Keynesianismo de crise e de acto cego

 

Enquanto muitos elementos da política económica keynesiana estão a ser utilizados no quotidiano da crise, o pós-keynesianismo está a asselvajar-se como ideologia entre a esquerda alemã

 

Tomasz Konicz

 

Sejam discípulos do mercado ultraconservadores (1) ou conservadores sindicalistas social-democratas (2): em tempos de crise são todos keynesianos. Em todos os surtos de crise dos últimos anos, quando voltou a ser necessário salvar o capitalismo tardio do colapso por meio de programas de estímulo de biliões e impressão de dinheiro, os ensinamentos do economista britânico John Maynard Keynes, cuja política económica orientada para a procura foi dominante no período pós-guerra até ser substituída pelo neoliberalismo na década de 1980, experimentaram um fugaz boom na opinião pública. Também após o estouro da bolha imobiliária transatlântica em 2008 e a quebra causada pela pandemia em 2020 voltou a falar-se novamente de Keynes, que como economista de plantão da social-democracia tinha propagado um papel activo do Estado, com programas de investimento e uma política monetária expansionista. Depois dos sinais habituais de desgaste no circo mediático, a referência a Keynes desaparece novamente quando o capitalismo parece voltar ao “business as usual”, após a fase de estabilização "keynesiana".

 

O que resta de cada vez são os keynesianos expulsos da corrente política e académica na era neoliberal, que estão constantemente a lamentar-se, e com quem a esquerda não social-democrata tem agora de lutar. Mas a constante lamentação dos neo-keynesianos e defensores da Modern Monetary Theory (MMT), no sentido de que é necessário mais keynesianismo para que as coisas melhorem e para que o capitalismo tardio regresse à era do "milagre económico", é no mínimo deslocada face às realidades políticas. Muitos instrumentos do keynesianismo continuam a ser utilizados na administração da crise que estabilizou o sistema desde 2008, apenas não são tematizados nem percebidos como tais. De Keynes é há muito o pragmático quotidiano de crise, muitas das medidas e programas de crise que estabilizaram o sistema desde 2008 têm a sua assinatura.

 

Isto é apenas lógico no contexto da génese histórica desta escola económica: o keynesianismo tornou-se a corrente capitalista dominante após o fim da Segunda Guerra Mundial, como a grande "lição" a ser aprendida da fase de crise que começou em 1929 – e as elites funcionais capitalistas recorrem aos seus instrumentos quase que por acto reflexo em tempos de crise. Uma regulação consistente da moeda e dos mercados financeiros, o Estado como factor regulador e orientador económico, prosseguindo uma política activa de investimento, uma política salarial e social orientada para a procura, na qual os assalariados do tempo do milagre económico também são entendidos como consumidores, e uma política económica contra-cíclica que supostamente evita recessões através de programas de estímulo económico financiados pela dívida, para depois pagar essa dívida nas fases de expansão  –  estes foram os traços básicos entretanto idealizados da ordem económica keynesiana, até que o neoliberalismo se tornou dominante com Margaret Thatcher e Ronald Reagan, e à qual os neo-keynesianos querem regressar.

 

Mais barato não pode ser

 

O recurso pragmático aos instrumentos do keynesianismo encontra a sua expressão mais clara em todos os programas de estímulo económico lançados na sequência das crises crescentes. À medida que estas se foram tornando mais intensas, os subsídios e pacotes de investimento governamentais também cresceram em tamanho a cada surto de crise, (3) como mostrou a empresa de consultoria McKinsey numa comparação da crise financeira mundial de 2008/2009 com a quebra da pandemia de 2020. (4) Já em meados de 2020, as despesas governamentais globais com a crise somariam cerca de dez biliões de dólares americanos – o triplo dos programas de crise de 2008/2009.

