Desacoplamento transatlântico?

 

Como é que os Estados Unidos estão a conseguir ultrapassar economicamente a zona euro? E será que esta tendência vai durar?

 

Tomasz Konicz

 

Os Estados Unidos parecem estar a ultrapassar a zona euro do ponto de vista económico. Nas últimas semanas, as principais publicações de negócios dos Estados Unidos e do Reino Unido, o Wall Street Journal (WSJ)1 e o Financial Times (FT),2 centraram-se no crescente fosso económico entre as economias ocidentais, que deverá aumentar no próximo ano de acordo com as últimas previsões do Fundo Monetário Internacional (FMI). Segundo o FMI o produto interno bruto (PIB) dos EUA crescerá 1,5% em 2024, ao passo que na zona euro se prevê um crescimento de apenas 1,2%.

 

Claro que estes artigos são acompanhados dos habituais conselhos ocos ("demasiado Estado social", "impostos muito elevados", "pouco trabalho") e de tons maliciosos, de que o semanário Die Zeit, por exemplo, se queixou na sua edição online.3 No entanto, foi precisamente este discurso rancoroso que a opinião publicada da República Federal da Alemanha cultivou em relação ao Sul da Europa há apenas alguns anos, no auge da crise do euro – nomeadamente no próprio Die Zeit.4

 

Mas como é que o fosso económico aumenta? O simples facto de a zona euro não ser a zona monetária de um único Estado deve ser tido em conta. Desde a eclosão da crise, em 2008, a zona euro tem-se caracterizado por disputas nacionais ferozes e desequilíbrios socioeconómicos crescentes, com o centro alemão a transferir unilateralmente as consequências da crise do euro para a periferia sul, os chamados "países da dívida", sob a forma do ditame de austeridade Schäubler,5 enquanto a República Federal da Alemanha viveu um longo boom económico impulsionado pelas exportações.6 Washington pôde assim formular uma política de crise mais ou menos coerente, enquanto em Bruxelas todas as medidas de crise foram sempre também a expressão das lutas de poder intergovernamentais na zona euro.

 

O fosso está a aumentar

 

No entanto, se as previsões económicas para 2024 se revelarem correctas, manter-se-á uma tendência económica a longo prazo, uma vez que os Estados Unidos ultrapassaram simplesmente os europeus em termos de crescimento económico nos últimos 15 anos – mesmo que a diferença entre a Alemanha e os Estados Unidos seja muito menor do que entre a Grécia ou a Itália e os Estados Unidos. De acordo com o WSJ, que se baseia em dados do FMI, a economia europeia – medida na principal moeda do mundo, o dólar americano – cresceu apenas 6% nos últimos 15 anos, em comparação com cerca de 82% nos EUA. O produto interno bruto, que totalizava cerca de 14 biliões de dólares tanto nos EUA como na UE em 2008, ascende agora a mais de 26 biliões nos Estados Unidos, em comparação com apenas 15 biliões na Europa.

 

Esta divergência económica entre a UE e os EUA é também evidente em termos de consumo e de salários – sendo também uma consequência tardia do sadismo da austeridade celebrado na Alemanha,7 imposta por Berlim8 à periferia sul da zona euro altamente endividada durante a crise do euro. Há quinze anos, nas vésperas da bolha imobiliária transatlântica,9 tanto os EUA como a UE representavam cada um cerca de um quarto das despesas de consumo a nível mundial; actualmente os EUA representam 28% e a UE apenas 18%. Os salários reais, ajustados à inflação, aumentaram seis por cento a oeste do Atlântico desde 2019, enquanto diminuíram em quase todos os países da UE: três por cento na Alemanha, 3,5 por cento em Itália, seis por cento na Grécia.

