A forma final de Sahra
O novo partido de Sahra Wagenknecht, BSW, dificilmente prejudicará a AfD, mas deslocará o peso político ainda mais para a direita
Tomasz Konicz
Há uma lenda em particular que muitos adeptos de Wagenknecht utilizam para tornar aceitável a sua adesão à frente transversal: tudo isto é suposto ser de algum modo dirigido contra a AfD. A formação nacional-social de Wagenknecht – baptizada com a modéstia característica como "Aliança Sara Wagenknecht" (BSW) – iria tirar o vento às velas do extremismo de direita.
A síntese é a seguinte: Existe um grande potencial de eleitores de protesto que só votaram na AfD, dominada pelos fascistas, devido à falta de uma alternativa populista. Wagenknecht poderia agora apelar a este grupo de eleitores e, assim, prejudicar o fascismo – mesmo que para isso tenha de soar talvez como uma fascista de falinhas mansas.1 O FAZ, por exemplo, avisou a esquerdista favorita da direita alemã, no final de outubro, que ela só poderia tornar-se "perigosa" para a AfD se se "radicalizasse" ainda mais.2
Para além do facto de a auto-apresentação da AfD como o partido do "cidadão preocupado" estar a ser tomada à letra – o problema mais grave é simplesmente o de ser uma expressão da tendência omnipresente para reificar o pensamento. Imagina-se um espaço em aberto para uma "AfD-light" de Wagenknecht, que só precisa de ser preenchido com uma oferta política correspondente para enfraquecer a AfD. O que é muito mais decisivo, porém, é o facto de o estado de espírito social geral estar a deslocar-se para a direita há anos.
O sistema de coordenadas políticas, no qual se está agora a imaginar uma brecha para a "AfD-light" de Wagenknecht, não está gravado na pedra. Trata-se antes de um sistema dinâmico, em constante mutação, que se tem vindo a deslocar para a direita há anos. Desde o debate Sarrazin e o surgimento da AfD, os limites do que pode ser dito em público têm sido empurrados cada vez mais para a direita, até ao ponto da aberta instigação.
A nova direita simplesmente conseguiu a hegemonia discursiva em muitas questões – como o debate sobre migração do ano passado revelou3 – de modo que a ideia do que realmente constitui o "centro" político também sofreu uma mudança reaccionária. E o facto de a Sra. Wagenknecht não ter reservas pessoais em relação aos nazis é evidenciado pelos seus anos de correspondência com o extremista de direita Gernot Mörig.4
Fifty Shades of Brown [Cinquenta tons de castanho]
Deste modo a BSW está simplesmente a promover ainda mais a deriva para a direita do espectro político na Alemanha, que se está a transformar em fascismo aberto, criando uma paisagem política com muitos tons de castanho, na qual quase não restam forças não-de-direita (situação semelhante à de países como a Hungria). Isto é visível nas sondagens na Saxónia-Anhalt, onde apenas vários partidos de direita – a AfD, a CDU e o BSW – estariam representados no parlamento estadual, caso aí se realizassem eleições estaduais.5 Mesmo que, contrariamente às expectativas, a associação eleitoral nacional-social de Wagenknecht não partilhe o destino do seu projeto político desastrosamente falhado Aufstehen, isto não levará a uma perda de votos para a AfD, mas conduzirá certamente a uma maior deslocação para a direita da sociedade.
Wagenknecht trabalhou arduamente para criar esta constelação. Dificilmente outro político terá contribuído mais para a criação e ascensão da AfD6 do que Wagenknecht no seu lucrativo papel de "quebradora de tabus" da direita dentro do Partido da Esquerda.7 Desde a chamada crise dos refugiados, pelo menos, ela foi precisamente a figura política com presença permanente nos media que rapidamente começou a criticar a política de refugiados de Angela Merkel a partir da direita e, assim, a apoiar a AfD na sua agitação contra os migrantes, o que lhe valeu elogios de muitos e várias ofertas para se juntar à AfD.8
Durante algum tempo, a direita começou a legitimar os seus ataques públicos aos refugiados, alegando que a "Wagenknecht da esquerda" também partilhava a sua opinião. O "direito dos convidados" (Spiegel) do Partido da Esquerda, que gostava de confundir direito de asilo e direito dos convidados, serviu de exemplo para o facto de as opiniões de direita se terem tornado hegemónicas.
A isto junta-se a impressionante pilha de críticas do capitalismo truncadas e de direita que a "crítica do mercado financeiro" produziu nos seus anos de obsessão com o capital financeiro maléfico e rapace – com base nas quais pode ser rastreada a génese da ideologia fascistóide da crise, que divide a relação de capital numa relação boa, criadora e nacional, e numa relação má, rapace e internacional.
O modelo de negócio de Wagenknecht
Desde a crise dos refugiados, o mais tardar, o modelo de negócio de Wagenknecht tem sido cobrir o ressentimento com frases de pseudo-esquerda. A inventora do oxímoro "conservadorismo de esquerda" serviu, assim, o espírito reaccionário de uma parte do Partido da Esquerda. As suas quebras de tabus nacionais-sociais e todas as formulações "infelizes" visavam as correntes do partido susceptíveis à ideologia de direita – e que agora estão, em grande parte, a abandonar o partido com ela. Wagenknecht actua, assim, como figura central da frente transversal alemã, que, como uma correia de transmissão, transporta a ideologia de direita para a esquerda em erosão.
