A ESQUIZOFRENIA DA POLÍTICA MONETÁRIA

Como é que os bancos centrais conseguiram estabilizar o sistema financeiro após o "terramoto bancário" de março de 2023? E que perspectivas para esta gestão da crise?

 

 

Tomasz Konicz

 

 

A última crise bancária1 que abalou o sistema financeiro em março de 2023 desapareceu há muito das manchetes dos jornais, mas isso não significa que o sistema financeiro tenha sido estabilizado para sempre. O pânico dos mercados continuou a repercutir-se durante meses. Foram precisamente os capitalistas financeiros2 que em abril advertiram contra o regresso ao business as usual. O multimilionário americano Leon Cooperman falou aos media de uma "crise financeira de longo prazo",3 causada por "políticas fiscais e monetárias irresponsáveis" ao longo da última década – alguns dias antes de outro banco regional americano em dificuldades, o First Republic, ter de ser "resgatado" e posto sob controlo no início de maio.4

 

O que se pretende com esta acusação aparentemente enigmática foi esclarecido pelo investidor financeiro Jeremy Grantham numa entrevista no final de abril.5 A Reserva Federal dos EUA "não fez praticamente nada acertado desde Paul Volcker", lamentou Grantham, tendo contribuído repetidamente para a inflação de bolhas de activos através da sua política monetária expansionista dos últimos anos e décadas. O resultado foi "uma cadeia de super-bolhas" que, quando inevitavelmente rebentarem, terão "efeitos graves e dolorosos" em toda a economia mundial. O potencial de crise é, por isso, muito maior este ano do que em 2000, por exemplo, quando rebentou a bolha das "dot-com", advertiu Grantham, porque agora não só os mercados de acções foram inflacionados especulativamente, mas também "obrigações, imobiliário, objectos de arte e outros activos". A esfera financeira está assim numa "everything bubble", uma bolha que engloba muitos sectores e classes de activos dos mercados financeiros, disse Grantham, abrindo caminho para o inevitável "crash e recessão dolorosa".

 

As elites funcionais do capital são, pois, perfeitamente capazes de reflectir sobre as grandes linhas do processo de crise – mesmo que o façam de forma ideologicamente distorcida. A cadeia de bolhas financeiras,6 a economia neoliberal de bolhas financeiras, a bolha de liquidez que rebentou, o terrível potencial de crise que se acumulou – estes processos históricos de crise são certamente percepcionados pelos capitalistas financeiros, enquanto os restos do que costumava ser a esquerda alemã7 permanecem em grande parte na ignorância da crise.8 O que ambos os capitalistas financeiros acima mencionados – Cooperman e Grantham – não referem, no entanto, é o simples facto de que eles próprios ganharam muito bem com a economia das bolhas financeiras, que estava cada vez mais dependente da impressão de dinheiro dos bancos centrais.

 

E foi precisamente o boom especulativo dos mercados financeiros na era neoliberal que funcionou como motor central da economia financiado a crédito. O sistema funciona a crédito, com a dimensão crescente das bolhas especulativas a gerar uma procura financiada pelo crédito para a economia real enfraquecida, que está a sufocar na sua produtividade. É por isso que nas últimas décadas de globalização neoliberal – que no seu cerne foi uma globalização desta dinâmica de endividamento sistemicamente necessária através de circuitos de défice9 – foram criadas gigantescas montanhas de dívidas, de tal modo que mesmo os especuladores calejados não podem evitar sentir com desconforto o potencial de crise reprimido.

 

Haja dinheiro!

 

E, no entanto, é de notar que o surto de crise aguda da primavera de 2023, que assustou até os capitalistas financeiros, foi contido com sucesso por contramedidas rápidas das elites funcionais. O pessimismo dos especuladores acima citados parece despropositado.

