A crise para lá da bolha

 

A estagnação está para durar? Perspectivas da economia mundial após o fim da economia de bolhas financeiras globalizada

 

Tomasz Konicz

 

O ar da especulação está a sair lentamente da máquina da valorização global – mas ainda quase ninguém parece ter dado por isso. No início de 2024 o Banco Mundial alertou para uma "década perdida", uma vez que a primeira metade desta década estava prestes a apresentar o pior desempenho económico em mais de 30 anos.1 Sem uma "grande correcção de rumo", os anos 20 do século XXI ficarão na história como uma "década de oportunidades perdidas", concluiu o economista-chefe do Banco Mundial, Indermit Gill, ao apresentar as previsões para o ano em curso.

 

E, segundo a instituição financeira, as perspectivas económicas não são propriamente animadoras. A produção económica global deverá crescer 2,4 por cento este ano, contra 2,6 por cento em 2023. Se esta previsão económica se concretizar, 2024 será o terceiro ano consecutivo em que o crescimento económico será mais fraco do que no ano anterior. Está assim a emergir uma clara tendência global para a estagnação económica: O produto interno bruto dos países industrializados deverá cair, em média, de 1,5% no ano passado para 1,2% em 2024. A zona euro, por outro lado, pode esperar uma ligeira recuperação económica a um nível muito baixo: de 0,4% em 2023 para 0,7% no ano em curso.

 

Prevê-se também que o crescimento do comércio mundial atinja apenas metade do seu nível antes da pandemia, o que – juntamente com as elevadas taxas de juro – contribuiu para que a produção económica anual nos países em desenvolvimento atingisse uma média de apenas 3,9% nesta década. Este valor é inferior em um ponto percentual ao registado na primeira década do século XXI. Os países em desenvolvimento precisam de atingir uma taxa de crescimento muito mais elevada para melhorar – ou mesmo manter – a situação social dos trabalhadores assalariados. As perspectivas económicas a médio prazo não são melhores. Já em meados de 2023, o Fundo Monetário Internacional (FMI) alertava para o facto de os próximos cinco anos serem marcados por uma dinâmica de crescimento global abaixo da média.2

 

O fim da economia das bolhas

 

A estagnação induzida pela crise do sistema mundial capitalista tardio só se torna plenamente evidente numa perspectiva histórica. Como mencionado no início, apenas a meia década de 1990 a 1994 se caracterizou por um desenvolvimento económico ligeiramente pior (em média, pouco mais de dois por cento ao ano) do que a primeira metade da década actual. No entanto, o início da década de 1990 foi marcado pelo colapso da União Soviética e do capitalismo de Estado soviético na Europa de Leste, que foi acompanhado por enormes quedas económicas, conduzindo a médias globais miseráveis. Os episódios de crise que se iniciaram em 2020 (pandemia, guerra, estrangulamentos do aprovisionamento) deixaram, assim, marcas de abrandamento económico tão fortes como a implosão do Bloco de Leste.

 

Quase todos os outros períodos de cinco anos entre o final da década de 1990 e 2019 – as vésperas da pandemia e da guerra na Ucrânia – registaram um crescimento económico global médio muito mais elevado, de um pouco mais de três por cento. A única excepção foi o período entre 2005 e 2009, quando o rebentamento das bolhas imobiliárias nos EUA e na Europa (2007/08) levou a uma breve e grave crise económica mundial (2009), que foi ultrapassada a partir de 2010 graças a medidas abrangentes de estímulo económico e à política monetária expansionista dos bancos centrais.

 

Esta queda em 2009, desencadeada pelo rebentamento das bolhas imobiliárias, aponta para a verdadeira economia de bolhas que o sistema mundial globalizado desenvolveu na era neoliberal: desde a bolha dot-com na segunda metade da década de 1990, quando o boom da Internet levou a um boom das acções de alta tecnologia, passando pelas bolhas imobiliárias que rebentaram na Europa e nos EUA em 2008,3 até à grande bolha de liquidez sustentada pela política monetária expansiva dos bancos centrais e pela impressão de dinheiro que tem estado a esvaziar a partir de 2020.4

 

E foram precisamente estas bolhas especulativas em expansão que funcionaram como os mais importantes motores económicos na era da globalização impulsionada pelos mercados financeiros. A tendência para a estagnação nos anos 20, que o Banco Mundial lamenta, deve-se precisamente ao colapso desta economia global de bolhas baseada numa montanha de dívidas em constante crescimento. A inflação, que está a ser combatida pelos bancos centrais com uma política monetária restritiva, impossibilitou a formação de outra bolha após o surto de crise de 2020.

