Vitória russa na guerra económica?

 

A invasão da Ucrânia é um desastre militar para o Kremlin. No entanto, no confronto económico, a Rússia parece estar – por enquanto – em vantagem

 

Tomasz Konicz

 

Nas primeiras semanas da guerra de agressão russa na Ucrânia, quando a megalomania do Kremlin levou à humilhante retirada russa em frente de Kiev e no norte da Ucrânia, esta derrota militar parecia ser acompanhada de um desastre económico na Rússia. As sanções historicamente sem precedentes impostas pelo Ocidente em resposta à invasão fizeram cair a economia e a moeda russas nas suas primeiras ondas de choque. O escárnio ocidental da impotência militar do imperialismo de Putin foi acompanhado pela troça da queda do valor do rublo, que desceu brevemente para 135 rublos a partir de uma taxa de 75 rublos por dólar no início da guerra de agressão.

 

A ineficiente, arcaica e altamente corrupta máquina militar russa continua presa na Ucrânia oriental, deixando ao Kremlin para celebrar a penosa conquista do oblast de Lugansk como uma vitória militar, mas no campo da batalha económica a maré mudou – por agora. O rublo, que já em Maio recuperou a sua taxa de câmbio de antes da guerra em relação ao dólar, está agora a ser negociado a 58 rublos por dólar. Depois de quase meio ano de guerra, a moeda russa vale mais do que antes da invasão da Ucrânia. Contra o euro, esta subida do rublo, que reflecte a estabilização económica da Rússia, é ainda mais evidente: no início de Fevereiro, cerca de 86 rublos tinham de ser gastos por um euro, agora são apenas 58 rublos. Um dos objectivos mais importantes da estratégia de sanções ocidental, de desestabilizar politicamente a "frente interna" russa através de uma desvalorização monetária que anda de mãos dadas com picos de inflação e perdas de prosperidade, fracassou assim – até agora.

 

E não é só isso: agora é a zona euro, sobreendividada e dependente da importação de energia, que sofre de desvalorização cambial, enquanto os preços explosivos das matérias-primas e dos combustíveis fósseis deram à zona monetária europeia um enorme défice comercial externo de 31,7 mil milhões de euros.1 Quanto mais o euro cai, tendo já atingido a paridade com o dólar,2 mais caras se tornam as importações de matérias-primas e de fontes de energia. O vento mudou assim. É agora a zona euro que deve temer pela sua estabilidade, uma vez que a depreciação do euro e a elevada inflação conduzem ao aumento das tensões políticas na zona monetária. O regresso de uma crise do euro parece provável, enquanto os interesses de política económica entre o centro alemão e a periferia sul estão a entrar cada vez mais em conflito.

 

A zona euro como "elo mais fraco" na guerra económica

 

Com uma taxa de inflação a nível da UE de mais de 8%,3 a Itália, que está em crise há anos,5 está endividada em cerca de 150 por cento do seu produto económico, de modo que qualquer subida da taxa de juro, exigida por Berlim ao Banco Central Europeu (BCE) para combater a inflação, tornaria rapidamente insustentável o encargo da dívida a sul dos Alpes. É por isso que estão a surgir os conflitos implícitos sobre a política de crise entre a Alemanha e a periferia sul, com Berlim a opor-se à continuação da política monetária expansionista e a ligar os programas de ajuda aos países europeus em crise a condições políticas – tais como os programas de austeridade.6 A zona euro sobreendividada, atormentada por desequilíbrios económicos e onde a indústria de exportação alemã dominante está também a sofrer cada vez mais com estrangulamentos de abastecimento e proteccionismo, pode assim ser vista como o "elo mais fraco" do Ocidente na guerra económica com a Rússia. Mesmo a RFA tem de contar com uma triplicação do custo do serviço da sua dívida, devido à subida das taxas de juro.7

 

A guerra económica intensificou assim – através da explosão dos preços das fontes de energia fóssil induzida pelas sanções – a dinâmica inflacionista8 que já existia no Ocidente. As rápidas subidas das taxas de juro, que estão agora a ser implementadas pela Reserva Federal dos EUA para combater a inflação,9 tornam prováveis este ano ou no próximo crises dos mercados financeiros e uma recessão nos EUA e na Europa,10 bem como colapsos económicos e crises da dívida na periferia do sistema mundial (mais sobre isto na próxima Konkret 08/2022).

