O fim do Ocidente na crise do coronavírus

 

Tomasz Konicz

 

O texto esboça as convulsões da hegemonia norte-americana, bem como a sua continuada erosão dentro do sistema de aliança ocidental em desintegração, no contexto do processo histórico de crise do limite interno do capital que se desdobra por etapas. A partir da transformação da base económica da posição hegemónica de Washington, que teve lugar há uns bons 40 anos e foi desencadeada pelo fim do boom fordista do pós-guerra e pelo subsequente período de crise de estagflação, bem como da modificação do papel militar da máquina militar dos EUA, após o fim da "Guerra Fria" contra o socialismo de Estado que colapsou em 1989, é enfatizado o papel central dos circuitos globais do défice, incluindo a financeirização do capitalismo, na manutenção da hegemonia dos EUA até 2008. Com o surto de crise de 2008, porém – esta a tese central do texto – os momentos de concorrência de crise também se afirmaram no Ocidente, de modo que foi precisamente o nacionalismo económico da administração Trump que acelerou a desintegração do Ocidente e o colapso final da hegemonia americana. Consequentemente, um regresso ao status quo ante Trump já não será possível. O processo histórico de crise progrediu tanto até agora, e não em último lugar alimentado pelo coronavírus, que qualquer tentativa de alcançar "estabilidade" por parte dos centros ocidentais se revelará inútil. (Apresentação do texto na exit! nº 18, 05/2021)

 

1. Circuitos de défice globais e hegemonia dos EUA * 2. A desintegração da sociedade do trabalho nos EUA * 3. Concorrência de crise no interior do Ocidente * 4. O grande surto de crise de 2020 * 5. A frágil posição da Alemanha na UE

 

As coisas nunca mais voltarão a ser como eram. Em Outubro de 2020, pouco antes das eleições presidenciais americanas de 3 de Novembro, os líderes de opinião de ambos os lados do Atlântico reflectiram sobre as perspectivas das relações euro-americanas, caso o populista de direita Donald Trump titular do cargo fosse derrotado pelo seu adversário, o candidato democrata Joe Biden, "candidato ao establishment". (1) A opinião dominante foi que não haveria regresso a uma aliança estratégica liderada pelos EUA para um renascimento do "Ocidente", independentemente do resultado das eleições. Fosse Trump ou Biden a residir na Casa Branca, a "divisão" entre a Europa e os EUA continuaria, titulava o Washington Post. O fim da hegemonia dos Estados Unidos como principal potência do Ocidente, que foi estabelecida após o fim da Segunda Guerra Mundial e consolidada durante a Guerra Fria, parece selado. Sobre isso se tem falado até entre o establishment político de Washington.

Mesmo que o declínio da hegemonia dos EUA, juntamente com a correspondente ruptura transatlântica, seja uma consequência irreversível do processo de crise histórica do sistema mundial capitalista, que ocorre em grande parte independentemente das acções do respectivo pessoal político, a administração Trump tem no entanto de ser certificada como tendo acelerado este declínio. Foram precisamente as políticas nacionalistas do egomaníaco populista de direita da Casa Branca, que originalmente se propunham tornar a América "grande", que contribuíram para corroer a aceitação da hegemonia americana na UE – especialmente no seio das elites funcionais da RFA. O ponto central da discórdia foi o crescente proteccionismo propagado por Washington na era Trump.

Contudo, para iluminar totalmente a ligação entre o proteccionismo de Trump e a erosão acelerada da hegemonia dos EUA, é necessário um breve excurso sobre os fundamentos económicos da hegemonia dos EUA nas últimas décadas, desde o fim da "Guerra Fria" e o colapso do socialismo de Estado – especialmente no contexto do processo de crise. Até à implosão da União Soviética e à liquidação do bloco de Leste, os EUA funcionaram a nível político como o indiscutível poder protector e garante do sistema da aliança ocidental, devido aos seus instrumentos militares de poder, mas a mudança na dinâmica económica que assegurou uma hegemonia americana estável dentro do "Ocidente" começou já na década de 1980, em reacção ao fim do boom fordista do pós-guerra na década de 1970 e ao período de crise de estagflação que o acompanhou.

Até aos anos setenta, o movimento expansionista do boom fordista, que por vezes levou a uma verdadeira escassez de força de trabalho, constituiu a base económica de uma hegemonia estável dos EUA. Os EUA, bem como as potências subordinadas no seio da aliança ocidental, puderam beneficiar da valorização ampla e crescente da força de trabalho na produção de mercadorias, de modo que dificilmente aparecia a concorrência entre os Estados ocidentais – a que de qualquer modo se sobrepunha a Guerra Fria. A maré fordista levantou todos os barcos, mesmo que alguns locais económicos – como a RFA ou o Japão – beneficiassem mais do boom do que outros – tais como os EUA, cuja indústria já estava a ficar pouco a pouco para trás da RFA e do Japão na fase final do fordismo.

Desde então, a posição hegemónica de grande potência deve ser entendida como um sistema de poder internacional que se baseia não só na mera dimensão do poder, mas também na aceitação ou, pelo menos, na tolerância. A hegemonia da potência dirigente é aceite ou tolerada pelos Estados subordinados que fazem parte do sistema hegemónico, precisamente porque também retiram vantagens deste arranjo de poder. Os EUA foram os maiores beneficiários da sua posição de hegemonia do sistema de aliança ocidental – sobretudo através da função do dólar como moeda de reserva mundial – mas o boom fordista e o papel dos EUA como potência militar garante na Guerra Fria ofereceu a países como a Grã-Bretanha, a RFA, a Itália e mesmo a França razões suficientes para aceitarem esta supremacia de Washington. Em contraste, o conceito de pura dominância visa descrever uma constelação de poder que se baseia na mera dimensão do poder sem que este possa ser tolerado. Um exemplo perfeito disto é o papel de Berlim na UE durante a crise do euro, quando apenas a ameaça de cair no colapso social forçou os países da periferia sul da Europa a cumprir as exigências de austeridade de Schäuble (cf. Konicz 2015).

 

1. Circuitos de défice globais e hegemonia dos EUA

Com o fim do boom fordista do pós-guerra, o início da fase de crise da estagflação e o avanço do neoliberalismo nos EUA e na Grã-Bretanha no início dos anos oitenta, o quadro mudou. A financeirização do capitalismo iniciada pelo choque Volcker fez do mercado financeiro norte-americano o centro da valorização do valor fictícia e da correspondente globalização de uma dinâmica de endividamento que continua até aos dias de hoje. A fase de taxas de juro elevadas, introduzida no início da década de 1980 sob o então Presidente da Fed, Paul Volcker, não só pôs fim à inflação descontrolada à custa da economia dos EUA e do colapso da modernização atrasada na periferia do sistema mundial, como também permitiu o estabelecimento de circuitos de défice globais, através do afluxo de capital em busca de investimento no sector financeiro dos EUA, que avançou para se tornar a nova base económica da hegemonia dos EUA (cf. Konicz 2016, 51ss.).

A estabilização do centro ocidental na sequência da viragem neoliberal foi conseguida, por um lado à custa da periferia em colapso, que perdeu qualquer perspectiva de "recuperação" perante os centros nas crises da dívida dos anos oitenta (América Latina, África), e por outro lado através da formação de um défice comercial nos Estados Unidos, que tendeu a aumentar até 2008 e ao qual correspondia um sector financeiro em rápida expansão. Os EUA transformaram-se no conhecido "buraco negro" da economia mundial, que absorvia grande parte do excedente da produção da indústria real produtora de mercadorias através dos seus défices comerciais e, por conseguinte, teve um efeito estabilizador em todo o sistema mundial, que estava a sofrer de uma crise fundamental de valorização. Além disso, o papel militar dos Estados Unidos mudou após o colapso do socialismo de Estado de cunho soviético: O exército americano passou a agir como o famigerado "polícia mundial", intervindo nas zonas desmoronadas do mercado mundial e na periferia, com a pretensão de fazer valer os interesses ocidentais ou "estabilizar" certas regiões (cf. Kurz 2003 e Bedszent 2014a). As consequências de tais 'tentativas de estabilização' e 'missões de paz' orwellianas são bem conhecidas.

