Inflação, crash financeiro ou recessão?
O que é que pode ser? Breve panorâmica das contradições da política de crise capitalista no exemplo dos Estados Unidos
Tomasz Konicz
É tempo de festa! A 3 de novembro as bolsas de valores dos Estados Unidos encerraram a melhor semana de negociações do ano em curso,1 após a publicação de números miseráveis do mercado de trabalho americano. Em outubro a economia americana criou apenas 150.000 novos postos de trabalho, contra 297.000 em setembro, o que fez com que a taxa de desemprego passasse de 3,8 para 3,9 por cento no mesmo período. Este abrandamento total equivale a uma redução para metade do crescimento do emprego, o que aponta para um abrandamento económico grave, talvez mesmo para uma recessão. Isto não é motivo para a festa que se pode ver na bolsa!
Esta reacção aparentemente absurda dos mercados financeiros, que festejam de facto o aumento da taxa de desemprego, tem certamente uma lógica de crise. Os mercados estão simplesmente a especular sobre o fim da política de elevadas taxas de juro dos bancos centrais para combater a inflação. A diminuição do número de postos de trabalho e o aumento do desemprego indicam que o aumento dos níveis salariais está a abrandar e que a procura dos consumidores está a enfraquecer, o que deverá reduzir mais a persistente inflação. O objectivo é evitar uma espiral inflacionista salários-preços, em que o aumento dos preços e dos salários se alimentariam mutuamente. Só se mais assalariados puderem pagar menos é que a onda de inflação pode ser contida – é esse o simples cálculo especulativo por detrás do fogo-de-artifício das cotações.
O trabalho da Fed será agora muito mais fácil, observou a Reuters,2 uma vez que o aumento de 4,1% dos salários também abrandou para o seu nível mais baixo desde junho de 2021. Isto tornaria improváveis novas subidas das taxas de juro, que estavam a ser discutidas (a Fed não quer falar de quaisquer cortes nas taxas por enquanto). E é precisamente sobre isto que os mercados financeiros especulam no seu mercado em alta no início de novembro de 2023. A subida das taxas de juro, o instrumento mais importante na luta contra a inflação, é também um veneno para o sector financeiro. Embora a política monetária restritiva dos bancos centrais tenha conseguido, pelo menos, travar a inflação, está também a pressionar a esfera financeira das sobreendividadas sociedades do centro do capitalismo tardio, cujos intervenientes no mercado especulam com, pelo menos, o fim da subida das taxas de juro.
A mesma política de crise utilizada para combater a inflação está assim a desestabilizar a esfera financeira. A dada altura "alguma coisa vai rebentar", como Mohamed El-Erian, economista-chefe da Allianz, descreveu no início de outubro o estado de ruptura da esfera financeira face à política de taxas de juro elevadas que os bancos centrais continuam a praticar.3 O relatório sobre o mercado de trabalho de setembro, com a criação de quase 300 mil postos de trabalho, é "uma boa notícia para a economia", mas é "uma má notícia para os mercados (financeiros) e para a Fed". Mas, poder-se-ia perguntar, o que é que pode "quebrar" exactamente na inflada superestrutura financeira das sociedades centrais sobreendividadas?
Um mercado obrigacionista instável
Trata-se, em primeiro lugar, dos mercados de obrigações – a base do sistema financeiro mundial4 – que estiveram no centro do último "terramoto financeiro", em março de 2023,5 quando vários bancos ficaram em dificuldades ou tiveram mesmo de ser liquidados, depois de a política de taxas de juro elevadas ter provocado uma queda do valor de mercado das obrigações do Estado. As obrigações dos Estados centrais, como a RFA ou os EUA, são detidas como garantia de baixo rendimento até ao seu vencimento ao par, mas o seu valor de mercado desce à medida que as taxas de juro sobem (uma vez que têm um rendimento mais baixo), o que pode colocar em dificuldades mesmo os grandes operadores do mercado, logo que tenham subitamente de vender obrigações. Foi o que aconteceu com o Silicon Valley Bank em março passado – foi obrigado a vender obrigações com urgência, o que levou à sua insolvência e desencadeou uma crise bancária.