 

Por isso vale a pena olhar mais de perto para esta gestão quase rotineira da política de crise. As primeiras medidas tomadas pelo governo dos Estados Unidos após o colapso do Silicon Valley Bank (SVB), que iniciou a turbulência na esfera financeira em meados de março, visavam combater o pânico e estabilizar as instituições financeiras. O Presidente Biden declarou que, com efeitos imediatos, o Estado protegeria todos os depósitos bancários em montantes ilimitados, a fim de evitar qualquer "tempestade bancária" noutras instituições financeiras, onde clientes em pânico levantariam os seus fundos (nos Estados Unidos, os depósitos só são protegidos por lei até 250 000 dólares). A Reserva Federal gerou 143 mil milhões de dólares para este efeito, que foram canalizados para empresas de resgate e serviram para garantir os depósitos dos clientes do SVB e do também falido Signature Bank. Nenhum cliente dos bancos afectados perdeu o seu dinheiro.

 

Ao mesmo tempo, Washington começou a inundar o sistema financeiro com dinheiro, para evitar um "congelamento" da esfera financeira, como aconteceu após o colapso do banco de investimento Lehman Brothers, na crise financeira mundial de 2007/08. Na altura, os bancos receavam continuar a negociar normalmente entre bancos, porque não era claro se os seus parceiros comerciais não corriam o risco de falir. Para evitar um congelamento tão catastrófico de transacções essenciais no sector financeiro, a Reserva Federal abriu completamente as suas comportas de dinheiro: na semana de 9 a 15 de março, mais de 152 mil milhões de dólares fluíram para os bancos sem dinheiro ao abrigo de um programa de provisão de liquidez conhecido como janela de desconto.10 Para se ter uma ideia da escala desta intervenção na crise em março, basta olhar para a semana anterior, quando os bancos reclamaram apenas cerca de 4,5 mil milhões de dólares através da janela de desconto da Reserva Federal. Este valor, em meados de março de 2023, excedeu largamente o pico semanal do ano de crise de 2008, quando a Fed gastou cerca de 111 mil milhões de dólares para estabilizar os bancos em dificuldades no espaço de uma semana após a falência do Lehman Brothers.11

 

Além disso, só em março foram emprestados 53 mil milhões de dólares aos bancos ao abrigo do novo programa de crise "Bank Term Funding Program".12 No início de maio este valor tinha subido para 75 mil milhões de dólares.13 Neste programa, as instituições financeiras podem depositar ao valor nominal como garantia os seus títulos de dívida pública, que estão a desvalorizar-se na actual fase de juros elevados e que desencadearam a crise nos EUA,14 – o mecanismo de mercado teve assim de ser suspenso pela Fed para estabilizar o mercado financeiro (quando as taxas de juro sobem, o valor de mercado dos títulos desce). As medidas directas de combate à crise tomadas pelos decisores políticos atingiram assim um volume de mais de 300 mil milhões de dólares só em março de 2023, o que corresponde a cerca de metade de todas as despesas durante o grande surto de crise de 2008.

 

Além disso, a luta contra a crise foi coordenada a nível mundial.15 Na segunda quinzena de março, os bancos centrais dos EUA, da Zona Euro, da Grã-Bretanha, do Japão, da Suíça e do Canadá concordaram em garantir o fornecimento de dólares americanos ao sistema financeiro mundial em dificuldades. Neste processo foi intensificada a liquidação de swaps cambiais. As chamadas transacções de swap, em que os bancos são abastecidos com a moeda de reserva dos EUA, são normalmente liquidadas todas as semanas. Mas a partir de 20 de março os guardiões monetários envolvidos passaram a organizar as transacções de swap numa base diária, a fim de evitar possíveis estrangulamentos de liquidez na esfera financeira. Mais uma vez podemos falar aqui de uma estratégia que se baseia nas experiências do surto de crise de 2007 e 2008. Nessa altura os bancos europeus tiveram grandes problemas em obter dólares americanos suficientes para poderem manter as suas operações. O mesmo já não deveria acontecer no último terramoto dos mercados financeiros: as transacções diárias de swap serviram de "cobertura de liquidez para aliviar as tensões nos mercados de financiamento globais e, assim, ajudar a mitigar o impacto dessas tensões na oferta de crédito às famílias e às empresas", segundo o Tagesschau.