 

O governo alemão, que em 2008 tinha uma política orçamental restritiva e apenas fez manchetes negativas politicamente devastadoras com os infames "prémios de abate de automóveis", em 2020 lançou programas de crise particularmente abrangentes. Em relação ao produto interno bruto (PIB), o pacote de estímulo económico alemão foi mesmo o maior de todos os países industrializados ocidentais; ascendeu a 33 por cento do PIB. Além disso, o governo sob a liderança de Angela Merkel iniciou também um afastamento gradual do regime de austeridade de Schäubler: em meados de 2020, concordou com um programa de estímulo económico da UE com um volume de 750 mil milhões de euros, incluindo pagamentos de ajuda à periferia da UE no valor de nada menos que 390 mil milhões de euros. (5)

 

Em termos de política monetária, o Banco Central Europeu (BCE) e o seu homólogo americano, a Reserva Federal, também seguiram recentemente o lema de que os empréstimos tinham de ser tão baratos quanto possível. As taxas de juro directoras na UE e nos EUA tenderam a baixar cada vez mais no século XXI. Entre 2009 e 2021, prevaleceram políticas de taxa de juro zero – com breves interrupções – para apoiar a economia e os mercados financeiros. Além disso, após o rebentamento da bolha imobiliária transatlântica, os bancos centrais passaram à mera impressão de dinheiro, comprando primeiro títulos hipotecários e depois cada vez mais obrigações do Estado – injectando liquidez adicional na esfera financeira, o que levou à inflação dos preços dos títulos no contexto da grande bolha de liquidez que depois rebentou em 2020. No século XXI, a Reserva Federal e o BCE quase decuplicaram o seu balanço total, tornando-se aterros sanitários do sistema financeiro capitalista tardio condenado a um boom permanente e os maiores proprietários de títulos de dívida dos seus Estados.

 

O hiperactivo capitalismo do banco central

 

No decurso do processo de crise, os bancos centrais ascenderam assim a autoridades económicas decisivas, sem cuja intervenção tanto a esfera financeira como o financiamento estatal teriam entrado em colapso. Poder-se-ia falar de capitalismo do banco central, como faz o economista político Joscha Wullweber no seu livro com o mesmo título, no qual descreve como uma parte da esfera financeira, o mercado quase nada regulamentado dos acordos de recompra (repos), depende da inflação da massa monetária pelos bancos centrais. (6) No entanto, a actual tentativa do BCE e da Reserva Federal (apenas o Banco do Japão tenta desesperadamente contrariar a tendência), (7) devido às taxas de inflação de dois dígitos, de conter a inflação que pode ser atribuída a vários factores (pandemia, guerra, explosão da bolha de liquidez, falhas nas cadeias de abastecimento, aumento dos preços da energia), (8) recorrendo a uma política monetária restritiva, não anda necessariamente de mãos dadas com o fim das compras de obrigações do Estado.

 

Na Zona Euro, o Banco Central Europeu criou o seu próprio programa de crise com o PEPP (Pandemic Emergency Purchase Programme) no valor de 1,85 biliões de euros, com o qual continuam a ser compradas obrigações dos Estados (as compras líquidas serão suspensas em Março próximo), (9) o que prejudica o combate à inflação e aumenta a margem de manobra económica do Estado que pode continuar a financiar o seu défice orçamental no âmbito do PEPP. Além disso, estão à vista agora passos concretos do Estado no sentido de uma política activa de controlo económico, sobretudo no quadro do chamado Green New Deal. Os adeptos da linha dura neoliberal (10) queixam-se agora no Handelsblatt dos esforços do Estado para "orientar o crédito" para o ambiente, que se exprimem sobretudo na regulamentação taxonómica da UE que define investimentos sustentáveis – ironicamente, os investimentos em gás natural e energia nuclear são também considerados sustentáveis. Além disso, Sven Giegold (um activista da ATTAC da primeira hora), Secretário de Estado de Habeck, defendeu no Financial Times há um ano atrás uma "política industrial activa" do governo alemão, que deveria "apoiar a inovação", a fim de transformar a RFA numa "economia ecológica e social de mercado". (11)