 

No entanto, este aumento do fosso económico já não conduz a um aumento do nível de vida da maioria dos assalariados – nos EUA, o desacoplamento entre o desenvolvimento económico oficialmente registado e a realidade social simplesmente avançou muito mais do que na UE. A situação social tensa dos trabalhadores assalariados nos Estados Unidos reflecte-se, por exemplo, na esperança média de vida,10 que desceu para 73 anos para os homens e 79 anos para as mulheres.11 Na Europa, os homens podem esperar uma média de vida de 79 anos e as mulheres de 84 anos – tendo a diferença aumentado nos últimos anos. O facto de quase dois terços dos cidadãos norte-americanos não poderem agora constituir quaisquer reservas financeiras significativas e terem de esperar pelo ordenado todos os meses12 – numa altura em que os salários ajustados à inflação nos EUA supostamente aumentaram seis por cento – dá uma ideia das distorções e do branqueamento necessários para calcular a taxa de inflação oficial.

 

Vantagem dos EUA: Ucrânia? Fontes de energia? Proteccionismo?

 

Em suma, pode afirmar-se que o desacoplamento económico entre os Estados Unidos e a zona euro está muito avançado, ainda que os assalariados a oeste do Atlântico pouco beneficiem com isso. Para além da ideologia puramente neoliberal, que culpa o Estado social, os impostos ou os sindicatos pela estagnação económica da Europa, o Wall Street Journal e o Financial Times citam também nos seus artigos causas muito reais para o crescente fosso transatlântico. Entre outras coisas, citam o aumento das despesas económicas de Washington após a eclosão da pandemia e o sector americano de alta tecnologia, sem equivalente na Europa, que está a ficar para trás em termos tecnológicos.

 

Mas actualmente é a guerra na Ucrânia que está a afectar muito mais a Europa do que os EUA. A economia europeia está a sofrer muito mais com os elevados preços da energia do que os seus concorrentes americanos, que podem recorrer a combustíveis fósseis baratos obtidos através do ecologicamente desastroso fracking13 – que fez dos EUA um dos maiores exportadores de energia do mundo.14 Esta diferença reflecte-se em termos concretos nos números da inflação, que são consistentemente mais baixos nos Estados Unidos15 do que na zona euro.16 A invasão russa da Ucrânia também cimentou o papel dos EUA como "porto seguro" para o capital em tempos de crise, especialmente porque a UE não tem, de facto, capacidade militar suficiente para conduzir tais conflitos imperialistas por si só (o que desencadeou a frenética corrida armamentista na Europa).

 

Ambas as revistas económicas sublinham também que a orientação exportadora da UE e da RFA se tornou uma das principais desvantagens da Europa. Até há alguns anos, a Europa e a Alemanha eram as "grandes vencedoras da globalização", segundo o FT, mas "este tipo de globalização" pertence agora ao passado. O WSJ salientou que, com o "arrefecimento do comércio mundial", a "formidável indústria de exportação" da Europa também se encontra num impasse. A "dependência das exportações" da Europa está a transformar-se de força em "fraqueza", uma vez que cerca de 50% do PIB da UE é gerado pelas exportações, em comparação com apenas 10% nos EUA. O crescente protecionismo causado pela crise está assim a colocar as economias e as zonas económicas orientadas para a exportação numa situação de grande desvantagem.

 

Antecedentes da crise: a erosão iminente dos circuitos de défice globais

 

Com a erosão da globalização, a estratégia económica a longo prazo de orientação estrita para a exportação, seguida pela Alemanha desde a introdução do euro, cujo "modelo de negócio" económico se baseia na obtenção dos mais elevados excedentes comerciais possíveis, também está a falhar. Com esta política dita de "empobrecer o vizinho",17 a dívida, a desindustrialização e o desemprego são exportados para os países-alvo dos excedentes de exportação. Iniciada pela Agenda 2010 e pelas repressivas leis laborais Hartz IV,18 que reduziram maciçamente os custos unitários do trabalho na RFA, a Alemanha, até à eclosão da crise do euro,19 conseguiu alcançar excedentes comerciais extremos20 com a zona euro, o que contribuiu significativamente para a criação de défices e para a eclosão dessa crise da dívida europeia. Depois de Berlim ter arruinado os Estados europeus em crise através de políticas de austeridade draconianas,21 esta estratégia de exportação foi direccionada para países não europeus.22

 