 

Esta táctica de excesso de dinheiro extrema e coordenada a nível mundial, representa, na verdade, uma lição da crise financeira de 2008,16 quando Washington começou por não agir para dar o "exemplo" e a falência do Lehman levou ao congelamento da esfera financeira. E as medidas adoptadas em 2023 parecem ter sido bem sucedidas. Por um lado, a política monetária entrou em modo "whatever it takes", como explicou um analista, aludindo ao antigo presidente do BCE, Mario Draghi, que declarou, no auge da crise do euro, que faria tudo para salvar o euro – antes de abrir de par em par as comportas de dinheiro do BCE. Os bancos centrais podem inundar o mercado financeiro com dinheiro acabado de imprimir, podem iniciar injecções de liquidez específicas ou simplesmente aceitar ao par obrigações do Estado desvalorizadas, dando a impressão de que podem conter qualquer crise financeira. Assim, a política monetária respondeu ao surto de crise de março de 2023 "abrindo cada vez mais a torneira do dinheiro", como os media económicos disseram sucintamente.17

 

A tarraxa das taxas de juro e a bolha de liquidez

 

Mas, ao mesmo tempo, os bancos centrais parecem estar a seguir uma política oposta. Para ficar na imagem acima: Os banqueiros centrais querem fechar a "torneira do dinheiro" para combater a inflação e, ao mesmo tempo, precisam de a abrir para estabilizar o sector financeiro. Até agora, tanto a Reserva Federal dos EUA18 como o Banco Central Europeu19 estão a manter a sua política monetária restritiva, que consiste principalmente no aumento das taxas de juro directoras e na redução dos balanços dos bancos centrais. Em pleno "terramoto bancário", em 16 de março de 2023, o BCE decidiu aumentar a taxa de juro directora para 3,5 por cento. Poucos dias depois, a 22 de Março20 , a taxa de juro directora dos EUA foi aumentada pela Fed em 25 pontos base, atingindo os cinco por cento.21 Após outra ronda de aumentos das taxas dos bancos centrais em Maio,22 a taxa de juro directora situou-se nos 3,75% na UE e nos 5,25% nos EUA. Após a última ronda de aumentos em junho e agosto, a taxa de juro de referência na Zona Euro está agora nos 4,25%,23 enquanto a Fed aumentou mesmo a sua taxa de juro de referência para 5,5% em Julho.24

 

Os milhares de milhões de ajuda a curto prazo ao sector financeiro em dificuldades na primavera de 2023 contrastam assim com a política continuada de taxas de juro elevadas utilizada para combater a inflação. Vista isoladamente, esta política de combate à inflação parece ter sido parcialmente bem sucedida. Na zona euro, a inflação, que se situava nos dois dígitos no final de 2022, baixou para 5,3% em julho de 2023.25 Nos Estados Unidos, a taxa de inflação oficial era de 3,2% em julho de 2023, contra 8,5% há um ano.26 Mesmo que estes números oficiais sobre a inflação sejam retocados, porque sobretudo os assalariados dos estratos pobres da população têm de gastar uma parte maior do seu rendimento em alimentos que estão a ficar particularmente caros, pelo menos é preciso notar que a política monetária tem sido bem sucedida na contenção da dinâmica inflacionista.

 

Além disso, os responsáveis pela política monetária de ambos os lados do Atlântico afirmam a sua intenção de continuar a reduzir os balanços inchados dos bancos centrais. Antecedentes: a política monetária expansiva dos bancos centrais, lamentada pelo investidor financeiro Jeremy Grantham no início deste artigo, que conduziu a uma "cadeia de bolhas financeiras" e, em última análise, a uma "everything bubble", foi acompanhada pela compra maciça de títulos do mercado financeiro pelos bancos centrais, pelo menos desde a crise de 2008. Após o rebentamento da grande bolha imobiliária nos EUA e na Europa, o BCE, a Fed e os bancos centrais da Grã-Bretanha e do Japão começaram por comprar títulos hipotecários não transaccionáveis, a fim de estabilizar os mercados financeiros paralisados. Depois disso, os bancos centrais compraram cada vez mais dívida pública para financiar os gigantescos défices públicos e as medidas de estímulo económico.