Assim, as taxas de juro e o valor das obrigações têm um comportamento inversamente proporcional: quando as taxas de juro descem, os preços das obrigações sobem; quando as taxas de juro sobem, os preços das obrigações descem. A tensão e a pressão induzidas no sector financeiro pela luta contra a inflação e pelas taxas de juro directoras elevadas são, pois, visíveis na evolução das taxas de juro das obrigações do Estado americano. No início de outubro as obrigações americanas a dez anos atingiram uma taxa de juro de cinco por cento – o valor mais elevado desde a crise financeira global de 2007.6 O valor de mercado das obrigações de longo prazo caiu em média 46% desde o seu pico em 2020.7 E esta taxa de juro elevada das obrigações está a ter um efeito de arrastamento em toda a esfera financeira, bem como nas finanças públicas – já não se trata apenas de vendas de emergência por parte de bancos em dificuldades devido à queda do valor de mercado das obrigações.
Taxas de juro das obrigações e encargos orçamentais
As elevadas taxas de juro e a queda do valor de mercado das obrigações do Tesouro dos EUA ("Treasuries") não se devem apenas à luta dos bancos centrais contra a inflação, mas também ao próprio governo. De acordo com a Reuters, o aumento do endividamento do governo dos EUA está a levar a "um aumento das emissões de obrigações", o que também está a tornar mais dispendioso para o governo o serviço da sua dívida (o aumento da "oferta" de dívida pública só pode ser vendido a taxas de juro mais elevadas, quando é mais atractivo).8 Como resultado, Washington tem de gastar cada vez mais dinheiro no serviço da sua dívida. O aumento das taxas de juro custou aos contribuintes americanos 625 mil milhões de dólares nos primeiros nove meses deste ano,9 um aumento de 25% em comparação com o mesmo período do ano passado. Até ao final do ano, prevê-se que o serviço dos juros consuma mais de 800 mil milhões de dólares.10 Em comparação, a rubrica orçamental da defesa de Washington em 2022 ascendia a 877 mil milhões de dólares.11
Além disso, a Reserva Federal dos EUA está a reduzir o seu inflado balanço de 8,9 biliões de dólares no âmbito da sua luta contra a inflação, reduzindo drasticamente as compras de obrigações e títulos que eram habituais na era da bolha de liquidez,12 de modo a que as novas compras sejam inferiores ao valor dos títulos que se vencem.13 Esta impressão de dinheiro, que inflacionou o balanço da Fed de menos de um bilião em 2008 para quase nove biliões em 2022, está a ser frustrada pela inflação. Washington já não consegue simplesmente imprimir dinheiro fresco para manter baixo o custo da dívida nacional. O Financial Times fala de um "excesso de oferta" de obrigações do Estado,14 que está a acelerar a sua desvalorização.
Esfera financeira e taxas de juro directoras
As elevadas taxas de juro que os bancos centrais utilizam para combater a inflação estão a afectar toda a esfera financeira: por exemplo, o aquecido mercado imobiliário dos Estados Unidos, onde as taxas de juro hipotecárias subiram por vezes até 8%, o nível mais elevado dos últimos 20 anos.15 Há dois anos a taxa de juro média das hipotecas ainda rondava os três por cento.16 A explosão dos custos significa que cada vez menos assalariados podem pagar a casa própria, o que está a acelerar ainda mais a erosão social nos Estados Unidos (a casa própria é a segurança social central para a classe média nos EUA). Actualmente é necessário um rendimento médio anual de 115 000 USD para comprar uma casa, o que representa cerca de 40 000 USD a mais do que o salário médio.17 A proporção dos salários que os compradores de casa têm de pagar para financiar o seu empréstimo aumentou para 40%, em comparação com cerca de 25% nos últimos 35 anos. Esta situação não só bloqueia efetivamente a ascensão da classe média, como também aumenta rapidamente o perigo de uma nova crise imobiliária e de um colapso económico nos EUA, como já está a acontecer na Alemanha.18
Em todos os locais da superestrutura financeira onde se acumularam grandes responsabilidades algo está a ameaçar "quebrar". Por exemplo, a dívida dos cartões de crédito, que ultrapassará pela primeira vez a marca de um bilião de dólares em 2023, ou a dívida das empresas, da qual cerca de três biliões se vencerão nos próximos anos. O volume do mercado da dívida das empresas americanas com a mais alta notação de crédito é de 8,4 biliões – a taxa de juro subiu para mais de seis por cento, contra apenas dois por cento em 2020.19 Por fim, as taxas de juro elevadas desestabilizam também os mercados bolsistas, que continuarão a estar sujeitos a uma grande volatilidade (um bom relatório sobre o mercado de trabalho fez o Dow Jones cair 430 pontos no início de outubro),20 enquanto as taxas de juro das obrigações se mantiverem elevadas.21 A subida dos mercados mencionada no início deste artigo dificilmente poderá, portanto, ser sustentada a longo prazo. A era das bolhas duradouras nos mercados financeiros já terminou.