Consequentemente, após a crise do euro a zona euro gerou excedentes igualmente elevados em relação a países não europeus, tal como a Alemanha tinha feito anteriormente em relação à zona monetária europeia. Isto pode ser visto claramente na balança comercial entre os EUA e a UE, a quem Schäuble impôs uma dieta de austeridade.23 O défice comercial dos EUA aumentou de cerca de 58 mil milhões de dólares em 2000, para pouco menos de 100 mil milhões de dólares em 2011 e para 218 mil milhões de dólares em 2021 (cerca de um terço do défice comercial dos EUA em 2021 foi contabilizado pela Alemanha).24 Mas em 2022 os excedentes europeus baixaram para cerca de 202 mil milhões, devido ao aumento das medidas proteccionistas nos Estados Unidos. O mesmo Financial Times, que recentemente pintou um quadro de declínio económico da Europa, descreveu esta mudança na estratégia de política económica de Washington em meados de 2023,25 que foi iniciada pela administração Trump e promovida por Biden. Na sua essência trata-se de uma proteccionista rejeição da globalização. Através de uma "política externa para a classe média", a Casa Branca pretendia contrariar o "esvaziamento da base industrial", a emergência de "rivais geopolíticos" e a crescente "desigualdade" que põe em causa a democracia.

 

Uma expressão visível do pleno início da desglobalização é o chamado nearshoring [deslocalização próxima], com que os Estados Unidos se esforçam por substituir a sua dependência económica da indústria exportadora chinesa pelo reforço das capacidades industriais no México.26 No entanto, o protecionismo de Washington com vista à reindustrialização não se dirige apenas contra o "rival geopolítico" China, mas também contra a Europa "alemã" – por exemplo, sob a forma das cláusulas Buy American dos pacotes de estímulo económico de Washington27 e da ameaça contínua de guerras comerciais transatlânticas. Em meados de outubro, a UE e os EUA não conseguiram chegar a um compromisso nas conversações comerciais que impedisse o recomeço de direitos aduaneiros punitivos sobre o aço e o alumínio provenientes da Europa no início de 2024.28 Além disso, os fornecedores alemães de automóveis continuam ameaçados de exclusão das cadeias de produção dos EUA devido às disposições do programa de subsídios da Lei de Redução da Inflação dos EUA. É igualmente improvável uma concessão substancial por parte de Washington, uma vez que o protecionismo parece estar a funcionar. As empresas alemãs investem cada vez mais nos Estados Unidos para beneficiar dos subsídios de Washington.29 O investimento privado anual nos Estados Unidos explodiu de facto: de cerca de 75 mil milhões de dólares no final de 2020 para 204 mil milhões de dólares no terceiro trimestre de 2023.

 

Berlim passou o século XXI a orientar a República Federal30 – e, a partir de 2010, na sequência da crise do euro, a zona euro – para um modelo económico assente na exportação e destinado a obter excedentes comerciais na economia mundial globalizada da era neoliberal. Com a desglobalização em pleno andamento, o antigo campeão mundial dos excedentes de exportação encontra-se num impasse de política económica que põe em causa não só a estabilidade económica da Alemanha a médio prazo, mas também a sobrevivência política da zona euro. O pano de fundo da crise sistémica31 desta nova fase de crise caracterizada pelo protecionismo é a crescente erosão dos circuitos de défice globais,32 que marcaram a globalização neoliberal com as suas montanhas de dívida em permanente crescimento. O aumento global da dívida,33 que ultrapassou o aumento da produção económica global, não foi uniforme, tendo antes conduzido a desequilíbrios nas balanças comerciais. As economias orientadas para a exportação, como a China e a República Federal da Alemanha, registaram elevados excedentes comerciais em comparação com os países deficitários que tiveram de contrair dívidas. E os Estados Unidos tinham, de longe, o maior défice comercial,34 que passou de cerca de 328 mil milhões de dólares no final do século XX para 816 mil milhões de dólares em 2008, no início da crise imobiliária, e para 1,17 biliões de dólares em 2022.