 

O excedente e a recessão económica da Rússia

 

O Kremlin, cuja máquina militar está a desgraçar-se na Ucrânia, escolheu simplesmente o último bom momento estratégico para a sua guerra. O Ocidente, especialmente a Europa "alemã", apenas iniciou a tentativa, já de si sem convicção e muitas vezes sabotada por lobbies,11 de eliminar progressivamente a energia fóssil, e continua altamente dependente destas fontes de energia, o que dá agora à Rússia uma vantagem na guerra económica – as consequências financeiras das sanções atingem assim mais duramente os países do centro ocidental do que a Rússia.

 

Isto não é exagero. As sanções, que se manifestam no Ocidente em défices crescentes e numa aceleração da dinâmica inflacionista, conduziram a ricos excedentes na Rússia exportadora de matérias primas, que foi capaz de abrir novos mercados de venda. O excedente da balança de transacções correntes (abrangendo mercadorias, serviços e remessas) da Federação Russa atingiu um valor recorde de mais de 70 mil milhões de dólares americanos no segundo trimestre deste ano, uma vez que o aumento das receitas de exportação de gás, petróleo ou carvão russo foi acompanhado pela quebra nas importações de bens ocidentais de alta tecnologia e do consumo induzida pelas sanções.12 Prevê-se que o excedente orçamental de Moscovo tenha crescido mais de 20 mil milhões de euros no primeiro semestre de 2022,13 o que foi possível principalmente graças às receitas de exportação da venda de petróleo e gás – tendo atingido o equivalente a 100 mil milhões de euros no primeiro semestre do ano, cerca de 66 por cento do volume anual projectado.

 

As sanções ocidentais, por outro lado, parecem ter tido o seu efeito pretendido pelo menos no desenvolvimento económico. De acordo com as previsões actuais, a recessão na Rússia será muito mais grave do que inicialmente previsto (menos 7,1 por cento), atingindo 10,4 por cento.14 Apesar de todos os receios de recessão, é considerado certo que nem os EUA nem a UE sofrerão uma recessão económica igualmente profunda este ano. A situação é semelhante para a taxa de inflação. Assim, a inflação na Federação Russa será de 14,4% este ano, o que também é significativamente mais elevada do que nos EUA e na UE, que deverão manter os seus aumentos de preços abaixo da marca dos 10%.15

 

E, no entanto, estes números nus também podem ser enganadores, uma vez que não conduzem simplesmente a repercussões políticas e sociais proporcionais. A Rússia governada pelo autoritarismo, um país semiperiférico que vive da exportação de matérias-primas, pode acabar por vencer a guerra económica, apesar de uma recessão económica mais acentuada e de uma inflação mais elevada. O objectivo da guerra económica que acompanha a guerra imperialista na Ucrânia é abanar a "frente interna" do inimigo através de deslocações socioeconómicas e, assim, forçá-lo a render-se.

 

Guerra e crise económica

 

Aqui, contudo, a Federação Russa parece ter uma série de vantagens que permitem ao Kremlin sobreviver politicamente a uma situação económica muito mais difícil do que a do Ocidente. Uma delas é simplesmente o carácter pós-democrático e manifestamente ditatorial do Estado russo. As possibilidades de repressão na Rússia, onde mesmo as críticas à invasão russa da Ucrânia podem resultar em penas de prisão de vários anos, são muito mais abrangentes do que no Ocidente, onde os padrões democráticos, tais como a separação de poderes e o Estado de direito, ainda existem – na sua maioria rapidamente em erosão, mas ainda em grande parte válidos na sua substância.