Uma descida das taxas de juro reduziria rapidamente esta pressão de crise que pesa sobre todo o sistema financeiro. O risco de uma "ruptura" imediata seria reduzido. Daí resulta a constelação aparentemente absurda em que os maus dados do mercado de trabalho, que poderiam indicar o fim da política de taxas de juro elevadas, são recebidos com boa vontade pelos mercados bolsistas. Por enquanto, a taxa de inflação efectiva não pode servir este objectivo. De facto, esta subiu ligeiramente nos últimos meses22 – e com 3,7% está ainda longe dos dois pontos percentuais visados pela política monetária. Depois de atingir um pico de 8,6% em maio de 2022, a Fed conseguiu baixar a inflação para 3% em junho de 2023, devido às elevadas taxas de juro e ao fim da sua impressão de dinheiro através da compra de obrigações, mas a inflação voltou a acelerar desde então. A inflação é essencialmente acelerada por factores externos,23 que resultam do limite ecológico do capital24 – e que estão simplesmente fora do controlo da Fed.
A iminência de uma recessão em caso de crise
Por conseguinte, a inflação só pode ser combatida através da redução do consumo, com o aumento do desemprego e a diminuição de facto dos salários (nos últimos meses, os salários reais aumentaram ligeiramente mais do que a inflação). No entanto, o júbilo dos mercados perante os fracos números do mercado de trabalho foi imediatamente misturado com cepticismo. O relatório desencadeou um "misto de preocupação e tranquilidade", titulava o New York Times (NYT), por exemplo, uma vez que as preocupações com um "sobreaquecimento" inflacionista da economia poderiam transformar-se em receio de uma recessão.25 De acordo com um inquérito recente a economistas citado pelo NYT, uma estreita maioria relativa de 49% dos inquiridos esperava uma "recessão nos próximos 12 meses", enquanto 42% acreditavam que ainda era possível uma "aterragem suave" da economia.
Os media chegaram mesmo a avisar que os mercados estariam literalmente a fazer um "rali para a recessão", uma vez que os indicadores fundamentais apontavam para uma contracção.26 Em primeiro lugar, o forte crescimento nos EUA (1,2% no terceiro trimestre de 2023 em comparação com o segundo trimestre) deve-se ao consumo privado, que é gerado pela redução das poupanças que foram constituídas durante a pandemia. Além disso, a outrora ampla classe média dos EUA derreteu-se de tal modo que já não é possível um longo boom de consumo financiado a crédito, como era comum na era da economia neoliberal das bolhas financeiras. De acordo com os dados mais recentes, cerca de 62% dos assalariados nos EUA "em boom" não estão em posição de acumular quaisquer reservas financeiras significativas.27 Vivem chapa ganha, chapa gasta. A famosa e ampla "classe média" nos EUA é, portanto, uma relíquia do passado.28 A isto acresce o aumento das despesas públicas nos últimos dois anos (que, como já foi referido, está agora a conduzir a uma pesada carga de juros no orçamento dos EUA).29
Os Estados Unidos, que – também devido a medidas proteccionistas – conseguiram apresentar o melhor desempenho económico de todos os países industrializados após o fim da pandemia, enfrentam, portanto, uma recessão a médio prazo. O medo da inflação e a ameaça de um colapso financeiro estão a transformar-se num medo da recessão, que também pode ter um efeito desestabilizador se for suficientemente profunda. Aqui se concretiza simplesmente a armadilha fundamental da crise30 em que se encontra a política económica do capitalismo tardio.31 Com o advento da inflação, já não é possível manter o capitalismo, que está a sufocar na sua produtividade, numa espécie de existência zombie,32 endividando-se no quadro da economia de bolhas impulsionada pelo mercado financeiro. Por conseguinte, os políticos só podem escolher o caminho da crise: Recessão, crash financeiro ou inflação? Mesmo nos Estados Unidos, que até agora conseguiram dissociar-se um pouco do desenvolvimento da crise na zona euro graças ao protecionismo da administração Biden,33 esta dinâmica de crise só pode ser adiada.