 

Os Estados apoiaram a economia com pacotes de estímulo maciços, enquanto os bancos centrais compravam cada vez mais dívida pública para manter as taxas de juro baixas. Com estes programas de compra, os bancos centrais tornaram-se efectivamente depósitos do lixo do mercado financeiro que sobrecarregava a esfera financeira. Ao mesmo tempo foi injectada liquidez em grande escala no sistema financeiro através da compra de títulos financeiros e de dívida pública. Tudo isto se assemelha a uma operação de impressão de dinheiro efectuada através dos mercados financeiros. O princípio básico é simples: os bancos centrais injectaram nova liquidez nos mercados financeiros através de programas de compra, o que levou à "inflação", a um aumento dos preços dos bens do mercado financeiro – e criou a bolha de liquidez, a lamentada "everything bubble" dos últimos anos.

 

Os números concretos27 reflectem de forma impressionante esta tendência de longo prazo para o capitalismo de banco central. Antes do rebentamento da grande bolha imobiliária transatlântica, no início de 2007, os balanços dos bancos centrais dos EUA, da UE e do Japão ascendiam a pouco mais de três biliões de dólares – no final de 2008 eram já quase sete biliões. Em 2017, os vários programas de compra destes bancos centrais tinham gradualmente aumentado os seus balanços para um total de cerca de 15 biliões de dólares. A pandemia desencadeou a grande vaga de compras seguinte – e, de facto, de impressão de dinheiro – que catapultou os balanços dos bancos centrais dos três Estados centrais acima mencionados para uns impressionantes 25 biliões de dólares.28

 

Dr. Jekyll e Mr. Hyde – a esquizofrenia da política monetária na armadilha da crise

 

O sistema mundial, sufocado pela hiperprodutividade da sua produção de mercadorias, funciona cada vez mais a crédito, através da procura gerada pelo crédito na esfera financeira, com a impressão de dinheiro dos bancos centrais a desempenhar um papel cada vez maior na criação das correspondentes bases de especulação e de crédito. Isto acabou desde o início da dinâmica inflacionista global.29 Não só as taxas de juro têm de ser aumentadas, como também os bancos centrais têm de reduzir as suas compras de títulos públicos e privados para, pelo menos, conter a inflação, o que priva a esfera financeira do seu "combustível" mais importante para a formação de bolhas sempre novas. As convulsões nos mercados financeiros da primavera de 2023 mencionadas no início e a crise bancária nos EUA são precisamente a consequência da retirada de liquidez pelos bancos centrais.

 

A política monetária e económica burguesa encontra-se assim numa armadilha de crise: teria de baixar as taxas de juro e continuar a imprimir dinheiro para apoiar a economia e os instáveis mercados financeiros. Mas, ao mesmo tempo, os bancos centrais teriam de aumentar as taxas de juro e passar a uma política monetária restritiva para conter a inflação – na medida em que tal seja possível através da mera política monetária.30 Para fazer esta quadratura do círculo, pelo menos em certa medida, os bancos centrais parecem estar a mudar para uma espécie de esquizofrenia da política monetária, em que a tendência geral para reduzir os balanços dos bancos se transforma em curtos episódios de política monetária expansionista nos períodos de crise. As reduzidas aquisições de títulos públicos e financeiros pelos bancos centrais31 transformam-se, em caso de crise, na acima descrita política expansiva de crise "whatever it takes", com biliões a serem gastos para estabilizar o sistema financeiro.

