A crise da dívida está a tornar-se multipolar
Tomasz Konicz
Cada vez mais países da América Latina, África e Ásia estão sobreendividados ou mesmo em situação de falência. A China também é afectada por esta crise como credora e tem de conceder empréstimos de emergência para proteger os seus próprios bancos do incumprimento
As subidas das taxas de juro dos bancos centrais ocidentais, com as quais pretendem combater a inflação persistente – nos EUA, a taxa de juro directora é agora de 5 a 5,25%, na zona euro é de 3,75% –, já levaram ao colapso de três bancos regionais nos EUA e estão a travar o crescimento económico em ambos os lados do Atlântico. Mas esta turbulência não é nada comparada com os choques que muitos países economicamente mais fracos estão a enfrentar. Como é cada vez mais caro contrair novos empréstimos, estes países têm cada vez mais dificuldade em pagar as suas dívidas externas, na sua maioria denominadas em dólares americanos.
Especialmente em África, na Ásia, na América Latina e no Médio Oriente, cada vez mais países se encontram numa clássica armadilha da dívida, em que a estagnação económica, a recessão e o aumento dos custos dos empréstimos interagem fatalmente. A situação já está a ser comparada ao "Choque Volcker" de 1979, quando o então presidente da Reserva Federal, Paul Volcker, aumentou as taxas de juro directoras nos EUA para mais de 20% por algum tempo, para combater muitos anos de estagflação, desencadeando uma crise da dívida, especialmente em países da América do Sul e de África.
Em meados de Abril, o Financial Times, citando um estudo da ONG Debt Justice, informou que o serviço da dívida externa de um grupo de 91 dos países mais pobres do mundo consumiria uma média de 16% das suas receitas públicas este ano, prevendo-se que esse valor suba para 17% no próximo ano. A última vez que se atingiu um valor tão elevado foi em 1998. O mais atingido é o Sri Lanka, cujo serviço da dívida este ano é equivalente a cerca de 75% das receitas previstas, razão pela qual o Financial Times espera que a nação insular "não cumpra os pagamentos" este ano.
A Zâmbia que, tal como o Sri Lanka, já teve de enfrentar uma falência nacional no ano passado, está também gravemente ameaçada. A situação é igualmente terrível no Paquistão, onde 47% das receitas do Estado terão de ser utilizadas para pagar os empréstimos externos este ano. As consequências para a população destes e de muitos outros países são já dramáticas: os governos já não podem pagar salários ou financiar a importação de fontes de energia ou de alimentos, por exemplo, e o declínio do valor das suas moedas agrava a inflação, a pobreza e a fome.
Mas não são apenas os países mais pobres que estão ameaçados. Na Argentina, por exemplo, onde o banco central imprime dinheiro para financiar o défice orçamental, a inflação é actualmente de 109% e ameaça transformar-se numa hiperinflação destrutiva. Como muitos outros países em crise, a Argentina concluiu um programa de emergência com o Fundo Monetário Internacional (FMI) que prevê empréstimos de 44 mil milhões de dólares americanos em troca de medidas de austeridade. Em meados de Maio, o Presidente argentino, Alberto Fernández, apelou a renegociações com o FMI, tendo em conta a quebra de colheitas de trigo, o mais importante produto de exportação, provocada pela seca. A Vice-Presidente Cristina Fernández de Kirchner chegou mesmo a qualificar o acordo de "escandaloso" e de "fraude".
A China, que se tornou um dos maiores credores do mundo nos últimos anos, desempenha um papel especial na actual crise da dívida. Só no âmbito do programa de desenvolvimento global da Iniciativa "Uma Faixa, Uma Rota", também conhecida como "Nova Rota da Seda", foram efectuados empréstimos e transacções no valor total de, pelo menos, 838 mil milhões de dólares americanos até ao final de 2021, sobretudo para financiar infra-estruturas e outros grandes projectos em África, na Ásia e na América Latina. A maioria dos empréstimos foi concedida por bancos chineses. A China queria lançar as bases para uma futura hegemonia económica.
Mas agora – após a pandemia de Covid-19 e a invasão da Ucrânia pela Rússia, o aumento da inflação mundial e o abrandamento do crescimento na própria China – os bancos chineses estão mais relutantes em conceder empréstimos aos países mais pobres. De acordo com um estudo do Rhodium Group, já em 2021 cerca de 16% dos empréstimos concedidos pela China ao estrangeiro, no valor de 118 mil milhões de dólares, estavam em risco de incumprimento e teriam de ser renegociados.