1 https://www.ft.com/content/52e76c22-3e0a-420b-8fdb-b5594d74cba8
2 https://finance.yahoo.com/news/traders-see-fading-chances-fed-124624382.html
3 https://fortune.com/2023/10/06/strong-jobs-data-good-news-for-economy-bad-news-for-markets-el-erian/
4 https://www.konicz.info/2022/07/22/schuldenberge-in-bewegung/. Em Português: https://www.konicz.info/2022/07/24/montanhas-de-dividas-em-movimento/
5 https://www.konicz.info/2023/03/19/die-silicon-valley-bank-als-das-schwaechste-glied/. Em Português: http://obeco-online.org/tomasz_konicz36.htm
6 https://finance.yahoo.com/news/u-10-treasury-yields-hits-220507474.html
7 https://www.thestreet.com/investing/stocks/bond-market-meltdown-whats-happening-what-it-means-and-why-you-should-care
8 https://finance.yahoo.com/news/u-10-treasury-yields-hits-220507474.html
9 https://www.bloomberg.com/news/articles/2023-07-13/us-racks-up-652-billion-in-interest-costs-as-higher-rates-bite
10 https://www.axios.com/2023/10/16/interest-rates-federal-debt
11 https://www.statista.com/statistics/262742/countries-with-the-highest-military-spending/#:~:text=The%20United%20States%20led%20the,to%202.2%20trillion%20U.S.%20dollars.
12 https://www.konicz.info/2021/04/13/oekonomie-im-zuckerrausch-weltfinanzsystem-in-einer-gigantischen-liquiditaetsblase/. Em Português: https://www.konicz.info/2021/04/14/economia-intoxicada-com-estimulos-sistema-financeiro-mundial-numa-gigantesca-bolha-de-liquidez/
13 https://www.federalreserve.gov/monetarypolicy/bst_recenttrends.htm
14 https://www.ft.com/content/7dada684-a6cd-413b-9adb-477b34a7a9f6
15 https://fortune.com/2023/09/29/mortgage-rates-two-decade-high-housing-market-home-sales-drag/
16 https://edition.cnn.com/2023/11/07/investing/home-prices-affordability/index.html
17 https://fortune.com/2023/10/18/how-bad-housing-market-affordability-redfin-115000-salary/
18 https://finance.yahoo.com/news/wave-cancellations-german-housing-construction-073436367.html
19 https://www.ft.com/content/eca88341-4d17-4147-94c5-19d9bc873937
20 https://finance.yahoo.com/news/dow-plunges-430-points-yields-041424884.html
21 https://finance.yahoo.com/news/stocks-wont-have-sustainable-rally-until-bond-yield-hits-pre-financial-crisis-level-183141192.html
22 https://www.statista.com/statistics/273418/unadjusted-monthly-inflation-rate-in-the-us/
23 https://www.konicz.info/2021/08/08/dreierlei-inflation/. Em Português: https://www.konicz.info/2021/08/11/tres-tipos-de-inflacao/
24 https://www.mandelbaum.at/buecher/tomasz-konicz/klimakiller-kapital/
25 https://www.nytimes.com/2023/11/03/business/economy/jobs-report-october-2023.html
26 https://realmoney.thestreet.com/stocks/we-re-rallying-right-into-a-recession-16137281
27 https://www.cnbc.com/2023/10/31/62percent-of-americans-still-live-paycheck-to-paycheck-amid-inflation.html
28 https://www.cnbc.com/2023/01/18/amid-inflation-more-middle-class-americans-struggle-to-make-ends-meet.html
29 https://thenextrecession.wordpress.com/2023/10/27/us-economy-expanding/https://thenextrecession.wordpress.com/2023/10/27/us-economy-expanding/
30 https://www.konicz.info/2011/08/15/politik-in-der-krisenfalle/
31 https://www.konicz.info/2022/12/09/geldpolitik-vor-dem-bankrott/. Em Português: https://www.konicz.info/2022/12/16/politica-monetaria-a-beira-da-bancarrota/
32 https://www.konicz.info/2017/08/07/wir-sind-zombie/. Em Português:
33 https://www.konicz.info/2023/08/26/bidens-improvisierter-masterplan/. Em Português: https://www.konicz.info/2023/08/27/o-improvisado-masterplan-de-biden/
Original “Inflation, Finanzkrach oder Rezession?” in www.exit-online.org. Antes publicado em konicz.info, 10.11.2023. Tradução de Boaventura Antunes