 

A esperança da política monetária parece ser que os totais dos balanços dos bancos centrais possam ser reduzidos a longo prazo, apesar das intervenções a curto prazo nos mercados financeiros de certo modo submetidos a desintoxicação. Esta mudança na política monetária, do modo "sensato" do Dr. Jekyll de combater a inflação para o modo "selvagem" do Mr. Hyde de atirar dinheiro para aqui e para ali, pode ser muito bem ilustrada pelo surto de crise da primavera de 2023 mencionado no início.32 A Reserva Federal reduziu os seus activos totais de cerca de 8,9 biliões de dólares em abril de 2022 para cerca de 8,38 biliões em fevereiro de 2023. Quando esta retirada de liquidez desencadeou o terramoto bancário em março de 2023, os activos totais da Reserva Federal dispararam para 8,73 biliões (a política monetária do Mr. Hyde seguiu o lema "whatever it takes"). A estabilização foi bem sucedida – pelo menos temporariamente – e entretanto o total do balanço da Fed desceu gradualmente para 8,12 biliões de dólares.

 

Assim, após algumas semanas de gigantesca expansão monetária, a Fed regressou a uma política monetária restritiva, de certo modo ao modo do Dr. Jekyll. E não se trata de uma anomalia puramente americana. A redução do total do balanço interrompida por episódios de política monetária expansionista também tem vindo a ocorrer desde 2022 no BCE e, em menor grau, no banco central do Japão,33 de modo que o balanço total dos três bancos centrais encolheu de cerca de 25 biliões de dólares no final de 2021 para cerca de 21 biliões em agosto de 2023. Este cálculo parece assim estar a funcionar – desde que a esfera financeira não seja abalada por outro surto de crise, o que mais uma vez tornaria necessária uma enchente de dinheiro.

 

Perspectivas: Fim da bolha de liquidez e estagflação permanente

 

O terramoto bancário de março de 2023 marca assim um ponto de viragem decisivo no desenrolar histórico da crise, uma vez que a esfera financeira já não se encontra na bolha de liquidez que surgiu após o colapso do Lehman Brothers no decurso do combate à crise a partir de 2009. Desde 2009, a esfera financeira tem estado dependente dos programas de compra dos bancos centrais, o que também pode ser verificado empiricamente. Desde 2009, tem havido uma clara correlação entre a subida do amplo índice de acções S&P 500 dos EUA e os totais dos balanços dos bancos centrais.34 O boom das acções, como parte da bolha de liquidez, foi alimentado pela impressão de dinheiro dos bancos centrais numa longa fase de ascensão até ao desacoplamento na primavera de 2023: Os balanços dos bancos centrais estão a encolher, enquanto os mercados accionistas vivem uma fase de recuperação após as quedas em 2022, quando o fim desta política monetária expansionista abalou a esfera financeira.

 

O que está a impulsionar os mercados de acções? Um olhar sobre os ciclos especulativos passados pode fornecer pistas. Por um lado, o actual mercado em alta faz lembrar a bolha das "dot-com" no início do século XXI, quando a penetração da Internet foi acompanhada por esperanças de um novo regime de acumulação e por uma mania especulativa em acções de alta tecnologia que se desmoronou na segunda metade da década de 2000. Desta vez é a especulação sobre as descobertas no desenvolvimento da inteligência artificial que está a alimentar um boom bolsista semelhante.35 Além disso, as taxas de juro elevadas, à semelhança da fase de juros elevados do início da era neoliberal nos anos 80, têm um efeito totalmente ambivalente – especialmente nos EUA que, apesar de todos os processos de erosão, continuam a ser considerados um porto seguro para o capital em tempos de crise. As taxas de juro elevadas desestabilizam o sistema financeiro sobreendividado, mas também conduzem a entradas de capital, o que pode contrariar parcialmente esta situação. Isto é especialmente verdade para os EUA, que estão actualmente envolvidos numa luta hegemónica com a China pela posição do dólar como moeda mundial. O capital, estacionado em segurança no último surto de crise, está agora a tentar ganhar mais um dólar rápido no grande boom da IA – antes que esta bolha também rebente.