 

Os Estados Unidos assemelham-se assim a um buraco negro numa economia global sufocada pela sua própria produtividade,35 onde os países industrializados orientados para a exportação podem vender os seus excedentes de produção. É por isso que o consumo desempenha um papel central nos EUA. Isto só é possível porque o dólar actua como moeda de reserva mundial e os mesmos países que têm excedentes comerciais com os EUA também financiam a criação do seu défice através da compra de obrigações americanas – a China, que tem enormes excedentes comerciais, continua a ser um dos mais importantes credores estrangeiros de Washington. Este é precisamente o cerne dos circuitos de défice que se estabeleceram sob o neoliberalismo e que são expressão da compulsão da dívida induzida pela crise36 do sistema global: O capitalismo hiperprodutivo funciona a crédito, com os Estados Unidos a registarem défices comerciais cada vez maiores, sendo os "títulos financeiros" "exportados" no sentido inverso dos Estados Unidos, onde o sector financeiro ganhou peso, formando constantemente novas bolhas especulativas. Vários factores puseram fim a este absurdo prolongamento neoliberal da crise: as crises financeiras crescentes – sobretudo a crise imobiliária de 2008 –, as consequências sociais da desindustrialização, incluindo a formação dos cinturões de ferrugem, a ascensão de populistas de direita como Trump e, por fim, a inflação que se instalou com a pandemia e a guerra na Ucrânia,37 tornando indispensável uma viragem nas taxas de juro.38

 

Redimensionamento da zona de luta

 

Washington já não está assim preparada para aceitar os défices comerciais extremos dos EUA, pois os custos consequentes – políticos, sociais, económicos – são demasiado elevados. A administração Biden está efectivamente apenas a continuar a política protecionista de Trump. No entanto, com esta viragem global para uma nova fase de crise iniciada pelos EUA, a concorrência entre Estados também está a mudar – as vantagens que os locais orientados para a exportação, como a Alemanha, tinham estão a transformar-se em desvantagens na era da desglobalização e do protecionismo. A longa queda do euro,39 que perdeu cerca de 50% do seu valor face ao dólar desde o seu máximo histórico em 2008, impulsionou as exportações alemãs devido à sua subvalorização estrutural, enquanto as rotas comerciais se mantiveram abertas. Mas agora que as barreiras comerciais estão a aumentar, uma moeda fraca está simplesmente a importar inflação.

 

Os EUA parecem ter todas as vantagens do seu lado para empurrar a UE para uma posição periférica económica e politicamente, como o think tank europeu European Council on Foreign Relations alertou recentemente em termos drásticos.40 Os países com défices comerciais têm a vantagem estratégica em guerras comerciais sérias, com que os seus défices tendem a ser reduzidos, enquanto as áreas económicas com excedentes de exportação, como a Alemanha ou a UE, só podem perder em tais disputas. Além disso, a desglobalização não se caracteriza apenas por um rápido aumento das barreiras comerciais (o FT contabilizou 801 novas medidas proteccionistas a nível mundial em 2022, em comparação com apenas 210 em 2017),41 mas também pelo aumento dos estrangulamentos e das barreiras à importação de matérias-primas e de recursos importantes de que muitas das novas indústrias necessitam. Os EUA têm a vantagem estratégica sobre a UE da sua máquina militar, que podem utilizar para intervir, se necessário, para garantir o fornecimento das matérias-primas necessárias. Este é um factor importante para o capital quando decide onde se instalar. E, por último, é o dólar que permite a Washington contrair empréstimos na moeda de reserva mundial.