Os Estados Unidos, em lenta desindustrialização, conseguiam contrair empréstimos na moeda de reserva mundial controlada por Washington, a medida global do valor de todas as mercadorias, de modo que o consumo da classe média norte-americana – financiado a crédito – se tornou um dos mais importantes motores económicos, enquanto países como a RFA, Japão, Coreia do Sul e sobretudo a China foram capazes de construir ou manter a indústria nacional através das suas exportações para os EUA. Ao mesmo tempo, estes países exportadores investiram os seus rendimentos em títulos dos EUA, de modo que a China, por exemplo, pôde tornar-se o maior credor estrangeiro dos EUA. A coerção de endividamento do sistema mundial, objectivamente dada – e a aumentar com o avanço do desenvolvimento global das forças produtivas  – assumiu consequentemente a forma destes circuitos de défice, em que os défices de exportação dos EUA estimularam a economia mundial, enquanto os títulos de dívida fluíam dos Estados Unidos para a China ou para o Japão.

Devido ao crescente desenvolvimento global da produtividade, já não foi estabelecido um novo regime de acumulação real, que valorizasse o trabalho assalariado em massa e pudesse formar a base de um sistema hegemónico estável, mas a formação de circuitos de défice e a simulação de processos reais de valorização na esfera financeira através do crescimento explosivo do capital fictício – apesar da crescente instabilidade e da formação de bolhas do sistema financeiro mundial – conseguiram manter esta hegemonia americana durante muitos anos. Todos pareciam beneficiar, em graus variáveis, da posição de Washington como hegemonista ocidental – e, de facto, global. Os EUA mantiveram a sua economia deficitária durante muitos anos, o que permitiu à classe média aumentar o consumo apesar da estagnação dos níveis salariais. Através da sua moeda de reserva mundial, Washington foi capaz de expandir a sua superioridade militar em grande parte a crédito e actuar como "polícia mundial".

É agora claro o que Trump conseguiu com as suas guerras comerciais e o crescente proteccionismo: tentou cortar os circuitos de défice que levaram muitos Estados e áreas económicas a aceitar ou – no caso da China, por exemplo – pelo menos tolerar temporariamente a posição hegemónica dos EUA. Sob Trump, os Estados Unidos já não estavam dispostos a suportar os custos económicos da sua hegemonia, que consistia em manter o gigantesco défice comercial americano. Foi precisamente a possibilidade de exportar produção excedentária através de excedentes comerciais para os EUA que formou um importante pilar da posição hegemónica de Washington no seio do sistema da aliança ocidental. Este incentivo económico para permanecer no sistema da aliança ocidental desapareceu agora. O que ficou sob Trump foi o poder militar de Washington e a tentativa de impor os interesses económicos nacionais através de guerras comerciais. Mas isto já não é hegemonia, que também requer um certo grau de aceitação, mas sim pura dominância do poder político, que só pode ser mantida através da coerção.

No entanto, o populista de direita na Casa Branca apenas derrubou o que já estava a cair. Este sistema hegemónico, baseado em circuitos de défice e, portanto, numa dinâmica de dívida globalizada, tinha começado a entrar em colapso o mais tardar com o surto de crise de 2008 – ou seja, com o rebentar das bolhas imobiliárias transatlânticas nos EUA e na Europa. A eleição de Trump como presidente dos EUA, em particular, é uma consequência política de a economia mundial deficitária ter atingido os seus limites. O défice estrutural a longo prazo dos EUA devastou-os socio-economicamente, o que Trump prometeu rever através de uma política nacionalista de proteccionismo e "reindustrialização".

 

2. A desintegração da sociedade do trabalho nos EUA

Trump foi eleito com base na promessa de tornar os EUA "grandes" de novo, o que significava especificamente a reindustrialização do país, através do proteccionismo e da exclusão da força de trabalho concorrente da América Central e do Sul – esta foi a promessa populista de direita ao Rust Belt dos EUA, à classe trabalhadora branca empobrecida dos antigos Estados industriais do Noroeste. E foi precisamente a – antiga – mão-de-obra industrial deste Cinturão da Ferrugem que deu a Trump a sua vitória eleitoral de 2016 nos antigos bastiões democratas.

Embora o colapso da bolha imobiliária em 2007/2008 se tenha transformado numa nova bolha global pela emissão monetária excessiva dos bancos centrais e programas de estímulo económico massivo, esta bolha de liquidez, que se manteve até 2020, já não foi capaz de alcançar os mesmos efeitos de consumo e emprego alargados que a economia de défice no decurso da bolha imobiliária nos primeiros oito anos do século XXI, quando o sector da construção sofreu uma enorme subida e largos sectores da população puderam beneficiar disso. A bolha de liquidez fantasmagórica, em vez disso, ocorreu em grande parte na esfera do capital fictício na superestrutura financeira do capitalismo tardio, sem que a "classe média" pudesse beneficiar dela em grau significativo.

Pelo contrário, a desindustrialização dos EUA nas últimas décadas, com os antigos centros industriais do Norte a transformarem-se no famoso "Rust Belt", foi acompanhada pela expansão sucessiva do sector de baixos salários, que já estava à beira de explorar a maioria dos cidadãos dos EUA pouco antes da explosão da bolha de liquidez, na sequência do combate à pandemia. A erosão da sociedade do trabalho americana é também evidente na emergência da economia de partilha ou gig-economy, na qual plataformas baseadas na Internet, tais como o famigerado serviço de transporte Uber, servem de intermediários dos prestadores de serviços. Entretanto, diz-se que cerca de 30% dos assalariados nos Estados Unidos vivem neste sector com empregos a tempo parcial como falsos trabalhadores independentes precários pagos ao dia.

A crise de 2020 depara-se assim com uma sociedade do trabalho americana em erosão, estruturada de modo bastante diferente da situação no surto de crise de 2008. As enormes convulsões sociais que se seguiram ao rebentamento da bolha imobiliária levaram a um rápido colapso da outrora ampla classe média americana, que, face a décadas de salários estagnados e aumento do custo de vida, de qualquer modo só conseguiu manter o seu estilo de vida até ao surto de crise de 2008 aumentando o endividamento – por exemplo, contraindo hipotecas sobre a própria casa, que estava a subir de preço.

Estudos que examinaram a auto-avaliação social dos cidadãos americanos encontraram um colapso da classe média, que caiu de cerca de 53% no início da crise imobiliária de 2008 para apenas 44% em 2014. Ao mesmo tempo, a percentagem de cidadãos americanos que se consideravam pobres aumentou de 25% no ano da crise de 2008 para 40% em 2014 – o que corresponde praticamente à percentagem de trabalhadores pobres na força de trabalho americana em erosão. (2) Além disso, o crescimento dos salários nos Estados Unidos, que finalmente beneficiou os trabalhadores pobres, só começou em 2018/19, enquanto antes disso a "recuperação" passou largamente ao lado dos trabalhadores assalariados. Os salários na base da pirâmide de rendimentos subiram durante apenas um ano antes do colapso económico de 2020. (3)

Mas apenas a perspectiva a longo prazo (4) deixa claro quão fraca foi a última retoma nos Estados Unidos, que foi principalmente apoiada pela bolha de liquidez dos bancos centrais. A economia das bolhas gerada pela "financeirização" neoliberal do capitalismo, na qual o crescimento do crédito e as bolhas especulativas nos mercados financeiros mundiais actuam como motores económicos, está a perder cada vez mais dinâmica económica: entre a explosão da bolha imobiliária em 2008 e o último "ano de boom" em 2019, o produto interno bruto (PIB) dos Estados Unidos aumentou em média 1,7 por cento por ano. Em contraste, na fase de ascendência da grande bolha imobiliária transatlântica, entre 2001 e 2007, a economia dos EUA ainda foi capaz de crescer em média 2,5 por cento ao ano. No auge do boom do mercado financeiro neoliberal, entre 1991 e 2000, quando as esperanças de um novo regime de acumulação levaram as acções das empresas de alta tecnologia a alturas absurdas durante a bolha do Dot-com, a economia americana conseguiu mesmo crescer em média 3,4 por cento. Mas mesmo esta fase de boom durante a administração Clinton empalidece perante o longo boom fordista pós-guerra entre 1948 e 1973, uma vez que neste período a economia dos EUA cresceu em média 4% ao ano (embora estes números sejam apenas comparáveis numa medida limitada, uma vez que o "crescimento" de hoje é mediado por capital fictício: cf. o artigo de Fábio Pitta nesta edição. Cf. também Kurz 2005, 220ss.).