 

Tendo em conta a crescente crise social e ecológica do capital, esta constituição autoritária da Rússia ou da Bielorrússia não torna estas sociedades modelos ultrapassados, mas sim modelos capitalistas do futuro. O chefe de estado bielorusso Lukashenko não é o "último ditador" da Europa, como é frequentemente apelidado na imprensa europeia. Pelo contrário: Lukashenko é o primeiro ditador da Europa, ele forma a vanguarda da administração autoritária da crise capitalista, à qual, entretanto, países "orientados para o Ocidente" como a Hungria ou a Polónia também podem aderir. O puro e irrestrito poder estatal dá a Moscovo vantagens em situações de crise manifesta que o Ocidente – até agora16 – não tem, como se tornou óbvio recentemente na supressão das revoltas na Bielorrússia e no Cazaquistão.

 

Além disso, em todo o espaço pós-soviético – e em menor grau também na periferia oriental da UE – os momentos históricos e culturais ainda são eficazes e têm um efeito estabilizador, mas simplesmente não estão presentes no Ocidente. A memória da transformação caótica e, especialmente na Rússia, catastrófica do sistema nos anos 90 ainda está viva, de modo que a crise actual é percebida num contexto histórico contemporâneo completamente diferente do dos centros ocidentais do sistema mundial, onde não houve choques comparáveis na estrutura social durante mais de meio século. Enquanto a população do Ocidente tem a sensação de o céu lhe estar a cair sobre a cabeça devido à inflação galopante e à ameaça de uma crise energética, as pessoas no Leste têm a certeza de que as coisas eram muito piores antes. Acresce que Putin pode instrumentalizar a memória do colapso da União Soviética, especialmente entre a geração mais velha, para manter o poder, pois apresenta-se como um "factor de ordem" que evita a queda no caos da crise, que, segundo a ideologia do Estado russo, emana sempre do Ocidente.

 

Além disso ainda estão vivas no espaço pós-soviético estratégias de crise de economia de subsistência, tais como a economia de quintal, que se perderam no Ocidente devido à completa colonização interna das sociedades centrais pelo capital no fordismo. Por vezes, na UE e nos EUA, não existem simplesmente condições práticas para se conseguir o sustento através do cultivo da própria comida, da venda em mercados informais e da recolha de madeira na floresta, como foi frequentemente o caso na Rússia nos anos 90. Os trabalhadores assalariados russos têm muito mais probabilidades de escapar à sua dependência salarial ao passar para este sector informal do que os seus camaradas de classe ocidentais.

 

Não há vencedor no imperialismo de crise

 

No entanto, é improvável que esta guerra económica possa ser ganha pela Rússia – ou que venha a ter algum "vencedor". Por um lado, a interacção entre os acontecimentos de guerra e a situação na "frente interna" é muito mais pronunciada na Rússia do que no Ocidente. Os recuos estratégicos na frente na Ucrânia podem rapidamente corroer qualquer apoio remanescente à guerra de agressão, especialmente tendo em conta as perdas do exército russo. Mas crucial é o facto de Putin não poder ordenar uma mobilização geral para fazer avançar rapidamente a invasão com uma força humana semelhante à do exército ucraniano. Afinal, o pré-requisito mais importante para o domínio do autoritarismo não-totalitário é manter a apatia e a dessolidarização entre a população, a maioria da qual, de alguma forma oportunista, se conforma com o poder ditatorial, procura os seus nichos, preocupa-se apenas com o próprio sucesso, e assim por diante.

 

Uma mobilização geral privaria a população desta opção de olhar para o outro lado, de simplesmente permanecer inactiva e de continuar em apatia política. Quando a própria vida está em jogo numa guerra de conquista imperialista, os afectados são automaticamente abalados. Dada a incapacidade militar do exército russo, o Kremlin deveria efectivamente ordenar a mobilização geral – e ao mesmo tempo não pode fazê-lo, se quiser impedir o surgimento de um amplo movimento de protesto, que também não poderá ser tão facilmente esmagado.