 

Ao mesmo tempo, porém, está a abrir-se uma nova zona de luta económica, estreitamente ligada aos esforços proteccionistas de reindustrialização dos Estados Unidos: o maravilhoso mundo dos mercados de obrigações.42 As taxas de juro das obrigações americanas, conhecidas como Treasuries, dispararam com a reviravolta das taxas de juro dos bancos centrais, o que significa que o orçamento dos Estados Unidos poderá ser sobrecarregado com custos de juros explosivos de 660 a 800 mil milhões de dólares em 2023. Num período em que Washington está a avançar com a reindustrialização dos Estados Unidos através de programas de estímulo económico financiados a crédito, os custos dos empréstimos que o orçamento dos Estados Unidos enfrenta estão a aumentar.43 O método habitual de manter as taxas de juro baixas apesar do enorme endividamento do Estado é actualmente inacessível: a Reserva Federal não pode comprar títulos do Tesouro, como fez nos anos anteriores, pois isso prejudicaria a luta contra a inflação – quando os bancos centrais compram dívida pública, estão efetivamente a imprimir dinheiro. Além disso os bancos centrais detêm biliões de títulos do Estado nos seus balanços, que foram comprados com dinheiro recém-impresso durante o período da "flexibilização quantitativa".44 E no próximo ano Washington terá de pagar o serviço da dívida num total de cerca de 7,6 biliões de dólares, o que aumentará ainda mais a pressão sobre o mercado obrigacionista (as cotações das obrigações caem à medida que as taxas de juro sobem).

 

A queda das cotações das obrigações americanas com a subida das taxas de juro não só desestabiliza o sector financeiro, como aconteceu recentemente durante a crise bancária da primavera de 2023,45 como também põe em causa o papel estratégico dos títulos do Tesouro no sistema financeiro mundial, como observou o Financial Times (FT) em outubro de 2023.46 As obrigações dos EUA é suposto formarem a espinha dorsal estável do sistema financeiro mundial; são detidas por investidores estratégicos (fundos de pensões, companhias de seguros, etc.) que têm alcançar um retorno seguro, embora baixo. A volatilidade constante do mercado obrigacionista, as grandes flutuações do valor dos títulos do Tesouro, põem em causa esta função de âncora das obrigações americanas; dificilmente podem funcionar como um "porto seguro" na esfera financeira. Em novembro de 2023, o FT alertava para o facto de a "oferta" de títulos do Tesouro ter ultrapassado há muito a procura do mercado, uma vez que os bancos centrais tiveram de interromper os seus programas de compra para combater a inflação.47 Os analistas avisavam o jornal económico de que o "quadro fiscal" de Washington não podia ser mantido desta forma.

 

A Fed teve efetivamente de desempenhar um papel central como compradora de obrigações nos últimos anos, uma vez que o mais importante comprador estrangeiro de obrigações dos EUA no século XXI, a República Popular da China, está a reduzir rapidamente o seu stock de Treasuries. Em 2013, a China detinha cerca de 1,5 biliões de dólares em obrigações dos EUA; em janeiro de 2023, este valor tinha caído para apenas 859 mil milhões de dólares.48 A retirada da China das obrigações dos EUA não pôde ser compensada por outros compradores estrangeiros, como o Reino Unido, especialmente porque a montanha de dívida dos EUA está a crescer rapidamente. Em 2016, um ano antes da tomada de posse de Donald Trump, quase 45% de todas as obrigações dos EUA eram detidas por investidores estrangeiros. No segundo trimestre de 2023, no entanto, este valor era inferior a 30%.49 Esta retirada dos investidores estrangeiros do mercado obrigacionista dos EUA, que realmente acelerou na era Trump, é de facto uma consequência dos esforços de reindustrialização protecionista de Washington. Isto só pode ser entendido no contexto dos circuitos do défice acima mencionados. O acordo implícito subjacente aos circuitos do défice era que os excedentes de exportação alcançados pela China nos EUA, por exemplo, seriam financiados pela compra de dívida dos EUA. Assim que Washington cancela unilateralmente este acordo através do proteccionismo, desaparece também o incentivo tangível e material para Pequim continuar a investir o capital gerado pelas receitas de exportação em obrigações dos EUA.