O surto de crise de 2020 atinge assim uma sociedade americana empobrecida, dominada pelas tendências de estagnação económica, que não recuperou das distorções da crise imobiliária, incluindo a recessão de 2008/09. A classe média americana está a derreter rapidamente, o mercado de trabalho mostra o aumento característico do emprego precário e dos salários de miséria que tem acompanhado a erosão das sociedades capitalistas do trabalho desde os impulsos de racionalização maciça na sequência da revolução informática na maioria dos países centrais do sistema mundial. Mesmo que a Reserva Federal dos EUA consiga, através das suas medidas de apoio historicamente sem precedentes, evitar o colapso dos mercados financeiros mundiais e a desvalorização do capital fictício que neles circula por enquanto, apesar de uma segunda vaga da pandemia, parece claro que irá continuar a acima delineada tendência histórica para a estagnação e a erosão da sociedade capitalista do trabalho nos Estados Unidos. Como consequência, as realidades sociais dos assalariados nos centros do sistema mundial podem convergir com as da periferia ou semiperiferia, onde há muito tempo existe um amplo estrato de pessoas economicamente "supérfluas" – que, afinal, constituíram o sujeito central da "crise dos refugiados" (cf. Kurz 2003, 156ss. e Böttcher 2018).

A auto-apresentação dos EUA como vítima de "práticas comerciais desleais" cultivada por Trump parece assim conter um núcleo de verdade. Com o rebentar da bolha do imobiliário, a economia do défice nos EUA esgotou-se, de modo que, pela primeira vez em muito tempo, a posição-chave da produção de mercadorias no capitalismo voltou de novo ao centro da discussão pública. De repente, todos os centros do sistema mundial querem promover e proteger a sua indústria, que anteriormente era muitas vezes considerada pelos economistas como um ramo da economia moribundo e subordinado ao "sector dos serviços" – o que ironicamente também confirma a estrita definição marxiana de trabalho criador de valor na indústria produtora de mercadorias.

A crescente concorrência de crise entre os Estados e as zonas económicas ocidentais após o rebentamento das bolhas imobiliárias acelerou significativamente a desintegração do Ocidente. A primeira fase da guerra económica foi a corrida à desvalorização das moedas, na qual Berlim teve uma vantagem maciça devido à crise do euro.

O euro está maciçamente subvalorizado em relação ao poder económico da RFA, pelo que a ameaça de desintegração da zona monetária europeia ao longo dos anos deu à Alemanha vantagens de exportação adicionais em mercados de exportação não europeus, através de uma taxa de câmbio particularmente baixa. A obtenção dos maiores excedentes comerciais possíveis estabeleceu-se como o meio central de luta nesta concorrência de crise, na qual as economias perdedoras experimentam um declínio sócio-económico permanente. Esta política de empobrecer-o-vizinho, tal como praticada com eficiência devastadora pela Alemanha em particular em relação à zona euro, conduz à dívida, à desindustrialização e, em última análise, à miséria em massa nos países alvo destas ofensivas de exportação: na periferia sul da "Europa alemã", bem como no Rust Belt dos EUA.

 

3. Concorrência de crise no interior do Ocidente

Esta feroz concorrência globalizada, em que a concorrência subjectiva pela localização do investimento no mercado mundial decide que país é sobrecarregado com a dinâmica objectiva da dívida, chegou finalmente a um ponto alto nas disputas de política comercial sob Trump. Para os defensores de políticas proteccionistas na administração Trump, as guerras comerciais pareciam funcionar como jogos de soma nula. De acordo com estas ideias, a troca de golpes na política comercial tenderia a reduzir os desequilíbrios. Para os EUA, isto significava uma redução do défice; para países como a RFA e a China, significava que os seus excedentes iriam derreter. Washington pensou que tinha a maior vantagem, como revela um olhar sobre as balanças comerciais na altura. Os EUA registaram um défice comercial gigantesco de 375 mil milhões de dólares americanos com a China em 2017. Com a Alemanha, o défice americano ascendia ainda a 64 mil milhões de dólares americanos. (5)

Os Estados Unidos aparecem assim como o beneficiário inevitável de uma guerra comercial. O que aqui não é tido em conta é a recessão económica geral que poderá ser desencadeada por restrições comerciais mútuas. E todas as "partes beligerantes" numa guerra comercial estão na realidade ameaçadas por isso. Foi esta dinâmica de crise proteccionista, em que todos os Estados acabaram por fechar os seus próprios mercados, que exacerbou ainda mais na década de 1930 a crise de imposição que eclodira em 1929.

A administração Trump, entretanto, procurou utilizar a política comercial e o acesso ao mercado dos EUA como uma alavanca geopolítica de poder. Apesar das tarifas do aço de 2018, Washington assinalou que manteria "as portas abertas a isenções", informou o Financial Times em Março de 2018, (6) dizendo que não queria "alienar os parceiros internacionais mais próximos da América". Por conseguinte, Washington permitirá que os seus aliados procurem isenções. A administração americana também quer iniciar um processo que permita a "exclusão de certos produtos e países com estreitas relações com a segurança para os EUA" do regime pautal, de acordo com o Financial Times.

No entanto, o proteccionismo de Trump é um sinal de fraqueza. Em última análise, esta instrumentalização geopolítica das políticas proteccionistas só permite a Washington atrasar a sua descida imperial. A grande fraqueza económica dos EUA, o extremo défice comercial, serve para pressionar os concorrentes dos EUA, que estão calibrados para a globalização. Sob Trump, os EUA altamente endividados poderiam ser comparados a uma Grécia carregada de armas, que controlasse a moeda de reserva mundial e reconstruisse brutalmente as regras da economia global – e com a qual Berlim não poderia brincar, como fez com Atenas em 2015. Os EUA já perderam a sua hegemonia. Um hegemonista não tem de proteger o seu sistema de aliança da desintegração com medidas coercivas e ameaças, tal como Washington pratica – a situação actual é de mera dominância de poder político, em que os EUA ainda querem forçar os seus "parceiros" ocidentais a cooperar no "sistema de valores" ocidental, ameaçando-os com tarifas punitivas. Como explicado no início: um hegemonista não tem de utilizar permanentemente os seus meios de poder, porque os poderes organizados no seu sistema de aliança também lucram com isso – e consequentemente aceitam-no.

As intervenções abertas dos EUA no quintal europeu da RFA – na Europa Central e Oriental – contribuíram para uma maior perturbação do Ocidente. Isto é especialmente verdade no contexto das disputas sobre o gasoduto germano-russo do Mar Báltico, ao qual a Polónia e os Estados bálticos se opõem veementemente, porque prejudica o seu estatuto de países de trânsito de energia. Em última análise, os EUA sob Trump procuraram dividir a "Europa alemã", explorando estes conflitos intra-europeus, a fim de quebrar a dominância de Berlim na zona monetária europeia e impedir a formação de um eixo euro-asiático Berlim-Moscovo. Os EUA quiseram reforçar a sua presença militar na Polónia, através da construção de uma base permanente (actualmente, ou seja, Novembro de 2020 incerta em função do resultado das eleições), bem como impulsionar a venda de fontes de energia, especialmente gás liquefeito, à Europa Central e Oriental. A concepção geopolítica dos EUA sob Obama já visava vincular os velhos aliados na Europa e na Ásia a si próprios através do aumento das exportações de energia. (7)

A última tentativa de manter e renovar a hegemonia dos EUA foi de facto feita pelo antecessor de Trump, que queria transformar os Estados Unidos num exportador de combustíveis fósseis, precisamente através da expansão da indústria de fracking ecologicamente desastrosa. Durante anos na administração Obama, a geopolítica americana procurou em vão contrariar a ameaça de perder a hegemonia global com uma política de aliança "oceânica", que procurava construir tanto um sistema de aliança do Pacífico como um sistema de aliança atlântica, através de acordos de comércio livre destinados a conter tanto a Rússia como a China. Em última análise, as negociações transatlânticas, nas quais o fornecimento de produtos do fracking dos EUA à Europa sempre desempenhou um papel central, falharam devido à resistência da Alemanha. A potência ex-hegemónica em declínio e fortemente endividada, os EUA, tem absolutamente de continuar a tentar tudo para salvar o dólar americano como moeda mundial, razão pela qual está a tentar impedir a todo o custo o estabelecimento de um espaço económico eurasiático unificado – até há pouco tempo existia também uma corrente no seio das elites funcionais alemãs que o defendia.