 

Finalmente, a guerra militar e económica entre a Rússia e o Ocidente não pode ser compreendida sem o profundo processo de crise social e ecológica em que o sistema mundial capitalista tardio está a afundar-se. A este respeito, é um imperialismo de crise que entrou na sua fase sangrenta e assassina na Ucrânia.17 A crise económica não só constituiu o factor decisivo que contribuiu para a eclosão da guerra,18 como também está a ser executada através da guerra económica. Os crescentes confrontos e lutas pelo poder dos monstros estatais, que transformaram a Ucrânia num campo de batalha imperialista, fazem com que os perdedores deste "Grande Jogo" imperialista da crise, social e economicamente em queda, sejam totalmente apanhados no processo de crise. Na verdade, a médio prazo, não há vencedores no imperialismo de crise. Os "vencedores" só caem mais lentamente. Estas lutas pelo poder, anteriormente conduzidas sobretudo económica e politicamente, transformam-se em confrontos militares à medida que a crise se intensifica.

 

Assim, a um nível sistémico, vista objectivamente, a guerra na Ucrânia funciona como um acelerador da crise,19 o que dinamiza ainda mais os processos de crise já existentes. Por muito inevitavelmente que o capitalismo tardio se desfaça nos seus limites internos e externos, o curso da crise, no entanto, não está escrito na pedra. A desvalorização iminente do valor pode tomar a forma de inflação ou de deflação. No caso duma deflação, de uma queda dos preços desencadeada pela subida das taxas de juro, recessão e colapso da procura, a sorte da Rússia na guerra também se transformaria muito rapidamente.

 

 

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1 https://www.sueddeutsche.de/wirtschaft/handel-handelsbilanz-der-eurozone-mit-rekorddefizit-dpa.urn-newsml-dpa-com-20090101-220615-99-672712

 

2 https://www.tagesschau.de/wirtschaft/euro-dollar-113.html

 

3 https://www.faz.net/aktuell/wirtschaft/wie-gefaehrdet-ist-italien-wirklich-18126250.html

 

4 https://ec.europa.eu/eurostat/documents/2995521/14636256/2-31052022-AP-EN.pdf/3ba84e21-80e6-fc2f-6354-2b83b1ec5d35

 

5 https://www.ceicdata.com/en/indicator/italy/government-debt–of-nominal-gdp

 

6 https://www.faz.net/aktuell/wirtschaft/bundesbank-chef-skepsis-bei-ezb-werkzeug-gegen-rendite-ausschlaege-18166596.html

 

7 https://www.handelsblatt.com/politik/deutschland/staatsverschuldung-die-zinsexplosion-warum-sich-lindners-kosten-fuer-schulden-fast-verachtfachen/28496844.html

 

8 https://www.konicz.info/2021/08/08/dreierlei-inflation/. Em Português: https://www.konicz.info/2021/08/11/tres-tipos-de-inflacao/

 

9 https://www.nytimes.com/2022/07/16/business/global-recession-risk.html

 

10 https://www.nytimes.com/2022/07/15/business/stock-market-recession-half-year.html

 

11 https://www.konicz.info/2021/12/29/der-dealmaker-in-der-sackgasse/

 

12 https://finance.yahoo.com/news/soaring-energy-prices-help-russia-164334271.html

 

13 https://www.handelsblatt.com/dpa/wirtschaft-russischer-staatshaushalt-erzielt-trotz-sanktionen-deutliches-plus/28501534.html

 

14 https://www.spiegel.de/wirtschaft/ukrainekrieg-eu-sanktionen-gegen-russland-zeigen-offenbar-wirkung-a-86078bfd-3b75-4a9c-8719-370d0c5c18c7

 

15 https://www.reuters.com/markets/europe/russias-2022-inflation-seen-145-more-rate-cuts-expected-2022-06-30/

 

16 https://www.konicz.info/2022/07/13/wahlen-unter-vorbehalt/

 

17 https://www.konicz.info/2022/06/23/was-ist-krisenimperialismus/

 

18 https://www.akweb.de/politik/russland-ukraine-konflikt-kampf-auf-der-titanic/

 

19 https://jungle.world/artikel/2022/10/krieg-als-krisenbeschleuniger

 

 

Original “Russischer Sieg im Wirtschaftskrieg?” em www.exit-online.org , 27.08.2022. Publicado originalmente em konicz.info, 17.07.2022. Tradução de Boaventura Antunes

 

 

http://www.obeco-online.org/

http://www.exit-online.org/