 

No entanto, esta estrutura do capitalismo de crise, caracterizada por uma crescente actividade estatal ou, pelo menos, por uma influência estatal cada vez maior, não segue uma estratégia coerente, mas apenas se esforça por evitar um colapso económico durante os surtos de crise. É um keynesianismo de acto cego, com que as elites funcionais agem quase por acto reflexo. Os programas de emergência e mudanças políticas, frequentemente introduzidos como medidas temporárias, tornam-se depois permanentes no decurso da crise, tomando forma em novas estruturas e dinâmicas nas fases latentes da crise. Um "navegar à vista", como disse o então Ministro das Finanças Wolfgang Schäuble sobre as acções do governo alemão durante a crise financeira mundial em 2009. (12) Os pacotes de medidas constroem-se simplesmente uns sobre os outros. A política industrial activa de Habeck, da qual Giegold fez grande propaganda no Financial Times, teve como precursora a promoção estatal dos "campeões" (grandes empresas consideradas particularmente importantes) pelo seu antecessor Peter Altmaier, que também quis promover especificamente a indústria de exportação alemã em 2019 devido à crescente concorrência de crise e aos subsídios estatais informais da China e dos EUA. (13)

 

Este "navegar à vista" das elites funcionais em tempos de crise manifesta, em que elementos sempre novos da administração da crise capitalista de Estado são aplicados em reacção aos surtos de crise, dá a esta formação todas as características de uma fase de transição no desenvolvimento da crise do capitalismo tardio. As crises económicas e ecológicas, que forçam os políticos a adoptar o keynesianismo de crise, não são expressão de uma política económica "errada", mas das crescentes contradições internas e externas da relação de capital, que se manifestam muito concretamente em dívidas que aumentam sem parar (mais depressa do que a produção económica mundial) e numa concentração de CO2 na atmosfera terrestre que não pára de crescer.

 

Devido a um nível de produtividade global em constante aumento, o sistema mundial está de facto a funcionar cada vez mais a crédito, incapaz de abrir um novo sector industrial líder, um novo regime de acumulação, em que o trabalho assalariado pudesse ser valorizado em massa. O Estado, através da impressão do dinheiro e do deficit spending (empréstimos para financiar despesas públicas mais elevadas), é praticamente o último recurso para o adiamento da crise, depois de as economias especulativas das bolhas (bolha dotcom, bolha imobiliária, bolha de liquidez) se terem esgotado em grande parte nos mercados financeiros sobreaquecidos. Por exemplo o amplo índice de acções dos EUA S&P 500, após o seu máximo de mais de 4.700 pontos no final de 2021, desceu entretanto cerca de mil pontos.

 

Modern Monetary Ideology

 

A fase tardia do capitalismo globalizado das bolhas financeiras, na qual as políticas monetárias expansionistas dos bancos centrais contribuíram para a inflação dos preços dos títulos na esfera financeira – tendo-se chegado ao investimento em enxame e ao fugaz boom das acções meme como a GameStop (14) – também deu origem a uma forma extrema de ideologia económica tardo e pós-keynesiana, que, ignorando qualquer análise da crise sistémica – especialmente a ligação entre a formação de bolhas e as comportas abertas do dinheiro dos bancos centrais – pôde afirmar que todos os problemas económicos e sociais do capitalismo tardio poderiam ser resolvidos através da impressão de dinheiro. Afinal, as taxas de juro e a inflação permaneceram baixas entre 2008 e 2020.

 

A Modern Monetary Theory (MMT) parecia ter conseguido fazer a quadratura do círculo capitalista. O pleno emprego, o Estado social, o crescimento económico e a viragem ecológica – tudo isto era apenas uma questão de política monetária expansionista, de acordo com a tese central da MMT. De acordo com esta teoria monetária neo-keynesiana, muito popular na esquerda socialista dos Estados Unidos, os governos que controlam a sua moeda podem aumentar livremente as despesas governamentais, sem terem de se preocupar com os défices. Isto porque podem sempre imprimir dinheiro suficiente para pagar a sua dívida nacional na sua moeda. De acordo com esta teoria, a inflação não é problema, desde que a economia não atinja os limites naturais do crescimento ou haja capacidade económica não utilizada, como por exemplo desemprego.