De resto, este foi também o pano de fundo das tensões entre a Europa e os EUA durante a intervenção ocidental na Ucrânia. Washington e Berlim queriam impedir a formação de um concorrente geopolítico, a União Eurasiática, que o Kremlin estava a promover juntamente com a Ucrânia na altura. Tanto Washington como Berlim tinham um interesse substancial nisto: Berlim conseguiu ver-se livre de um concorrente geopolítico significativo à sua Europa em rápido empobrecimento e os EUA opuseram-se à formação de um sistema de aliança euro-asiático que poderia ter-se tornado um concorrente monetário sério do dólar americano. As discrepâncias entre Berlim e Washington (manifestadas no "Fuck the EU" de Nuland) resultaram principalmente do facto de que os EUA queriam escalar a intervenção tanto quanto possível, a fim de, adicionalmente, introduzir uma cunha entre a Alemanha-Europa e a Rússia, enquanto Berlim queria levar a cabo a desvinculação da Ucrânia da esfera de influência russa da forma mais silenciosa possível. Esta destrutiva e "negativa" concorrência de crise entre Estados, sistemas de aliança e áreas económicas, característica do actual imperialismo de crise, também constituiu então o factor decisivo que levou a Ucrânia à guerra civil (cf. Konicz 2016, 209ss. bem como Bedszent 2014b).

Após o fracasso da estratégia americana de "abraçar" com Obama, na qual a Europa deveria estar permanentemente inserida na esfera geopolítica de Washington no quadro do acordo de comércio livre TTIP, Merkel entrou na ofensiva depois da eleição de Trump para a Casa Branca. No seu famoso 'discurso na tenda da cerveja' de Maio de 2017, formulou a reivindicação de Berlim à liderança numa Europa que actua independentemente em termos de política de poder: "Os tempos em que podíamos confiar nos outros já passaram. [...] Nós, europeus, devemos realmente tomar o nosso destino nas nossas próprias mãos. Claro que, em amizade com os Estados Unidos da América, em amizade com a Grã-Bretanha. [...] Mas devemos saber que nós próprios devemos lutar pelo nosso futuro, como europeus, pelo nosso destino".

Este desafio aberto à hegemonia dos EUA pôde ser vendido ao público alemão como um acto de emancipação sensata e liberal do confuso populismo de direita do presidente dos EUA. A manutenção do comércio livre neoliberal tornou-se um meio para a elite política do campeão mundial de exportação combater o proteccionismo de Donald Trump. O anúncio foi seguido de acção, com a Chanceler alemã a lançar uma ofensiva diplomática para assegurar o maior número possível de tratados e acordos de comércio livre. No final de Maio de 2017, por exemplo, o primeiro-ministro indiano Narendra Modi visitou Berlim para explorar com Merkel as possibilidades de concluir rapidamente um acordo de comércio livre.

Alguns dias depois, o primeiro-ministro chinês Li Keqiang também veio a Berlim para iniciar os trabalhos preliminares de um acordo de investimento previsto entre a Alemanha-Europa e a China, que por sua vez seria uma condição prévia para um acordo de comércio livre. Ambos os países estariam dispostos a "contribuir para a estabilidade no mundo", afirmaram numa declaração conjunta à imprensa. As negociações de comércio livre entre a UE e o Japão foram concluídas no início de 2019. O problema com esta diplomacia de comércio livre alemã-europeia é que tende a envolver países com excedentes de exportação, que se vêem ameaçados pelo proteccionismo dos EUA, formando alianças entre si. Ao mesmo tempo, estas nações e áreas económicas orientadas para a exportação estão – como explicado acima – economicamente dependentes dos défices dos EUA, que Trump queria eliminar através do proteccionismo e do nacionalismo económico.

 

4. O grande surto de crise de 2020

Esta crescente contradição económica geopolítica, em que a globalização da dinâmica de endividamento do capitalismo tardio, que fez crescer a montanha da dívida global para 331 por cento da produção económica mundial, se desdobra através de desequilíbrios descontrolados nas balanças comerciais, e que ao mesmo tempo alimentou o proteccionismo nos países deficitários, conduz inevitavelmente ao conflito os Estados dos centros – tanto mais que dificilmente resta uma região periférica para a qual os centros pudessem passar as consequências da crise. O processo de crise corroeu finalmente os centros. O facto de nada mudar sob uma administração Biden e de os conflitos, como entre Bruxelas e Washington, tenderem a aumentar, resulta precisamente da força tremenda da actual crise e da reacção específica das elites funcionais alemãs à mesma. A interacção entre a quebra económica e a explosão da dívida pública é tóxica neste contexto.

Apesar das despesas maciças para combater a crise após o primeiro surto de crise no início de 2020, o sistema capitalista mundial continuava em crise nas vésperas da segunda vaga pandémica, no final do Outono de 2020, não sendo de modo nenhum previsível se os centros ocidentais poderiam ser estabilizados de novo a médio prazo, apesar das medidas políticas de apoio no valor de milhares de milhões. E não se trata de uma mera repetição da bolha imobiliária. Além disso, o coronavírus está a actuar como um acelerador da crise. Uma comparação com as medidas de crise de 2008 deixa claro que o actual surto de crise atingiu dimensões muito maiores do que as distorções globais que atingiram a economia mundial após o rebentamento das bolhas imobiliárias nos EUA e na UE.

Num estudo publicado em meados de 2020, (8) a famosa consultora de gestão McKinsey (que esteve envolvida no planeamento do sistema Hartz IV, por exemplo) pôde quantificar o alcance de todas as medidas de crise lançadas em resposta ao surto global de crise alimentado pela pandemia. No total, estas medidas atingiram um volume de dez biliões de dólares americanos. Com esta soma astronómica, concluiu a McKinsey, só nos primeiros meses após o surto pandémico e o colapso económico foram excedidas em cerca de 300 por cento as despesas relacionadas com a crise dos anos 2008 e 2009. Nessa altura foram gastos cerca de três biliões de dólares para combater as consequências económicas da explosão das bolhas imobiliárias – tais como o congelamento dos mercados financeiros mundiais após a falência do Lehman Brothers.

Enquanto em 2008 e 2009 o capitalismo de Estado chinês actuou como a grande âncora de salvação, através de programas de estímulo económico pródigos, o foco mudou agora. Em relação ao produto económico (PIB), as medidas de crise da Alemanha atingem o maior alcance: são cerca de 33% do PIB, enquanto as medidas de estímulo económico de 2008/09 – tais como os famigerados prémios de abate de automóveis – somaram apenas 3,5% do PIB na Alemanha na altura. Assim, no caso de Berlim, pode-se efectivamente falar de um aumento de dez vezes na extensão das medidas de crise! As medidas de apoio no Japão (22% do PIB em comparação com os 2% em 2008), França (dez vezes mais para 14,6%) e Grã-Bretanha (cerca de 14,5%) atingem dimensões semelhantes. Nos Estados Unidos, as despesas adicionais relacionadas com a crise do Estado já altamente endividado somam 12,1% da produção económica, em comparação com cerca de 4,9% em 2008. Mas na China, que entretanto voltou ao crescimento, as despesas da crise somam menos de cinco por cento do PIB.