Para o exterior, a esquerdista preferida da direita alemã, cuja amálgama de frente transversal era sempre divulgada nos jornais FAZ, Welt, Focus, Cicero e Weltwoche, actuava sobretudo como crítica da esquerda. Este era o segundo pilar do modelo de negócio de Wagenknecht que a tornou tão popular entre os media de direita: deslegitimava a política progressista de esquerda com a força de uma bola de demolição. Rotulada de "esquerdista" em todos os programas mediáticos, Wagenknecht, que estava constantemente presente nos media, dizia frequentemente coisas reaccionárias que eram incompatíveis com os princípios da esquerda. A sua popularidade nos media e nas redes sociais resulta precisamente deste estratagema de se apresentar como uma pseudo-esquerdista crítica da esquerda e de propagar imagens de inimigo, como o da esquerda identitária e do "estilo de vida".
A direita identitária e de estilo de vida
Estas foram projecções muito difundidas no ambiente da frente transversal. Isto porque a direita milionária e socialmente isolada, com a sua carreira política centrada na autopromoção, está ela própria envolvida em políticas de identidade. No seu último livro, "Die Selbstgerechten" (Os Hipócritas), ela celebra as identidades nacionais como um "ganho civilizacional" e elogia a "sabedoria e as tradições" da RFA pós-fascista do milagre económico, a "decência, a moderação, a contenção, a fiabilidade ou a lealdade (...) a vontade de realizar e a disciplina, a diligência e o esforço, o profissionalismo e o rigor".
O bilhete para a frente transversal proposto por Wagenknecht consiste em adoptar a exigência da direita para o isolamento massivamente assassino da Fortaleza Europa em plena crise climática capitalista, ao mesmo tempo que se entrega a ilusões culturalistas de um país de milagre económico outrora intacto – antes de ser destruído pelos de sessenta e oito.
Neste contexto, os contactos recentemente divulgados de Wagenknecht com extremistas de direita da órbita do movimento identitário parecem lógicos. A cooperação entre a AfD e a BSW não é impensável – desde que a associação eleitoral de Wagenknecht, graças a uma presença permanente nos media e a milhões de donativos ao partido, não só consiga ganhar a organização necessária nas eleições estaduais deste ano na Alemanha de Leste, mas também consiga ultrapassar a barreira dos cinco por cento.
Frente transversal e classe
O projeto de uma AfD-Light compatível com o fascismo e com um verniz social parece estar a encontrar patrocinadores financeiramente fortes nas fileiras das pequenas e médias empresas e dos empresários familiares – o mesmo meio de onde foram recrutados muitos apoiantes da AfD. O empresário de TI Ralph Suikat é considerado o patrocinador mais importante da BSW. O portal de Internet Telepolis, da editora de TI Heise – que foi tomado pelo grupo de Wagenknecht do Partido da Esquerda com cobertura da editora9 – e o Nachdenkseiten, de Albrecht Müller, estão em grande parte na linha de Wagenknecht. O projecto da frente transversal de Sahra também pode contar com a boa vontade de media como o Berliner Zeitung e o Freitag, que pertencem, respetivamente, ao consultor de gestão de TI Holger Friedrich e ao herdeiro da Spiegel Jakob Augstein. Pessoas da classe média, herdeiros, homens ricos, idosos, brancos: é sobretudo a classe conhecida pelas suas disposições reaccionárias, antigamente muitas vezes designada por "pequena burguesia", que apoia tanto a BSW como a AfD.
O apoio mediático da BSW é assim actualmente melhor que o do Partido da Esquerda. E Wagenknecht continuará a ter um impacto na esquerda em erosão através destes media abertamente de direita da pequena burguesia – enquanto aquela esquerda não adoptar uma abordagem ofensiva da sua história de frente transversal. E isso não parece provável neste momento, nem mesmo no Partido da Esquerda, que tolerou durante anos as actividades da sua líder mediática e se apresenta agora como vítima de Wagenknecht e refúgio do antifascismo. E no qual – é de supor – muitos oportunistas estão à espera das próximas eleições para decidirem qual o partido que oferece melhores oportunidades de carreira.
A mais recente publicação do autor sobre o assunto: o livro eletrónico „Faschismus im 21. Jahrhundert. Skizzen der drohenden Barbarei„ ["O fascismo no século XXI. Esboços da barbárie que se aproxima"].
1 https://www.derwesten.de/politik/afd-weidel-wagenknecht-bsw-wuest-a-id300793505.html
2 https://www.faz.net/aktuell/politik/inland/was-sahra-wagenknecht-mit-der-partei-gruendung-riskiert-19257684.html
3 https://www.kontextwochenzeitung.de/debatte/667/die-extreme-mitte-9310.html
4 https://www.faz.net/aktuell/politik/inland/sahra-wagenknecht-hatte-jahrelang-e-mail-kontakt-mit-rechtsextremist-moerig-19456749.html
5 https://dawum.de/Sachsen-Anhalt/
6 https://www.konicz.info/2016/12/24/nationalsozial-in-den-wahlkampf/
7 https://www.konicz.info/2016/08/11/die-sarrazin-der-linkspartei/
8 https://www.handelsblatt.com/politik/deutschland/sahra-wagenknecht-linken-abgeordneter-fordert-ruecktritt-der-fraktionschefin/13928486.html
9 https://www.konicz.info/2021/09/20/telepolis-eine-rotbraune-inside-story/
Original “Sahras finale Form” em exit-online.org e konicz.info. Versão actualizada e alargada do texto antes publicado em “Jungle World”, 25.01.2024. Também publicado em untergrund-blättle, 08.02.2024. Tradução de Boaventura Antunes