 

Imprimir dinheiro até ao pleno emprego – esse é o objectivo desta tardia ideologia económica keynesiana orientada para a procura, que se formou no vendaval da sobreaquecida financeirização do capitalismo que não ela conseguiu compreender. A maioria dos proponentes do MMT apontam para a política monetária expansionista da Reserva Federal dos EUA, que sustentou os mercados financeiros aos trambolhões com biliões de dólares, de 2007 a 2009 e a partir de 2020. Uma vez que a impressão monetária conhecida como "flexibilização quantitativa" aparentemente não resultou em quaisquer impulsos inflacionistas, o MMT quer elevar estas medidas de crise de certo modo a linha de orientação da política económica neo-social-democrata. Através de uma política monetária expansiva, a oferta da mercadoria dinheiro deve ser aumentada até que a procura seja satisfeita, o desemprego desapareça e a economia esteja a prosperar adequadamente. Os programas de aquisição historicamente sem precedentes dos bancos centrais, com os quais um capitalismo tardio a funcionar a crédito é laboriosamente estabilizado, é o que a MMT quer em última análise declarar a nova normalidade – assim se transformando em ideologia, em justificação do existente.

 

Também não é por acaso que a MMT tem a sua pátria política nos EUA, que controlam a moeda de reserva mundial, o dólar americano. Que permite a Washington endividar-se na medida do valor global de todas as mercadorias. O que acontece quando os países da periferia começam a imprimir como bem entendem as suas próprias moedas, que encontram a sua medida de valor global no dólar americano, pode actualmente ser estudado, por exemplo, na Turquia do "crítico de taxas de juro" Erdogan, onde a taxa de inflação ameaça acelerar para o domínio dos três dígitos. (15) A MMT representa assim uma ideologia muito exclusiva, que eventualmente pode ainda encontrar apoiantes na zona Euro, mas é simplesmente envergonhada pelas experiências na periferia e na semiperiferia.

 

O neokeynesianismo vê assim a causa do actual mal-estar capitalista principalmente na falta de oferta de dinheiro. A verdadeira causa da crise, porém, é a falta de um sector económico líder, a falta de um novo regime de acumulação que valorize trabalho assalariado em massa – o qual nunca mais será restabelecido, devido ao elevado nível de produtividade global. O irracional fim-em-si do capital é a sua valorização máxima possível, através da exploração do trabalho assalariado – a única mercadoria que pode produzir mais-valia como substância do capital – na produção de mercadorias. A política keynesiana da procura, pelo contrário, age como se o capitalismo já tivesse sido ultrapassado, como se o objectivo da economia capitalista fosse a satisfação das necessidades – e não a valorização ilimitada do capital. É o habitual truque keynesiano que simplesmente esconde a irracionalidade da socialização capitalista.

 

É uma regra simples da crise que tem sido observada desde a década de 1980: quando a acumulação de capital começa a falhar na economia real, instala-se o crescimento especulativo da esfera financeira. A MMT ignora a ligação entre a flexibilização quantitativa e o crescimento do inflado sector financeiro capitalista tardio. A impressão do dinheiro da Fed (tal como a do Banco Central Europeu) conduziu de facto à inflação – à inflação dos preços dos títulos nos mercados financeiros. Justamente o sector financeiro inflacionado demonizado pelos Keynesianos – base da dinâmica da dívida global que funciona como motor económico – constituiu assim o factor decisivo que impediu um período de estagflação, como o que nos anos 70 quebrou a espinha do keynesianismo e abriu o caminho ao neoliberalismo. O neoliberalismo desprendeu a esfera financeira precisamente em resposta à fase de crise de estagflação, o que, como forma de adiamento da crise, levou à formação de um capitalismo zombie (16) funcionando a crédito, saltando de bolha em bolha.