 

A abolição unilateral dos circuitos do défice por parte de Washington, que visava a reindustrialização do país, conduz, assim, à desestabilização da montanha de dívidas em constante crescimento dos Estados Unidos. A vantagem económica sobre a zona euro, que as revistas de negócios americanas gostam de sublinhar, é assim acompanhada de riscos financeiros crescentes, que as revistas de negócios alemãs gostam, por sua vez, de assinalar – com o rancor caraterístico do jornalismo de negócios burguês dos dois lados do Atlântico.50 Actualmente, Washington só pode esperar que a inflação nos Estados Unidos diminua mais rapidamente do que na zona euro, para poder retomar a prática da "flexibilização quantitativa" da Fed (até que esta volte a alimentar a inflação). Caso contrário, a política económica activa teria de ser interrompida, o que só mostra a fragilidade da retoma económica nos Estados Unidos.51

 

Em última análise, estas disputas de política económica estão apenas a executar a dinâmica objectiva da crise num sistema mundial capitalista tardio que sofre de uma crise estrutural de sobreprodução. O processo de crise que se arrasta há décadas e que, desde os anos 80, tem vindo a devorar por fases a periferia, passando pela semiperiferia, até aos centros, já atingiu completamente estes últimos. Como resultado, a aliança transatlântica está num estado de pura concorrência de crise: quem será deixado para trás quando a próxima crise chegar? Os EUA, a China ou a Europa? As lutas comerciais e de política económica funcionam, assim, como executoras da crise.

 

 

1 https://www.wsj.com/articles/europeans-poorer-inflation-economy-255eb629

 

2 https://www.ft.com/content/e0177eb7-8d17-48aa-a6ad-fccd0655f557

 

3 https://www.zeit.de/wirtschaft/2023-07/usa-europa-wirtschaftswachstum-wohlstand-lebensstandard-lebenserwartung

 

4 https://www.zeit.de/2015/29/europaeische-union-krise-veraenderung-bruessel

 

5 https://www.konicz.info/2018/08/20/griechenland-zu-tode-gespart/

 

6 https://unrast-verlag.de/produkt/aufstieg-und-zerfall-des-deutschen-europa/

 

7 https://www.konicz.info/2016/10/25/der-paneuropaeische-haushaltsdiktator/

 

8 https://www.nd-aktuell.de/artikel/976285.suedeuropa-wird-lateinamerikanisiert.html

 

9 https://www.konicz.info/2007/03/05/vor-dem-tsunami/

 

10 https://www.zeit.de/wirtschaft/2023-07/usa-europa-wirtschaftswachstum-wohlstand-lebensstandard-lebenserwartung/seite-2

 

11 O colapso do capitalismo de Estado de tipo soviético no chamado "Bloco de Leste" foi acompanhado por um colapso semelhante, por vezes mais drástico, da esperança média de vida.

 

12 https://www.cnbc.com/2023/10/31/62percent-of-americans-still-live-paycheck-to-paycheck-amid-inflation.html

 

13 https://www.nytimes.com/interactive/2023/09/25/climate/fracking-oil-gas-wells-water.html

 

14 https://www.tagesschau.de/ausland/amerika/fracking-colorado-101.html

 

15 https://www.statista.com/statistics/273418/unadjusted-monthly-inflation-rate-in-the-us/

 

16 https://www.statista.com/statistics/265843/monthly-inflation-rate-in-the-euro-area/

 

17 https://de.wikipedia.org/wiki/Beggar-thy-Neighbor-Politik

 

18 https://www.konicz.info/2013/03/15/happy-birthday-schweinesystem/

 

19 https://www.konicz.info/2010/05/04/krisenmythos-griechenland/

 

20 https://www.konicz.info/2012/12/21/der-exportuberschussweltmeister/

 

21 https://www.konicz.info/2018/08/20/griechenland-zu-tode-gespart/

 

22 https://www.konicz.info/2015/04/18/die-deutsche-exportdampfwalze/

 

23 https://www.census.gov/foreign-trade/balance/c0003.html

 

24 https://www.census.gov/foreign-trade/balance/c4280.html

 

25 https://www.ft.com/content/77faa249-0f88-4700-95d2-ecd7e9e745f9

 

26 https://www.konicz.info/2023/11/20/neue-kapitalistische-naehe-2-0/. Trad. port.: https://www.konicz.info/2023/11/16/a-nova-proximidade-capitalista/

 