 

Consequentemente, este boom especulativo do mercado de acções não pode durar, a menos que seja apoiado por uma política monetária expansionista renovada, como nos 12 anos anteriores ao advento da inflação. O actual renascimento dos mercados bolsistas, que muitas vezes já atingiram os seus níveis pré-crise de finais de 2021, não pode ser sustentado sem medidas permanentes de apoio da política monetária. Também aqui pode ajudar um olhar para a história da grande bolha de liquidez, onde também houve fases em que os mercados de acções em expansão se desacoplaram do desenvolvimento por vezes estagnado dos balanços dos bancos centrais. Isto acontecia normalmente na véspera de um surto de crise, como em 2019, pouco antes de a pandemia fazer com que o sobreaquecido castelo de cartas financeiro global voltasse a entrar em modo de crise. O actual e fugaz boom do mercado bolsista também é isolado; já não faz parte – pelo menos na Europa – de uma bolha de liquidez geral, da chamada "everything bubble". Os mercados imobiliários na República Federal ou na Grã-Bretanha estão em crise,36 e mesmo nos EUA a estagnação do mercado de vivendas e apartamentos já não funciona como motor económico.37

 

O fim deste boom de curto prazo das acções provocará a habitual reacção de crise da política monetária acima descrita, que mais uma vez abrirá de par em par as comportas monetárias dos bancos centrais para evitar o colapso do sistema financeiro mundial. Desta contraditória compulsão da política de crise do capitalismo tardio38 resulta na tendência persistente para a estagflação, para a elevada desvalorização da moeda numa economia em estagnação.39 A estagflação tornar-se-á a "nova normalidade" do desenrolar da crise. Dependendo da crise em curso e do facto de se estar a imprimir dinheiro ou a apertar as taxas de juro, é provável que prevaleçam diferentes momentos de estagflação: estagnação em fases de política monetária restritiva, aceleração da inflação na sequência de medidas de crise expansivas da política monetária.

 

Proteccionismo e aumento das divergências económicas

 

Além disso, a nova fase de crise conduzirá a uma aceleração das divergências socioeconómicas também no interior dos centros ocidentais do sistema mundial, causada por um proteccionismo crescente. Os Estados Unidos estão a reabilitar a sua base industrial em detrimento dos seus concorrentes através de medidas proteccionistas, nomeadamente no âmbito dos seus pacotes de estímulo económico.40 Já não se trata apenas de tarifas aduaneiras punitivas. Em resposta à pandemia, Biden aprovou o Plano de Resgate Americano, um fogo de vista económico de 1,9 biliões de dólares. Seguiram-se 52,7 mil milhões de dólares em subsídios para a indústria de microchips (projeto de lei CHIPS) e, finalmente, a Lei de Redução da Inflação de 500 mil milhões de dólares, que prevê investimentos em infra-estruturas e "eco-indústrias" – e está salpicada de cláusulas "Buy American", como lamentou o FAZ.41 E provavelmente foram estas mesmas disposições a favor dos fabricantes americanos nos pacotes de estímulo que também levaram à duplicação do investimento industrial nos EUA desde 2021.42

 

O impulso para o capitalismo de Estado e para o proteccionismo em resposta a episódios de crise não é novo. A fase de crise actualmente em curso faz lembrar a década de 1930, quando o grande crash de 1929 desencadeou uma viragem para o dirigismo estatal, o proteccionismo e o nacionalismo em quase todos os países metropolitanos – com as conhecidas consequências económicas e políticas. Estas lições históricas, que ainda estavam presentes na reacção ao surto de crise de 2007/2008, foram agora esquecidas devido ao aumento das contradições sociais. A torre da dívida mundial organizada através de circuitos de défice está a desmoronar-se, o que intensificará a concorrência entre as "localizações". As medidas de estímulo e as políticas de investimento da administração Biden são parcialmente bem sucedidas precisamente porque têm a componente proteccionista deplorada pela UE – e porque esse proteccionismo ainda não foi generalizado.