 

O regresso ao passado deflacionista

 

O capital perde assim a sua própria substância, o trabalho criador de valor na produção de mercadorias, o que leva a política, confrontada com montanhas de dívidas cada vez maiores, a um beco sem saída: Inflação ou deflação? Em termos concretos, a aporia da política de crise capitalista resultante do limite interno do capital torna-se visível na sombria disputa (17) que se cultiva há anos sobre as prioridades da política económica, entre os neoliberais orientados para a oferta e os keynesianos orientados para a procura. O keynesiano do Twitter Maurice Höfgen gosta de praticar este estúpido boxe de sombras. (18) É sempre a mesma história, repetida em mil variações: O aviso neoliberal de sobreendividamento e inflação no caso de programas de estímulo económico é contrariado pelos keynesianos com o aviso da espiral deflacionista descendente desencadeada pelos programas de austeridade. Ambos os lados do argumento estão certos nos seus diagnósticos, o que só foi encoberto pela economia das bolhas financeiras da era neoliberal. Agora, na era da estagflação, está a tornar-se óbvio que é precisamente a política monetária dos bancos centrais que se encontra numa armadilha de crise. (19) Os bancos centrais teriam de aumentar as taxas de juro por causa da inflação e, ao mesmo tempo, baixar as taxas de juro para evitar uma recessão.

 

A propósito, foi precisamente no período histórico de estagflação da década de 1970 acima delineado – ao qual o sistema mundial capitalista tardio está actualmente a regressar, por assim dizer, num nível de crise muito mais elevado (20) – que o keynesianismo falhou de facto fulminantemente. Após o fim do grande boom do pós-guerra, que foi sustentado pelo regime de acumulação fordista, todas as receitas políticas dos keynesianos falharam. Assim, o neoliberalismo só pôde prevalecer nos anos 80 porque o keynesianismo falhara miseravelmente – com taxas de inflação de dois dígitos, recessões frequentes e desemprego em massa. Quando um keynesiano como Heiner Flassbeck afirma – fiel ao estilo da revista da frente transversal Telepolis (21) – que foi apenas a crise dos preços da energia e do petróleo que desencadeou o surto de crise e inflação nessa altura como agora, ele está a mentir a si próprio. Apesar de todos os programas de estímulo económico, o keynesianismo não foi capaz pôr de pé um novo regime de acumulação – nem será capaz agora de fazer surgir por magia novos mercados, com cujo desenvolvimento pudesse ser explorado trabalho assalariado em massa ao nível global de produtividade.

 

O neoliberalismo "resolveu" o problema na altura com a descolagem especulativa da esfera financeira e a financeirização do capitalismo, retardando as crises no quadro de uma verdadeira economia de bolhas financeiras, que permitiu ao capital viver uma espécie de existência zombie a crédito durante três décadas. Esta é também a diferença fundamental entre a fase de estagflação dos anos 70 e a actual fase de estagflação. A escala da crise é muito maior – e isto pode ser visto muito simplesmente no nível da dívida total em relação à produção económica, que, segundo o Fundo Monetário Internacional, subiu de cerca de 110 por cento no início da era neoliberal em 1980 para 256 por cento em 2020 (excluindo o sector financeiro). (22)

 

E uma redução sustentável desta montanha de dívidas só é possível ao preço de uma recessão – ou seja, a longo prazo, na realidade, não é de todo possível. Para além do facto de ser uma loucura ecológica reagir a recessões com programas de estímulo keynesianos. Das recessões de 2009 e 2020, que irromperam na sequência dos surtos de crise da época, resultaram os únicos anos do século XXI em que as emissões de CO2 diminuíram. Mas os pacotes de estímulo acima descritos levaram aos maiores aumentos de emissões deste século nos anos seguintes. Em 2009, as emissões de gases com efeito de estufa diminuíram 1,4%, (23) apenas para aumentarem 5,9% em 2010 (24 ) graças aos pacotes de estímulos keynesianos! Em 2020, as emissões caíram novamente 4,4% devido à pandemia, enquanto em 2021 aumentaram 5,3% devido a múltiplas medidas de estímulo. (25) Empobrecimento em recessão ou morte climática? Esta é a expressão da aporia ecológica da política de crise capitalista.