27 https://www.konicz.info/2023/08/26/bidens-improvisierter-masterplan/. Trad. port.: https://www.konicz.info/2023/08/27/o-improvisado-masterplan-de-biden/

 

28 https://www.manager-magazin.de/politik/weltwirtschaft/eu-usa-gipfel-europaeische-wirtschaft-enttaeuscht-a-280ff7dc-d173-425a-a8c9-f6a204cacccb

 

29 https://www.tagesschau.de/wirtschaft/weltwirtschaft/us-subventionen-deutsche-konzerne-investitionen-101.html

 

30 https://www.konicz.info/2015/04/18/die-deutsche-exportdampfwalze/

 

31 Um breve esboço do processo de crise capitalista pode ser encontrado em: https://oxiblog.de/die-mythen-der-krise/ ou https://www.konicz.info/2011/12/23/die-krise-kurz-erklart/ Ver também: Robert Kurz, Schwarzbuch Kapitalismus, disponível em: https://www.exit-online.org/pdf/schwarzbuch.pdf e em Português http://obeco-online.org/o_livro_negro_do_capitalismo_robert_kurz.pdf; ou: Tomasz Konicz, Kapitalkollaps. Die Krise als historischer Prozess [O colapso do capital. A crise como processo histórico] (ainda disponível como ebook).

 

32 https://www.konicz.info/2022/05/24/eine-neue-krisenqualitaet/. Trad. port.: http://obeco-online.org/tomasz_konicz25.htm

 

33 https://www.imf.org/en/Blogs/Articles/2023/09/13/global-debt-is-returning-to-its-rising-trend

 

34 https://www.census.gov/foreign-trade/balance/c0004.html

 

35 https://www.telepolis.de/features/Die-Krise-kurz-erklaert-3392493.html?seite=all

 

36 https://oxiblog.de/die-mythen-der-krise/

 

37 https://www.konicz.info/2021/08/08/dreierlei-inflation/. Trad. port.: https://www.konicz.info/2021/08/11/tres-tipos-de-inflacao/

 

38 https://www.konicz.info/2023/11/12/inflation-finanzkrach-oder-rezession/. Trad. port.: http://obeco-online.org/tomasz_konicz42.htm

 

39 https://www.tagesschau.de/wirtschaft/boersenkurse/eu0009652759-25108390/

 

40 https://www.brusselstimes.com/622334/europe-is-becoming-a-us-vassal-leading-think-tank-warns

 

41 https://www.ft.com/content/3bd28362-c006-44c3-9f7f-a89a78452600

 

42 https://www.konicz.info/2022/07/22/schuldenberge-in-bewegung/. Trad. port.: http://obeco-online.org/tomasz_konicz27.htm

 

43 https://www.konicz.info/2023/11/12/inflation-finanzkrach-oder-rezession/. Trad. port.: http://obeco-online.org/tomasz_konicz42.htm

 

44 https://www.ft.com/content/98cfe9c2-d7de-4825-8d8c-508b309c142f

 

45 https://www.konicz.info/2023/03/19/die-silicon-valley-bank-als-das-schwaechste-glied/. Trad. port.: http://obeco-online.org/tomasz_konicz36.htm

 

46 https://www.ft.com/content/40d9f352-82ed-4e4d-a53b-5f9404613d4a

 

47 https://www.ft.com/content/7dada684-a6cd-413b-9adb-477b34a7a9f6

 

48 https://usafacts.org/articles/which-countries-own-the-most-us-debt/

 

49 Ver gráfico n.º 4 https://www.yardeni.com/pub/fofforholddebt.pdf

 

50 https://www.focus.de/finanzen/boerse/aktien/gastbeitrag-von-gabor-steingart-hier-zeigt-sich-die-verwundbarkeit-der-usa_id_247373167.html

 

51 https://www.konicz.info/2023/11/12/inflation-finanzkrach-oder-rezession/. Trad. port.: http://obeco-online.org/tomasz_konicz42.htm

 

 

Original “Transatlantische Entkopplung?” in www.exit-online.org. Antes publicado em konicz.info, 28.11.2023. Tradução de Boaventura Antunes

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