Estimativas do FMI (9) assumem mesmo que a pandemia custará aos contribuintes cerca de 11,7 biliões de dólares americanos a nível mundial, não incluindo as consequências de uma segunda vaga da pandemia. Esta soma corresponderia a cerca de 12% da produção económica mundial, o que elevaria a dívida pública global num valor recorde de cerca de 100% da produção económica mundial, observou o Wall Street Journal. É importante ter presente que a montanha da dívida global (governo, famílias e empresas) já tinha atingido um novo recorde vertiginoso de 331 por cento do PIB global quando a actual crise eclodiu. (10) Nos países industrializados, o peso da dívida aumentou de 380 por cento do PIB para 392 por cento só no primeiro trimestre de 2020. As economias emergentes registaram um peso da dívida equivalente a 220 por cento da sua produção económica no final de 2019 – e acima dos 230 por cento após três meses de pandemia. Diz-se que o total da dívida da China ascendeu a 335 por cento do PIB no primeiro trimestre de 2020.

Também aqui, a comparação com o peso da dívida global de 2008 ajuda a compreender o carácter da crise sistémica capitalista como um processo histórico que se desenrola por fases, em que o capital se depara com os seus limites internos e externos – e em que os surtos de crise assumem dimensões cada vez maiores. Em comparação com 2008, a montanha da dívida global cresceu cerca de 40 por cento em 2020. (11) Num relatório de fundo, o Financial Times resumiu as montanhas da dívida global em Março de 2020 à bagatela de cerca de 253 biliões de dólares americanos, o que é um máximo histórico – na eclosão da crise da dívida em 2008, pelo contrário, a dívida do sistema mundial capitalista era de cerca de 170 biliões de dólares americanos. (12)

No entanto, estas onerosas medidas de estímulo parecem ter a sua lógica de crise capitalista, uma vez que pretendem evitar um colapso da economia mundial. No centro destes esforços de estabilização do sistema mundial do capitalismo tardio, sufocando sob montanhas de dívida devido aos seus limites internos, está a política monetária extremamente expansiva dos bancos centrais, que compram maciçamente papéis-lixo, títulos de dívida ou simplesmente dívida pública nos mercados financeiros para os manter líquidos. Estes programas de compra, que acabam por se traduzir numa emissão monetária mediada, reflectem-se nos balanços dos bancos centrais, que de facto se transformaram em depósitos de lixo tóxico do sistema financeiro do capitalismo tardio – e também permitem quantificar as medidas de crise e a intensidade da crise.

Na véspera da crise de 2008-09, a Fed tinha um balanço de menos de um bilião de dólares, que subiu para mais de dois biliões em poucos meses, à medida que as titularizações hipotecárias eram diligentemente compradas. Em 2015, o balanço da Fed tinha inchado para mais de quatro biliões de dólares. Agora, meio ano após o actual surto de crise, a Reserva Federal acumulou "títulos" no valor de mais de sete biliões de dólares. Em aproximadamente o mesmo período após o surto da crise, em que o balanço da Fed cresceu cerca de um bilião em 2008, explodiu agora, em 2020, em cerca de três biliões. A situação na UE não é muito melhor: O total do balanço do BCE aumentou de cerca de um bilião de euros no início da crise em 2008 para cerca de 4,5 biliões de euros após a crise do euro em 2019 e actualmente para 6,7 biliões de euros. A tendência é continuar a subir a pique. É óbvio que o sistema mundial capitalista tardio é simplesmente incapaz de se reproduzir, está a morrer da sua própria lógica de rentabilidade, do seu próprio desenvolvimento da produtividade – e só consegue criar uma espécie de aparente vida de zombie através de um endividamento permanente.

O cálculo para comprar alguns anos de tempo para o capital em agonia, eliminando o lixo do mercado financeiro, imprimindo dinheiro e criando cada vez mais montanhas de dívida quando as bolhas se voltam a formar, até poderia resultar. Mas mesmo este adiamento acabaria em algum momento. O FMI estimou em Outubro de 2020 (13) que – principalmente devido à recuperação económica na China – a quebra global este ano seria menor do que inicialmente previsto (5,2 por cento), ou seja, 4,4 por cento da produção económica mundial. O Fundo Monetário prevê um crescimento de 5,4 por cento para o próximo ano. Mas mesmo que a segunda vaga da pandemia não cause outra recessão económica (por exemplo, devido à rápida distribuição de uma vacina eficaz), a crise actual será equivalente a uma catástrofe para muitos milhões de pessoas. De acordo com o FMI, entre 100 e 110 milhões de pessoas irão afundar-se este ano na "pobreza extrema". Como já foi referido, isto diz respeito em particular aos EUA.

O problema para Bruxelas, Berlim e Washington é que uma outra recessão, a chamada dupla queda, poderia fazer fracassar este jogo de alto risco de biliões das elites funcionais capitalistas, que equivale a uma repetição da estratégia de 2008. Uma recessão poria de novo em marcha as montanhas da dívida, por exemplo no sector empresarial, que só foram laboriosamente estabilizadas pela política monetária. E na Europa em particular, de acordo com o Financial Times, no final de Outubro de 2020 a coisa parecia-se muito com outra recessão. (14)

Após uma quebra na produção económica de quase 12% no segundo trimestre, prevê-se um forte aumento do PIB de quase 10% para o terceiro trimestre. Mas depois disso há a ameaça de outra contracção, de acordo com o FT. Os principais indicadores, tais como o Índice dos Gestores de Compras Europeus, apontam para uma recessão em vários países do euro no quarto trimestre de 2020, uma vez que o combate à pandemia continua a dificultar o crescimento. Isto significaria que o BCE teria de enterrar as suas esperanças de elevar a produção económica da zona euro de volta ao seu "nível pré-crise" até ao final de 2022.

 

5. A frágil posição da Alemanha na UE

Além disso, as abrangentes medidas de apoio e reformas estruturais da zona euro, com as quais Berlim queria estabilizar a zona monetária e transformar a sua dominância na Europa em hegemonia, iriam assim dar em nada. A cimeira da UE de Julho de 2020, com uma maratona de negociações que durou vários dias, pode de facto ser descrita como histórica, porque foi aqui que Berlim abandonou a sua posição de longa data de bloqueio da política financeira em questões de política económica europeia activa – e assim fez uma tentativa séria de manter a zona euro sob hegemonia alemã.

Apesar de todos os cortes e do habitual regateio nacional, os resultados da cimeira trouxeram uma mudança histórica na forma de dívida europeia comum. Berlim acabou por concordar mesmo com os mecanismos de compensação financeira na zona euro, caracterizada por crescentes desequilíbrios económicos, mecanismos que antes tinham sido obstinadamente demonizados durante anos como "comunitarização da dívida". Pela primeira vez na história da comunidade económica, a UE assumirá a sua própria dívida para combater as consequências do surto de crise desencadeado pela pandemia de coronavírus.

Além disso, o orçamento da UE para os anos 2021 a 2027 foi aumentado em 1,1 biliões de euros, o que, juntamente com o "fundo de reconstrução" decidido adicionalmente, equivale a cerca de 1,8 biliões. (15) Nos três anos em que o dinheiro e os empréstimos do fundo deverão fluir, o orçamento da UE aumentará de um por cento do produto interno bruto (PIB) europeu para cerca de dois por cento. Neste processo, a Comissão Europeia está a contrair dívida nos mercados financeiros para poder realizar os 390 mil milhões de euros em pagamentos directos de crise, que deverão ser reembolsados até 2058. Isto significa que as euro-obrigações, demonizadas durante anos pelos fetichistas da austeridade de Berlim, são de facto introduzidas, sendo a boa notação de crédito do centro norte da zona euro utilizada para a estabilização sócio-económica do sul (sendo que o cálculo europeu na altura ainda pressupunha que poderia ser evitada uma recessão com dupla queda).

A Comissão Europeia não queria começar a pagar esta dívida europeia até 2028, mas uma proposta de compromisso prevê que isso poderá ser feito mais cedo se se conseguir "abrir novas fontes de receitas para a Comissão", como disse o Süddeutsche Zeitung. Existem ideias para impostos ecológicos europeus sobre resíduos de embalagens não reciclados, impostos digitais que as empresas de TI deveriam pagar a Bruxelas, e impostos proteccionistas do clima que poderiam ser cobrados sobre produtos importados "produzidos de uma forma menos amiga do clima nos seus países de origem do que na Europa" (ibidem).