 

 

Material ideológico para o oportunismo de esquerda na crise

 

Os velhos keynesianos obstinados como Flassbeck, bem como a completamente louca nova geração em torno da MMT, ignoram obstinadamente estas simples ligações, que simplesmente apontam para a necessidade de transformação do sistema. Continuam a espalhar o conto de fadas de que uma política errada teria levado à financeirização, à descolagem dos mercados financeiros na era neoliberal – e que a única coisa a fazer seria "contê-los". E, é claro, eles repetem rotineiramente o seu maçador programa para advertir contra uma política monetária restritiva, apesar de uma inflação de dois dígitos. Mesmo que se esteja a tornar simplesmente embaraçosa a acrobacia com que se nega a evidência da armadilha de crise da política burguesa, a fim de rejeitar repetidamente a inflação como uma "anomalia" que deveria ser combatida com a "verdadeira" política keynesiana. No keynesianismo, que se está a transformar rapidamente em regressão, não há simplesmente qualquer sentimento de vergonha, mesmo quando as próprias previsões são tão claramente envergonhadas pela realidade da crise como na actual fase de estagflação.

 

Em Flassbeck, no famigerado Höfgen, bem como em muitos outros keyensianos absolutamente cegos à crise mundial do capital, há um reflexo para negar todas as provas do impasse ideológico em que se encontram. Tal como a inflação não é inflação "real", eles exigem o "verdadeiro" Keynes na política de crise, uma vez que os métodos utilizados até agora não correspondem ao ideal. Isto é evidente em toda a sua deprimente franqueza no autor do livro acima mencionado sobre o capitalismo dos bancos centrais, que prossegue interminavelmente descrevendo como os bancos centrais têm de apoiar o inflado sistema financeiro, para depois afirmar que isto não é keynesianismo porque não se teve mão nos mercados financeiros: (26) "A actual forte intervenção dos bancos centrais no sistema financeiro e mesmo as medidas de apoio dos governos durante a pandemia de coronavírus não são, portanto, um regresso ao Estado forte ou a um novo keynesianismo. Apesar da gravidade das crises, não houve uma mudança de rumo de longo alcance na política económica e financeira. É uma forma de governar que tem lugar no âmbito da ordem económica liberal de mercado que continua a prevalecer. Nem o funcionamento do sistema financeiro em geral, nem o do sistema bancário sombra em particular estão a ser questionados. Mas é exactamente isso que teria de acontecer para ultrapassar a propensão para a crise do sistema".

 

De facto, o actual keynesianismo de crise não pode estar à altura do velho ideal porque, como forma de precária administração da crise, é confrontado com as consequências da financeirização do capitalismo ao longo de uma década. É deprimente: Joscha Wullweber descreve as consequências desta financeirização com base no que ele chama os acordos de recompra típicos do "sistema bancário sombra" (27) e lamenta as consequências da rápida expansão da esfera financeira, apenas para permanecer na prisão capitalista do pensamento e declarar a dinâmica estrutural como mera questão de uma política errada. E é precisamente este tipo de pensamento que faz do keynesianismo um veículo ideológico usado com gosto pelo oportunismo de esquerda. (28) Os keynesianos são cortejados acima de tudo no "Partido da Esquerda", uma vez que voltam a trapacear a crise sistémica como uma mera questão política, o que legitima a pretendida participação na administração da crise de todos os bandos do Partido da Esquerda, desde o liberal de esquerda ao nacional de direita. A crítica truncada dos keynesianos ao capitalismo há muito que se congelou em ideologia.