Apenas um ano depois, de acordo com um estudo do Instituto para a Economia Mundial (IfW) de Kiel, a crise da dívida externa chinesa já se alargou consideravelmente. Segundo o estudo, 60 por cento dos empréstimos já estavam em risco de incumprimento em 2022, pelo que Pequim teve de conceder 128 empréstimos de emergência a 22 países devedores, no valor de 240 mil milhões de dólares americanos. Na maioria dos casos, os países devedores apenas beneficiam de um adiamento, através da emissão de novos empréstimos para reembolsar os pagamentos devidos, o que permite uma "extensão dos prazos de vencimento ou das condições de pagamento"; a anulação da dívida "só ocorre muito raramente", segundo o IfW.
A maior parte destes empréstimos de refinanciamento foi concedida pelo banco central chinês, o que efectivamente salva os bancos chineses que originalmente concederam os empréstimos. Os autores do estudo do IfW comparam, por isso, as actuais acções da China com a concessão dos chamados empréstimos de emergência à Grécia e a outros países do Sul da Europa durante a crise do euro, que também se destinavam a salvar bancos ameaçados de incumprimento.
De acordo com o IfW, os empréstimos de crise e os empréstimos intercalares destinam-se principalmente aos "países de rendimento médio", que representam 80% do volume de empréstimos estrangeiros da China e, por conseguinte, "grandes riscos para os balanços dos bancos chineses". Os países de baixo rendimento, por outro lado, quase não receberam empréstimos de crise, uma vez que as falências desses Estados dificilmente poderiam pôr em perigo o sector bancário chinês. Além disso, a taxa de juro dos empréstimos de crise chineses é, em média, de cinco por cento; no FMI, é comum a taxa de dois por cento. Entre os países devedores que beneficiaram de empréstimos de crise contam-se países como o Sri Lanka, o Paquistão, a Argentina, o Egipto, a Turquia e a Venezuela.
O IfW também observou que, para uma grande parte dos empréstimos de resgate, as modalidades e a dimensão dos programas de empréstimo não estão disponíveis ao público. Esta situação torna "a arquitectura financeira internacional mais multipolar, menos institucionalizada e menos transparente". Esta falta de transparência afecta também os empréstimos anteriormente concedidos pelos bancos chineses. Num recente relatório detalhado sobre a crise da dívida, a agência noticiosa Associated Press (AP) citou os resultados de um estudo do grupo de investigação Aid Data, que registou empréstimos chineses de pelo menos 385 mil milhões de dólares americanos em 88 países, só até 2021, que estavam "escondidos ou insuficientemente documentados".
Muitos dos países mais pobres de África ou da Ásia acederam prontamente ao dinheiro chinês no auge da bolha de liquidez mundial, entre 2010 e 2020, para financiar infra-estruturas e projectos de prestígio que se transformam cada vez mais em ruínas de investimento no actual surto de crise. Para estes países, o secretismo representa agora um grave problema, porque em caso de incumprimento, os credores internacionais do país afectado têm de chegar a acordo sobre quem adiará os empréstimos ou renunciará aos reembolsos e em que medida. No entanto, os credores e instituições ocidentais, como o FMI ou o Banco Mundial, estão actualmente a recusar programas de emergência em muitos casos, porque as modalidades dos programas de empréstimos chineses não são claras e não conseguem chegar a um acordo com a China. Alguns Estados pobres estão, por isso, numa "situação de limbo", escreve a AP, porque a China não está disposta a aceitar perdas, enquanto o FMI se recusa a conceder empréstimos a juros baixos, se apenas as dívidas chinesas forem pagas com eles.
As negociações com os credores são ainda oneradas pela intensificação da competição política global entre os países ocidentais e a China. A crescente fragmentação da economia mundial torna "mais difícil a resolução de crises de dívida soberana, especialmente quando existem divisões geopolíticas entre os principais credores soberanos", alertou em Janeiro a directora-geral do FMI, Kristalina Georgieva.
Os países ocidentais, por seu lado, esperam utilizar a crise da dívida externa chinesa para fazer recuar a influência que a China construiu através dos seus empréstimos em muitas regiões do mundo. A Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, afirmou em Maio que existe agora uma "janela de oportunidade" para os países do G7 e os seus parceiros, depois de "muitos países do Sul Global terem tido más experiências com a China" e se encontrarem em "crises de dívida", enquanto a Rússia apenas tem "mercenários e armas" para oferecer. O Ocidente poderia, se actuasse rapidamente, estabelecer parcerias com estes países que seriam mutuamente benéficas. As empresas e os bancos poderiam ser envolvidos na elaboração de "pacotes globais" que também transfeririam partes das cadeias de produção para os países em desenvolvimento. A UE quer promover "não só a extracção de matérias-primas, mas também a sua transformação e refinamento locais". Von der Leyen está, assim, a especular sobre uma má memória dos seus potenciais "parceiros" do Sul Global, que já tiveram experiências dolorosas com os programas de crédito ocidentais desde os anos de 1970.
Original “Die Schuldenkrise wird multipolar” in www.exit-online.org. Antes publicado em Jungle World 22/2023, 01.06.2023. Tradução de Boaventura Antunes