 

A crescente divergência económica entre os reanimados EUA e a zona euro em declínio deve-se precisamente ao proteccionismo dos EUA acima descrito e aos esforços da administração Biden para reindustrializar, que estão a atingir de forma particularmente dura a economia alemã dependente das exportações. E que conduzirão necessariamente a uma reacção correspondente por parte da UE. O proteccionismo norte-americano pode conseguir, temporariamente, transferir as consequências da crise para a concorrência – até que esta siga o seu exemplo em termos de proteccionismo.

 

 

1 https://www.konicz.info/2023/03/19/die-silicon-valley-bank-als-das-schwaechste-glied/. Em português: http://www.obeco-online.org/tomasz_konicz36.htm

 

2 https://www.deraktionaer.de/artikel/fintech-versicherung-banken/jpmorgan-ceo-jamie-dimon-warnt-bankenkrise-noch-nicht-vorbei-20329741.html

 

3 https://finance.yahoo.com/news/billionaire-investor-leon-cooperman-says-174658759.html

 

4 https://www.tagesschau.de/wirtschaft/unternehmen/first-republic-100.html

 

5 https://finance.yahoo.com/news/jeremy-grantham-warns-everything-bubble-114500878.html

 

6 https://www.konicz.info/2019/01/28/die-urspruenge-der-krise/

 

7 https://www.untergrund-blättle.ch/politik/europa/telepolis-kritik-ukraine-politik-7014.html

 

8 Ver também: O Coeficiente de Estupidez da Esquerda. https://www.konicz.info/2020/12/09/der-linke-bloedheitskoeffizient/. Em português: https://www.konicz.info/2020/12/17/o-coeficiente-de-estupidez-da-esquerda/

 

9 https://www.konicz.info/2022/05/24/eine-neue-krisenqualitaet/. Em português: https://www.konicz.info/2022/06/07/a-nova-qualidade-da-crise/

 

10 https://www.manager-magazin.de/unternehmen/banken/bankenkrise-fed-gibt-ueber-notfallprogramme-derzeit-mehr-geld-aus-als-nach-lehman-pleite-a-ef292d06-47de-40eb-b8ee-e5ebb999d2db

 

11 https://www.manager-magazin.de/politik/europaeische-zentralbank-und-federal-reserve-drehen-geldhahn-noch-weiter-auf-a-0934cfea-a533-4a15-94af-cae56f563bcb

 

12 https://www.cnbc.com/2023/03/23/banks-ramp-up-use-of-new-fed-facility-created-in-crisis.html

 

13 https://www.brookings.edu/2023/03/22/what-did-the-fed-do-after-silicon-valley-bank-and-signature-bank-failed/

 

14 https://www.konicz.info/2023/03/19/die-silicon-valley-bank-als-das-schwaechste-glied/. Em português: http://www.obeco-online.org/tomasz_konicz36.htm

 

15 https://www.tagesschau.de/wirtschaft/weltwirtschaft/ezb-notenbanken-fed-liqiuiditaet-swap-dollar-euro-konzertierte-aktion-bankenkrise-ubs-credit-suisse-101.html

 

16 https://www.konicz.info/2007/03/05/vor-dem-tsunami/

 

17 https://www.manager-magazin.de/politik/europaeische-zentralbank-und-federal-reserve-drehen-geldhahn-noch-weiter-auf-a-0934cfea-a533-4a15-94af-cae56f563bcb

 

18 https://tradingeconomics.com/united-states/interest-rate

 

19 https://de.statista.com/statistik/daten/studie/201216/umfrage/ezb-zinssatz-fuer-das-hauptrefinanzierungsgeschaeft-seit-1999/

 

20 https://www.dw.com/en/ecb-raises-interest-rates-by-05-as-banks-stocks-wobble/a-65003987

 

21 https://www.cnbc.com/2023/03/22/fed-announces-interest-rate-hike-of-25-basis-points.html