 

Economia de guerra pós-keynesiana

 

O keynesianismo, com o seu monótono deficit spending e a sua fé no Estado, não pode evidentemente resolver a escalada da crise interna e externa do capital, mas pode funcionar como transição para uma nova qualidade da crise. Keynes pode ser um útil programa de arranque, um veículo de transição para uma forma qualitativamente nova de administração autoritária da crise, especialmente para as elites funcionais que frequentemente actuam "à vista". Os pós-keynesianos ideologicamente avançados, como a redactora do Taz Ulrike Herrmann, há muito que entenderam isso: (29) No seu mais recente livro sobre "O Fim do Capitalismo", junta uma exposição sobre os limites externos do capital, em grande parte copiada da crítica de valor, com um compromisso com a economia de guerra, incluindo medidas coercivas e racionamento. A redactora da Taz quer dotar o Estado alemão, que é cego do seu olho direito e está cheio da camarilha de direita, de um monstruoso excesso de poder, tornando-o a instância central da reprodução social na crise. Também aqui, é claro, a Sra. Herrmann se baseia numa crítica keynesiana e truncada do capitalismo, onde o Estado aparece como a grande contrapartida do capital – e não como parte do sistema capitalista que está a cair com ele, como já acontece em série nos "Estados falhados" na periferia.

 

É para esta administração autoritária e pós-democrática da crise, executada através de aparelhos de Estado em erosão por vezes abertamente asselvajados, que se encaminha o curso da crise. Os Keynesianos estão apenas a fazer o papel – estúpida ou perfidamente – de chefes de claque desta tendência objectiva da crise para o autoritarismo anómico. O keynesianismo, que apenas devido ao absurdo deslocamento para a direita de todo o mundo político das ideias pode ser considerado parte da esquerda à esquerda da social-democracia, degenera assim numa ideologia no mais puro sentido: na justificação da iminente administração autoritária da crise capitalista de Estado, que seria exactamente o oposto à emancipação do regime de coerção do capitalismo tardio em colapso, emancipação que é necessária para a sobrevivência. Consequentemente, a esquerda deveria finalmente passar a ver os keynesianos como aquilo que objectivamente são: ideólogos.

 

Notas

 

1 https://www.faz.net/aktuell/wirtschaft/dervolks-und-betriebswirt/volkswirtschaftslehre-sind-wir-jetzt-alle-keynesianer-1775435.html

 

2 https://www.freitag.de/autoren/der-freitag/in-der-krise-sind-alle-keynesianer

 

3 https://www.konicz.info/2020/10/27/vergleich-der-krisen-2020-vs-2008/

 

4 https://www.mckinsey.com/featured-insights/coronavirus-leading-through-the-crisis/charting-the-path-to-the-next-normal/totalstimulus-for-the-covid-19-crisis-already-triple-that-for-the-entire-2008-09-recession

 

5 https://www.sueddeutsche.de/politik/eusondergipfel-haushalt-1.4973847

 

6 https://www.bpb.de/shop/zeitschriften/apuz/geldpolitik-2022/507732/zentralbankkapitalismus/

 

7 https://www.konicz.info/2022/12/30/japanin-der-krise-mehr-alkoholismus-wagen/ Trad. Port.: https://www.konicz.info/2023/01/03/o-japao-na-crise-ousar-mais-alcoolismo/

 

8 https://www.konicz.info/2021/08/08/dreierlei-inflation/ Trad. Port.: https://www.konicz.info/2021/08/11/tres-tipos-de-inflacao/

 

9 https://www.ecb.europa.eu/mopo/implement/pepp/html/index.en.html

 

10 https://www.handelsblatt.com/meinung/homo-oeconomicus/gastkommentarhomo-oeconomicus-kreditlenkung-ist-keingutes-rezept-fuer-klimaschutz/27974940.html

 

11 https://www.ft.com/content/fa740376-da98-4067-92b4-85d315bbb6e2

 