 

O travão da economia chinesa

 

A ligação entre a economia e a dinâmica especulativa, que caracteriza o capitalismo tardio sufocado pela sua produtividade,5 pode ser vista actualmente de forma muito clara no capitalismo de Estado chinês, onde o falido Grupo Evergrande, um dos maiores investidores na construção civil do país, enfrenta a liquidação – 300 mil milhões de dólares e milhões de condomínios estão a arder.6 A gigantesca bolha imobiliária7 que a China formou na sequência dos abrangentes pacotes de estímulo económico estatal após 2008 trouxe taxas de crescimento de dois dígitos à "oficina do mundo" durante anos.

 

Mas agora, apesar de todas as tácticas de adiamento de Pequim, o inevitável esvaziamento desta bolha imobiliária está iminente8 – e já está a deixar sinais claros de abrandamento económico. De acordo com o Banco Mundial, a economia chinesa só deverá crescer 4,4% este ano.9 Esta previsão baseia-se no melhor cenário possível, em que se possa evitar um crash incontrolável do mercado imobiliário.

 

No entanto, mesmo uma desvalorização e liquidação controladas do sobreaquecido sector imobiliário chinês resultarão em graves consequências económicas. Isto aplica-se não apenas à República Federal dependente das exportações, mas sobretudo a muitos países em desenvolvimento e emergentes em grande medida economicamente dependentes da República Popular.10 O boom especulativo financiado pela dívida da China foi um factor importante na recuperação económica após o grande crash imobiliário transatlântico de 2008, mas uma constelação semelhante já não é possível na actual fase de crise. Pelo contrário, a China contribuirá para a tendência geral de estagnação no futuro.

 

O próximo surto de crise já está a ser “apreçado”?

 

O alastramento da estagnação é o resultado da luta parcialmente bem sucedida contra a inflação por parte dos bancos centrais, que fecharam a torneira do dinheiro da grande bolha de liquidez, mas estão a manobrar para um impasse de política monetária, em que os objectivos de combate à inflação, estabilização dos mercados financeiros e promoção da economia estão cada vez mais em conflito.11 Isto é particularmente evidente nos EUA, que conseguiram desafiar a tendência geral de estagnação nos centros do sistema mundial com um crescimento económico de 2,5 por cento em 2023. No entanto, o Banco Mundial prevê um crescimento de apenas 1,6 por cento para os Estados Unidos este ano, o que se deve à "política monetária restritiva" da Reserva Federal americana, segundo a Reuters.12

 

A luta contra a inflação é normalmente comprada com um abrandamento económico, como mostra a análise e as perspectivas económicas globais do Banco Mundial (a excepção a esta regra foram os EUA em 2023). A isto somam-se as consequências desestabilizadoras da política de altas taxas de juro no domínio financeiro. As subidas das taxas de juro directoras e o fim dos programas de aquisição dos bancos centrais tornam o sector financeiro mais susceptível a crises, uma vez que as obrigações, os mercados bolsistas e os sectores imobiliários deixam de poder ser abastecidos com liquidez e/ou crédito suficientes para continuar o boom – existe o risco de crashes, quedas e terramotos nos mercados financeiros, como se viu pela última vez em março de 2023, quando a queda dos mercados obrigacionistas levou a uma crise bancária nos EUA.13

 

A política de taxas de juro elevadas é, portanto, como um jogo de equilíbrio no fio da navalha, com o sector financeiro inchado e as montanhas de dívida global a constituírem o maior factor de risco.14 Para minimizar o risco de surtos de crise, a Reserva Federal sinalizou pela última vez aos mercados instáveis, em dezembro de 2023, que os primeiros cortes nas taxas de juro estariam iminentes em 2024, se a taxa de inflação continuasse a descer.15 Os banqueiros centrais desencadearam assim um fogo de artifício de preços de curto prazo nos mercados bolsistas, que simplesmente anteciparam o potencial fim da política de taxas de juro elevadas neste mercado em alta. O fim da política monetária restritiva já está, portanto, "apreçado", como se diz na gíria bolsista, na tendência dos preços nos mercados bolsistas – onde o futuro é sempre negociado.

 

Mas o que acontece se a inflação não evoluir tão rapidamente como previsto para os 2% que a Fed fixou como objectivo da sua política monetária restritiva? Então os responsáveis pela política monetária, que pretendiam tranquilizar os mercados com os seus comentários, vêem-se subitamente num dilema. No final de janeiro, os banqueiros centrais norte-americanos indicaram que provavelmente não haveria qualquer redução das taxas de juro no próximo mês de Março,16 depois de a taxa de inflação norte-americana de 3,4% em dezembro ter sido ligeiramente superior à do mês anterior (3,1%).17 Este recuo na política monetária fez com que o fugaz boom nos mercados terminasse abruptamente com pesadas perdas nas cotações.