A Comissão Europeia desempenhará também um papel central na afectação concreta do dinheiro do fundo de crise do coronavírus, que será distribuído aos Estados do euro de acordo com uma chave determinada na cimeira. A Itália (170 mil milhões) e a Espanha (100 mil milhões), em particular, irão beneficiar destes fundos. (16) Na distribuição das injecções financeiras, os países em crise devem apresentar projectos concretos à Comissão da UE, que deverá então examiná-los quanto à sua viabilidade económica. A maioria dos projectos serão projectos de construção e de infra-estruturas, que supostamente estimularão a economia na tradição keynesiana. Bruxelas quer estabelecer objectivos intermédios, de cuja realização dependeriam os novos desembolsos.

A viragem radical da política europeia de crise, que não teria sido possível sem Berlim, é evidente: o sadismo de austeridade de Schäubler, que sujeitou a zona monetária – especialmente a Grécia – a uma absurda austeridade neoliberal, incluindo a introdução de "travões da dívida", termina abruptamente numa viragem de 180 graus para uma política económica europeia activa, incluindo a introdução da dívida europeia. Como se explica esta mudança fundamental de sentido em Berlim, onde é subitamente atirada borda fora, à moda orwelliana, uma ideologia de austeridade cultivada há anos e que encontrou o seu símbolo na "dona de casa suábia" de Merkel? Na Primavera de 2020, Berlim ainda celebrava o impedimento das euro-obrigações, que agora foram exigidas sob o nome de obrigações-coronavírus, como uma importante vitória numa etapa (17) na escalada de disputas induzida pela crise na zona euro entre o centro alemão e a periferia sul sob liderança francesa.

Dois factores intimamente relacionados podem ter sido decisivos para forçar as elites funcionais da Alemanha a escolher entre a integração europeia forçada ou a desintegração da zona monetária. Em primeiro lugar, Berlim foi derrotada na batalha pelo controlo da política monetária europeia do BCE. Sob o mandato da francesa Christine Lagarde, o Banco Central Europeu anunciou no início de 2020 que iria, se necessário, implementar uma expansão extrema das compras de obrigações em resposta à recusa do Norte em introduzir euro-obrigações. Isto minou ainda mais o efeito das medidas disciplinares que tinham caracterizado a política fiscal europeia desde o regime de austeridade de Schäuble, simplesmente imprimindo dinheiro. A tentativa de Berlim de ganhar influência sobre a política orçamental do Sul ameaçou conduzir a uma renovada saturação do euro, que também teve início na sequência da primeira crise do euro sob o comando de Mario Draghi – especialmente porque a vontade de deixar a zona euro continuou a crescer, particularmente em Itália, devido à recusa do Norte em demonstrar solidariedade.

Estas disputas europeias foram exacerbadas por uma decisão controversa do Tribunal Constitucional de Karlsruhe (18) que, em reacção à política monetária expansionista do BCE, questionou o até aí existente primado do direito europeu sobre o direito nacional, apelando de facto a Berlim para exercer um direito de veto sobre as decisões do BCE. Esta decisão serviu de base para a mobilização das forças de direita de orientação nacional dentro das elites funcionais da Alemanha que de qualquer modo questionam a UE. As forças "pró-europeias" em Berlim, que vêem a zona monetária europeia e a UE como veículos centrais da política de poder alemã devido às suas múltiplas vantagens, viram-se assim confrontadas não só com um eurocepticismo em rápido crescimento na periferia da zona euro, mas também com uma crescente facção orientada para a nação dentro do aparelho estatal alemão, para quem – por exemplo, na forma da famigerada União de Valores – o fim da UE e as futuras corridas nacionais isoladas encaixam perfeitamente nos seus cálculos políticos. Berlim teve assim de tomar uma decisão – e foi decidido avançar rapidamente com a integração europeia.

A UE é obviamente moldada em crises. A Europa de Schäuble atormentada pela austeridade foi moldada nas batalhas políticas sobre a política de crise que começaram em resposta ao rebentamento das grandes bolhas imobiliárias e de dívida transatlânticas a partir de 2008/09. Berlim, que foi capaz de agir como um vencedor da crise através de políticas bem sucedidas de empobrecer-o-vizinho, conseguiu transferir as consequências da crise para a periferia endividada do sul, sendo a Grécia, em particular, um exemplo pavoroso. A zona euro foi mantida, ameaçando com as consequências da crise: Ou o regime de austeridade é implementado ou o Sr. Schäuble aperta o torniquete económico. Mas isto não é – como explicado acima – hegemonia, que também requer um certo grau de aceitação, mas uma posição de pura dominância da política de poder, que só pode ser mantida através da coerção.

Consequentemente, a zona euro parece também uma base de poder para as ambições geopolíticas de Berlim e Paris. A Alemanha domina a estrutura de poder europeia – no caso de um colapso da zona euro, a sua periferia seria a que mais sofreria – mas não há hegemonia alemã na Europa que seja sequer de longe aceitável. A ditadura da austeridade alemã deixou os Estados do euro sem perspectivas, excepto estagnação ou recessão, pelo que são literalmente obrigados a desafiar a dominância alemã ao mais pequeno sinal de fraqueza. É por isso que a RFA, por toda a sua superioridade económica, estava em grande parte isolada na UE.

Mas a actual crise, com quedas percentuais de dois dígitos na produção económica, é demasiado forte para permitir a Berlim adoptar uma estratégia de sobrevivência semelhante à da "crise do euro" – a transferência dos custos da crise para a periferia uma vez mais só seria possível ao preço da desintegração da UE. Berlim não pode lidar com a Itália, o terceiro maior país da zona euro, que está à beira do colapso, da mesma forma que o fez com a minúscula Grécia, sem que ela própria seja gravemente afectada. No sul da Europa, as memórias da política de austeridade falhada estão ainda demasiado frescas para que uma repetição deste curso de austeridade seja politicamente viável.

A ameaça de exclusão da zona euro, que para os Estados altamente endividados em crise do Sul da Europa equivaleria a tornar-se parte do "Terceiro Mundo", porque perderiam a opção de contrair empréstimos em euros, já não se aplica: os colapsos sem precedentes no desempenho económico a partir de 2020 tornaram esta distinção inválida. O "Terceiro Mundo" está a penetrar nos centros, por assim dizer.

A única opção de Berlim para salvar a desolada "casa europeia" do colapso é tentar construir um sistema hegemónico, ou seja, dar à periferia da zona euro uma certa perspectiva, no quadro de uma política económica activa. Uma posição hegemónica na Europa só seria assim alcançada para Berlim se as potências subordinadas que formam a periferia de um sistema hegemónico o tolerassem, pelo menos, uma vez que elas próprias obteriam certos benefícios tangíveis do mesmo no final da contas – e não seriam lentamente estranguladas em termos económicos pelos excedentes comerciais alemães, que desde a introdução do euro já somaram mais de 1,5 biliões de euros em relação aos países da zona euro.

A RFA tornar-se-ia de facto uns "EUA da Europa" hegemónicos. Enquanto a hegemonia global dos EUA se desmoronou, Berlim está agora a tentar construir um sistema hegemónico europeu – precisamente através de políticas de estímulo financiadas pelo crédito e da introdução da dívida europeia apoiada pela solvabilidade do centro norte, a fim de manter as múltiplas vantagens económicas e políticas da zona euro. Quanto tempo pode isto correr bem, uma vez que não é previsível um novo regime de acumulação para suportar os custos desta hegemonia? Os EUA ainda conseguiram manter a sua posição hegemónica durante três décadas, ficando cada vez mais endividados através dos mercados financeiros e agindo como o referido buraco negro da economia mundial, o que reduziu a crise estrutural de sobreprodução do capital através dos seus défices comerciais.

Obviamente que a RFA não tem a abundância de recursos dos EUA, que lhe permitisse manter um tal sistema hegemónico mais ou menos "deficitário" durante décadas. Mesmo que fosse possível sobreviver à próxima crise, historicamente sem precedentes, sem a desintegração da zona euro – o que continua a ser duvidoso face ao segundo surto de crise iminente – as perspectivas da hegemonia alemã na UE seriam medidas em anos e não em décadas. E é precisamente este carácter precário da emergente hegemonia europeia de Berlim que tornará inevitáveis as tensões e conflitos entre a UE e os EUA, mesmo sob uma administração Biden democrática.

