
Original Mehr als Elendsverwaltung? Die Umrisse der Sozial- und Wirtschaftspolitik der Biden-Administration zeichnen sich immer deutlicher ab in www.exit-online.org em 17.05.2021. Publicado inicialmente em 4.4.2021 em Telepolis, a quem a exit! agradece a permissão para publicar este texto na sua página.