12 https://wolfgang-schaeuble.de/wir-fahren-auf-sicht-dazu-muss-man-sich-offenbekennen/

 

13 https://www.ifo.de/publikationen/2005/aufsatz-zeitschrift/nationale-industriepolitik-brauchen-wir-nationale-champions

 

14 https://www.konicz.info/2021/01/30/hedge-fonds-gamestop-und-reddit-kleinanlegerdie-grosse-blackrock-bonanza/ Trad. Port.: https://www.konicz.info/2021/02/05/fundos-de-cobertura-gamestop-e-os-pequenos-investidores-do-reddit-a-grande-bonanca-da-blackrock/

 

15 https://www.konicz.info/2022/01/31/werteverfall/

 

16 https://www.streifzuege.org/2017/wirsind-zombie/

 

17 https://www.konicz.info/2011/08/15/politik-in-der-krisenfalle/

 

18 https://twitter.com/MauriceHoefgen/status/1610588756754534400

 

19 https://www.konicz.info/2011/08/15/politik-in-der-krisenfalle/

 

20 https://www.xn--untergrund-blttle2qb.ch/wirtschaft/theorie/stagflation-inflationsrate-6794.html

 

21 https://www.telepolis.de/features/DieWelt-vor-der-Rezession-Diese-alten-Fehlerwerden-die-Lage-verschaerfen7286773.html?seite=all

 

22 https://www.imf.org/en/Blogs/Articles/2021/12/15/blog-global-debt-reaches-a-record226-trillion

 

23 https://www.reuters.com/article/us-climate-emissions-idUSTRE6AK1OU20101121

 

24 https://www.reuters.com/article/us-ieaco2-idUSTRE74T4K220110530

 

25 https://joint-research-centre.ec.europa.eu/jrc-news/global-co2-emissions-rebound-2021-after-temporary-reduction-during-covid19-lockdown-2022-10-14_en#:~:text=In%202021%2c%20global%20anthropogenic%20fossil,the%20world's%20largest%20cO2%20emitters.

 

26 https://www.bpb.de/shop/zeitschriften/apuz/geldpolitik-2022/507732/zentralbankkapitalismus/

 

27 Repurchase Agreements (repos) são acordos de recompra. Sobre estes diz Wullweber (fonte na nota nº 26): "Os acordos de recompra são contratos em que os títulos são vendidos a um determinado preço, a fim de os comprar de novo após um período de tempo definido a um preço previamente fixado acrescido de juros. ... Em princípio, um repo não é mais do que uma loja de penhores: um dos lados precisa de dinheiro e deposita um penhor sob a forma de um título como garantia. O outro lado tem dinheiro e empresta-o contra esta garantia. ... De um modo geral, no sistema bancário sombra existem por um lado actores financeiros como os fundos de cobertura e os bancos comerciais que precisam de fundos para poderem obter lucros a curto prazo através de transacções com diferentes perfis de risco ou também para compensar um défice nas reservas de capital. ... Por outro lado, encontramos fundos do mercado monetário, gestores de activos, fundos de pensões e outros investidores institucionais ou mesmo empresas que desejam investir o seu capital excedentário com riscos relativamente baixos e rendimentos comparativamente elevados"

 

28 https://www.untergrund-blättle.ch/politik/deutschland/linkspartei-opportunismusin-der-krise-7288.html

 

29 https://www.konicz.info/2022/12/14/rebranding-des-kapitalismus/ Trad. Port.: Rebranding do capitalismo, www.obeco-online.org/tomasz_konicz34.htm

 

 

Original “Krisenkeynesianismus der blinden Tat” in www.exit-online.org, 05.03.2023. Antes publicado em Netz-Telegrammm, Fevereiro de 2023, https://www.oekumenisches-netz.de/wp-content/uploads/2023/02/nt-2023-1-web.pdf. Tradução de Boaventura Antunes

 

http://www.obeco-online.org/

http://www.exit-online.org/