Berlim só poderia manter a sua posição hegemónica na UE a médio prazo quebrando o predomínio do dólar americano como moeda de reserva mundial. Como explicado acima, o dólar dá aos EUA a oportunidade de pedir emprestado na medida do valor global de todas as coisas, sem terem de desvalorizar a sua própria moeda, como tem sido o caso do Líbano assolado pela fome e de outros países emergentes desde 2020. Com o euro como moeda de reserva mundial, Bruxelas e Berlim poderiam realmente esperar manter a "casa europeia" junta a longo prazo, à custa de outras. A este respeito, a UE pode assim ser entendida também como um projecto concorrente com os EUA; mas como um projecto concorrente no âmbito de uma espiral de desvalorização global. É provável que as forças centrífugas dentro da UE continuem a intensificar-se. Uma zona estável da UE com um "New Deal Verde", proposto como um novo "regime de acumulação" ou algo semelhante, poderá revelar-se uma ilusão ou uma embalagem enganadora.

O jornal Die Welt da Springer já em meados de 2020 estava a imaginar os cenários perfeitos para a "grande queda do dólar", já que agora, com o euro, "os investidores teriam uma verdadeira alternativa" ao dólar pela primeira vez. (19) O elevado nível de sobreendividamento nos EUA, o extremo défice orçamental, a emissão de dinheiro da Fed e a incerteza política aumentariam a pressão para a desvalorização da moeda de reserva mundial em dificuldades, enquanto que a Europa poderia apresentar a integração económica em que se tinha empenhado e melhores previsões económicas. Em particular, a decisão do Conselho da UE de constituir o "fundo de reconstrução" tinha suscitado quase entusiasmo entre "muitos investidores e economistas", continuou. Consequentemente, o euro poderia tornar-se uma "formidável alternativa" ao dólar, dizia o jornal citando um "gestor de dinheiro".

Em reacção às decisões da referida e realmente histórica cimeira da UE de Julho de 2020, que decidiu emitir obrigações europeias de crise em centenas de milhares de milhões, os funcionários alemães da UE já viam a moeda única europeia a caminho de se tornar um "grande actor" no mundo monetário. (20) Segundo o antigo Primeiro-Ministro da CDU e Comissário da UE Günther Oettinger, os milhares de milhões em empréstimos para financiar os programas de estímulo económico foram um "grande passo em direcção às euro-obrigações" que poderiam "quebrar" a dominância do dólar americano como moeda de reserva mundial, disse Oettinger ao Handelsblatt em Agosto de 2020. Pela primeira vez, os bancos centrais não europeus estavam agora em posição de "deter quantidades significativas de obrigações da UE como reservas", o que faria da UE um importante emissor de obrigações e do euro um "valor de referência no mercado obrigacionista". Oettinger traçou paralelos entre a cimeira da crise de Bruxelas e o Acordo de Bretton Woods, que lançou as bases para a "hegemonia do dólar". A cimeira extraordinária do Conselho Europeu em Bruxelas, por outro lado, como uma "espécie de Bretton Woods do século XXI", tinha contribuído para criar as pré-condições estratégicas para uma remedição do mundo monetário. Num "futuro não tão distante", de acordo com o antigo membro por muitos anos da Comissão Europeia, o dólar americano deixará de ser a única moeda de reserva. Tanto a "crescente potência mundial China" como a "União Europeia economicamente forte" estariam em posição de suceder ao dólar (ibid.).

Normalmente, tais "mudanças tectónicas" nos mercados monetários têm lugar lentamente, disse o antigo Comissário da UE para a Energia, Economia Digital e Orçamento, referindo-se ao Império Britânico, cuja libra demorou três décadas e "duas guerras mundiais" até ter de abdicar como moeda de reserva. Mas se a Europa utilizar correctamente o impulso gerado pelas decisões da cimeira, o "estabelecimento do euro como uma moeda mundial forte" poderá acontecer muito mais rapidamente. Para tal, disse o político da CDU, era essencial avançar rapidamente com o alargamento da zona euro, uma vez que a UE, com 460 milhões de habitantes, representa um mercado único maior do que os EUA com 330 milhões de cidadãos. Já havia aqui "movimento": a Bulgária e a Croácia tinham passado recentemente a fazer parte do Mecanismo Europeu de Taxas de Câmbio II, de modo a poderem tornar-se "membros de pleno direito" da zona euro num bom espaço de dois anos. Além disso, segundo Oettinger, "Polónia, República Checa, Hungria e Roménia" (ibid.) devem também aderir à moeda única europeia, uma vez que beneficiam da dinâmica económica da zona monetária. Estes países recusaram-se até agora a desistir das suas moedas nacionais após as experiências da última crise do euro.

Segundo Oettinger, a vantagem mais importante que os EUA retiram da sua moeda de reserva mundial é a capacidade de trocar constantemente novos bens e serviços por "notas auto-impressas", apesar de uma "gigantesca dívida nacional de 27 biliões de dólares". Os EUA podem assim pedir emprestado sem limites na sua própria moeda de reserva mundial, a medida global de todas as coisas de valor. Esta opção é de interesse essencial para a República Federal Alemã, que teve de concordar com euro-obrigações e medidas iniciais de compensação financeira para reduzir os desequilíbrios gritantes na zona euro na última Cimeira do Euro. Além disso, Oettinger chamou à ausência de risco cambial para as empresas americanas uma "grande vantagem sobre os seus concorrentes europeus" – especialmente sobre o campeão mundial da exportação Alemanha. Além disso, ao controlar o sistema global de pagamentos Swift, os EUA poderiam controlar os fluxos financeiros internacionais e assim aplicar sanções mesmo contra a vontade de Berlim, como foi o caso contra o regime islamista do Irão. Por esta mesma razão, era "tempo de criar um contrapeso monetário ao dólar", exigiu Oettinger (ibid.).

A "desdolarização" da economia mundial já deu grandes passos, sublinhou o funcionário alemão da Europa, uma vez que a quota do dólar nas reservas mundiais de moeda dos bancos centrais diminuiu de 70% quando o euro foi introduzido na viragem do milénio para cerca de 60% no ano passado. O euro tem agora cerca de 20%, enquanto o iene japonês e o yuan da China têm uma quota de 5% cada um. A "erosão do predomínio da moeda norte-americana" já está assim em curso, só precisa de ser impulsionada em uníssono, disse Oettinger (ibid.).

Para além das ambições europeias, há esforços a longo prazo por parte da China e da Rússia para substituir o dólar americano como moeda de reserva mundial, o que coincidiu com a pandemia, o processo de unificação europeia e um "momento de fraqueza" dos EUA. (21) Por exemplo, números recentes do Banco Central Russo mostraram que uma grande parte das exportações russas para a China já não são denominadas em dólares mas sim em euros. A percentagem de euros aumentou de 1,3% em 2018 para 51% no início deste ano, de modo que apenas 33% de todas as exportações russas para a China (principalmente matérias-primas e fontes de energia) seriam agora transaccionadas em dólares. A situação é semelhante nas exportações russas para a UE, onde a quota do euro subiu de 38% no final de 2019 para 43% actualmente. Os gritos de alerta sobre a descida da nota verde foram infundados no passado, mas desta vez as coisas poderiam desenrolar-se de forma diferente devido à constelação dada, disse-se numa avaliação.

Em qualquer caso, não falta matéria para conflitos futuros entre Bruxelas e Washington: para além das crescentes disputas transatlânticas sobre o controlo da indústria das TI, em que Bruxelas se esforça por quebrar a dominância das empresas americanas de alta tecnologia na Europa, tais como Google, Apple, Amazon ou Facebook, (22) o 'petrodólar' também está há muito na mira da UE.