 

Além disso, surgiram mais uma vez fissuras no sector bancário dos EUA depois de o preço das acções do banco regional New York Community Bancorp ter caído cerca de 50% em dois dias de negociação.18 Tal como outros bancos regionais, este banco está a sofrer com a política de taxas de juro elevadas e com a crise associada no sector imobiliário comercial nos EUA. A instituição financeira, que chegou a ser considerada a vencedora da crise de março de 2023, teve agora de contabilizar cerca de 552 milhões de dólares em provisões para perdas com empréstimos e registar um prejuízo de 185 milhões de dólares.19 Parece possível uma repetição da crise bancária de março de 2023 desencadeada pela política de juros elevados. A queda da cotação das acções do Bancorp deve-se também ao facto de justamente os bancos regionais deveriam beneficiar das reduções das taxas de juro da Fed "apreçadas".

 

Os banqueiros centrais norte-americanos tornaram-se, assim, reféns da sua própria política: O calmante de dezembro está a transformar-se num explosivo da política monetária. O próximo surto de crise está, por conseguinte, efectivamente "apreçado", se a Fed não voltar rapidamente a uma política monetária expansiva – e, por conseguinte, impulsionadora da inflação. Aqui se revela muito provavelmente uma contradição fundamental que caracterizará a política de crise capitalista após o fim da economia das bolhas neoliberal: é um jogo de equilíbrio que está, em última análise, condenado ao fracasso, uma tentativa de fazer a quadratura do círculo na crise sistémica, a fim de combinar a luta contra a inflação com a estabilidade económica e financeira.

 

 

1 https://www.ft.com/content/b00ec9ec-5497-4543-aa57-f10873c8952b

 

2 https://www.investopedia.com/imf-predicts-five-years-of-sluggish-global-economic-growth-ahead-7376580

 

3 https://www.konicz.info/2007/03/05/vor-dem-tsunami/

 

4 https://www.konicz.info/2021/04/13/oekonomie-im-zuckerrausch-weltfinanzsystem-in-einer-gigantischen-liquiditaetsblase/ Em português: https://www.konicz.info/2021/04/14/economia-intoxicada-com-estimulos-sistema-financeiro-mundial-numa-gigantesca-bolha-de-liquidez/

 

5 https://oxiblog.de/die-mythen-der-krise/

 

6 https://www.tagesschau.de/wirtschaft/unternehmen/evergrande-liquidierung-100.html

 

7 https://www.konicz.info/2015/05/17/droht-china-ein-kollaps/

 

8 https://www.konicz.info/2021/11/27/einstuerzende-neubauten/

 

9 https://www.sueddeutsche.de/wirtschaft/weltbank-konjunktur-wachstum-welthandel-folgen-schwellenlaender-1.6330300

 

10 https://www.konicz.info/2022/10/18/china-mehrfachkrise-statt-hegemonie-2/ Em português: http://obeco-online.org/tomasz_konicz32.htm

 

11 https://www.konicz.info/2023/11/12/inflation-finanzkrach-oder-rezession/ Em português: https://www.konicz.info/2023/11/16/inflacao-crash-financeiro-ou-recessao/

 

12 https://www.reuters.com/markets/world-bank-forecasts-2024-global-growth-slow-third-consecutive-year-2024-01-09/

 

13 https://www.konicz.info/2023/03/19/die-silicon-valley-bank-als-das-schwaechste-glied/ Em português: http://obeco-online.org/tomasz_konicz36.htm

 

14 https://www.konicz.info/2023/11/12/inflation-finanzkrach-oder-rezession/ Em português: http://obeco-online.org/tomasz_konicz42.htm

 

15 https://www.cnbc.com/2023/12/13/fed-interest-rate-decision-december-2023.html

 

16 https://edition.cnn.com/business/live-news/federal-reserve-meeting-interest-rates-01-31-24/index.html

 

17 https://tradingeconomics.com/united-states/inflation-cpi

 

18 https://www.nytimes.com/2024/01/31/business/new-york-community-bancorp-loss-dividend.html

 

19 https://finanzmarktwelt.de/new-york-community-bancorp-aktie-verliert-32-massive-rueckstellungen-299547/

 

 

Original “Krise jenseits der Blase” in: www.exit-online.org. Antes publicado em konicz.info, 05.02.2024. Tradução de Boaventura Antunes

 

 

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