 

22 https://www.tagesschau.de/wirtschaft/finanzen/ezb-leitzinserhoehung-102.html https://eu.usatoday.com/story/money/2023/05/03/fed-interest-rate-hike-live-updates/70170191007/

 

23 https://de.statista.com/statistik/daten/studie/201216/umfrage/ezb-zinssatz-fuer-das-hauptrefinanzierungsgeschaeft-seit-1999/

 

24 https://de.statista.com/statistik/daten/studie/419455/umfrage/leitzins-der-zentralbank-der-usa/

 

25 https://de.statista.com/statistik/daten/studie/72328/umfrage/entwicklung-der-jaehrlichen-inflationsrate-in-der-eurozone/

 

26 https://de.statista.com/statistik/daten/studie/191086/umfrage/monatliche-inflationsrate-in-den-usa/

 

27 https://www.yardeni.com/pub/balsheetwk.pdf

 

28 Yardeni Research, Inc: Central Banks:Fed, ECB & BOJ Weekly Balance Sheets, (Chart 1), https://www.yardeni.com/pub/balsheetwk.pdf

 

29 https://www.konicz.info/2021/08/08/dreierlei-inflation/. Em português: https://www.konicz.info/2021/08/11/tres-tipos-de-inflacao/

 

30 https://www.konicz.info/2021/08/08/dreierlei-inflation/. Em português: https://www.konicz.info/2021/08/11/tres-tipos-de-inflacao/

 

31 De certo modo, a redução dos balanços é "passiva": os bancos centrais limitam-se a comprar menos papel novo após o vencimento das obrigações nos seus balanços. Os bancos não movimentam activamente títulos da dívida pública ou títulos hipotecários para os mercados.

 

32 https://www.federalreserve.gov/monetarypolicy/bst_recenttrends.htm

 

33 Yardeni Research, Inc: Central Banks:Fed, ECB & BOJ Weekly Balance Sheets, (gráficos 2 e 3), https://www.yardeni.com/pub/balsheetwk.pdf

 

34 Yardeni Research, Inc.: Central Banks:Fed, ECB & BOJ Weekly Balance Sheets, (Charts 13, 14), https://www.yardeni.com/pub/balsheetwk.pdf

 

35 https://www.theguardian.com/technology/2023/jul/23/artificial-intelligence-boom-generates-optimism-in-tech-sector-as-stocks-soar

 

36 https://www.konicz.info/2023/08/26/nach-dem-boom-kommt-die-staatshilfe/. Em português: https://www.konicz.info/2023/08/27/depois-do-boom-vem-o-auxilio-do-estado/

 

37 https://think.ing.com/articles/us-housing-market-in-gridlock-with-risks-emerging

 

38 https://www.konicz.info/2011/08/15/politik-in-der-krisenfalle/.

 

39 https://www.konicz.info/2021/11/16/zurueck-zur-stagflation/. Em português: https://www.konicz.info/2021/11/18/de-volta-a-estagflacao/

 

40 https://www.konicz.info/2023/08/26/bidens-improvisierter-masterplan/. Em português:  https://www.konicz.info/2023/08/27/o-improvisado-masterplan-de-biden/

 

41 https://www.faz.net/aktuell/wirtschaft/mehr-wirtschaft/usa-wie-biden-und-trump-sich-beim-protektionismus-einig-sind-18813444.html

 

42 https://fred.stlouisfed.org/series/C307RC1Q027SBEA

 

43 https://www.konicz.info/2022/05/24/eine-neue-krisenqualitaet/ Em português: https://www.konicz.info/2022/06/07/a-nova-qualidade-da-crise/

 

 

Original “Geldpolitische Schizophrenie” in www.exit-online.org. Texto para o Netz-Telegramm de outubro.2023. Antes publicado em www.oekumenisches-netz.de. Tradução de Boaventura Antunes

 

 

http://www.obeco-online.org/

http://www.exit-online.org/