A Comissão da UE já anunciou no final de 2018 que iria tomar uma "série de medidas" para aumentar o peso do euro em "pagamentos internacionais e como moeda de reserva" em relação ao dólar americano. (23) No centro destes esforços de soberania monetária de Berlim e Bruxelas está o comércio de fontes de energia. A Comissão da UE quer "encorajar" as empresas europeias a liquidar as suas compras de energia em euros no futuro, uma vez que a dependência do dólar americano neste sector em particular implica "incertezas, custos e riscos". O objectivo é "reduzir o risco de rupturas de abastecimento" e "reforçar a autonomia das empresas europeias", de acordo com a Comissão Europeia. De acordo com as agências noticiosas americanas, esta iniciativa de Bruxelas foi uma reacção à retirada dos EUA do acordo nuclear com o Irão, uma vez que as empresas exportadoras alemãs foram particularmente afectadas pelas subsequentes sanções dos EUA. (24) Bruxelas quer exercer mais "pressão política" para reduzir a dependência da UE em relação ao petrodólar, uma vez que é difícil para os europeus contornar as sanções dos EUA contra o Irão, continuava a notícia. Neste contexto, os acordos energéticos deverão ser conduzidos num "quadro europeu de acordos intergovernamentais de energia" no futuro.

Para além do comércio de energia, a Airbus, como pioneira da "soberania monetária da Europa", também deve no futuro conduzir os seus negócios com base no euro. O pacote de medidas da Comissão Europeia também apelou ao desenvolvimento de um sistema de pagamentos europeu independente. Ao fazê-lo, a UE quer construir concorrentes europeus para os "prestadores de serviços de pagamento internacionais, tais como Visacard, Mastercard ou Paypal" (ibid.), que até agora têm operado com base no dólar. Segundo o Comissário dos Assuntos Monetários Pierre Moscovici, os esforços de desacoplamento monetário de Bruxelas em relação a Washington têm também como objectivo "proteger melhor os cidadãos e as empresas europeias dos choques externos e aumentar a resistência do sistema monetário e financeiro internacional".

Poder-se-ia assim concluir que os duros confrontos entre a UE e os EUA continuarão a ser inevitáveis no futuro. A crescente concorrência de crise está a conduzir os antigos aliados do "Ocidente" para o conflito. Especificamente: o processo de crise histórica do capital atingiu um ponto de maturidade onde só a impressão excessiva de dinheiro pode garantir a manutenção das fachadas desmoronadas da produção capitalista de mercadorias – o que também se manifesta nos correspondentes produtos ideológicos da economia, tais como a "Modern Monetary Theory". A concorrência de crise entre os centros irá consequentemente estender-se – após as corridas de desvalorização e guerras comerciais dos anos passados – também ao controlo ou regulação da moeda de reserva mundial. Mas mesmo isto resultaria em nada mais do que mais 'estratégias para lidar com a crise' sem perspectivas a médio prazo.

Apesar de todas as garantias de um novo começo nas relações transatlânticas após a vitória eleitoral de Joe Biden, apesar de toda a cooperação selectiva que terá lugar entre os EUA e a UE após 2020, os momentos de confronto entre Washington e Bruxelas irão provavelmente predominar nos próximos quatro anos. A Chanceler Merkel deixou isto claro nas suas felicitações públicas ao vencedor das eleições democráticas no início de Novembro. A América continua a ser o aliado mais importante de Berlim, disse Merkel, mas "nós alemães e nós europeus" sabemos que "nesta parceria devemos assumir mais responsabilidade própria no século XXI". (25)

 

Bibliografia

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Bedszent, Gerd: Die Ukraine – Dualität von Nationalismus und Staatszerfall, in: exit! – Krise und Kritik der Warengesellschaft No. 12, Angermünde 2014b, 176-184. Trad. port.: Ucrânia – A dualidade de nacionalismo e desmoronamento do Estado, online: http://www.obeco-online.org/gerd_bedszent1.htm

Böttcher, Herbert: "Wir schaffen das!" – mit Ausgrenzungsimperialismus und Ausnahmezustand gegen Flüchtlinge [»Nós podemos fazer isso!« – Com imperialismo de exclusão e estado de excepção contra os refugiados], in: Ökumenisches Netz Rhein-Mosel-Saar (ed.): Die Frage nach dem Ganzen – Zum gesellschaftskritischen Weg des Ökumenischen Netzes anlässlich seines 25-jährigen Bestehens, Koblenz 2018, 38-56, publicado pela primeira vez em 2016 em exit-online.org.

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Konicz, Tomasz: Kapitalkollaps – Die finale Krise der Weltwirtschaft [Colapso do Capital – A Crise Final da Economia Mundial], Hamburgo 2016.

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Kurz, Robert: Weltordnungskrieg – Das Ende der Souveränität und die Wandlungen des Imperialismus im Zeitalter der Globalisierung, Bad Honnef 2003. Trad. port.: A Guerra de Ordenamento Mundial. O Fim da Soberania e as Metamorfoses do Imperialismo na Era da Globalização, online: http://www.obeco-online.org/livro_guerra_ordenamento.htm

 

Notas

(1) Cf. por exemplo: Trump or Biden, the U.S. and Europe Will Split, washingtonpost.com, 9.10.2020; Trump, Biden and the 'f****** Germans', politico.eu, 20.10.2020.

(2) Despite recovery, fewer Americans identify as middle class, pewresearch.org, 27.1.2014.

(3) Ten Years After the Start of the Great Recession, Middle-Class Incomes Are Only Just Catching Up, newyorker.com, 13.9.2018.

(4) Crisis and Recovery, phenomenalworld.org, 3.4.2020.

(5) Vom Kalten zum Heißen Handelskrieg? [Da guerra comercial fria à guerra comercial quente?], Telepolis, 5.4.2018.

(6) Trump adopts steel tariffs but opens door to exemptions, ft.com, 8.3.2018.

(7) Wie das Fracking-Wunder loslegte [Como começou o milagre do fracking], Telepolis, Telepolis, 4.4.2016.

(8) The $10 trillion rescue: How governments can deliver impact, mckinsey.com, Junho de 2020.

(9) Pandemic Response Will Drive Up Global Public Debt to a Record, IMF Says, wsj.com, 14.10.2020.

(10) Global debt hits record high of 331% of GDP in first quarter: IIF, reuters.com, 16.7.2020.

(11) At over 322% of GDP, global debt almost 40% more than that seen during 2008 crisis: RBI, financialexpress.com, 25.7.2020.

(12) The seeds of the next debt crisis, ft.com, 4.3.2020.

(13) A Long, Uneven and Uncertain Ascent, blogs.imf.org, 13.10.2020.

(14) Europe’s new Covid outbreaks raise threat of double-dip recession, ft.com, 18.10.2020.

(15) So werden die 1800 Milliarden verteilt [É assim que os 1800 mil milhões serão distribuídos], sueddeutsche.de, 21.7.2020.

(16) Diplomaten sehen »erhebliche Annäherung« [Os diplomatas vêem "aproximação considerável"], tagesspiegel.de, 20.7.2020.

(17) Etappensieg für Berlin [Vitória numa etapa para Berlim], Telepolis, 10.4.2020.

(18) Karlsruher Sprengladung [A carga explosiva de Karlsruhe], Telepolis, 5.5.2020.

(19) Das perfekte Szenario für einen Dollar-Crash [O cenário perfeito para um crash do dólar], welt.de, 28.7.2020.

(20) Günther Oettinger: Der Euro hat die Chance, zum »Big Player« der Währungswelt zu werden [O euro tem a oportunidade de se tornar "big player" do mundo monetário], handelsblatt.de, 20.8.2020

(21) Dion Rabouin, The war against the dollar is heating up, axios.com, 18.8.2020.

(22) »Angriff auf die Vormacht des Silicon Valley« ["Ataque à supremacia de Silicon Valley"], german-foreign-policy.com, 7.12.2020.

(23) EU-Kommission will Rolle von Euro auf Weltbühne stärken [A Comissão Europeia quer reforçar o papel do euro na cena mundial], handelsblatt.de, 5.12.2018.

(24) EU pushes for broader global use of euro to challenge dollar, reuters.com, 5.12.2018.

(25) Merkel verspricht Biden mehr Engagement [Merkel promete a Biden mais empenhamento], zdf.de, 9.11.2020

 

 

Original “Das Ende des Westens in der Corona-Krise” publicado na revista exit! nº 18, pags. 18-41, Maio 2021. Tradução de Boaventura Antunes (5/2022)

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