Tomasz Konicz

 

MAIS UMA VEZ SE PÕE A QUESTÃO

 

Quando estoura a grande bolha de liquidez em que está preso o sistema financeiro mundial?

 

 

Deve continuar a haver relatórios para análise do mercado financeiro? Em todo o caso, o conhecido site de notícias norte-americano Business Insider advertiu, perante a leitura do Global Financial Stability Report do Fundo Monetário Internacional (FMI) publicado em meados de Abril, que este relatório sobre o estado dos mercados financeiros mundiais "não era próprio para cardíacos". O FMI constatava um aumento da instabilidade do sistema financeiro mundial desde Outubro de 2014, em paralelo com um deslocamento de "riscos de estabilidade" para domínios onde são difíceis de detectar. Eles ter-se-iam deslocado das "economias avançadas para as economias emergentes, dos bancos para os bancos-sombra e de problemas de solvabilidade para problemas de liquidez".

 

O FMI concluía que os "mercados podem ser cada vez mais vulneráveis a episódios em que a liquidez desaparece e a volatilidade dispara." Como exemplos da crescente instabilidade estrutural do sistema financeiro global, o relatório mencionava as distorções desencadeadas pela abolição da ligação do franco suíço ao euro em Janeiro de 2015, bem como o repentino voo picado das obrigações a dez anos do tesouro dos EUA em Outubro de 2014, cujo colapso foi comparável à reacção à falência do Lehman Brothers em 2008. Estas turbulências nos mercados foram reforçadas principalmente pela enorme "retirada de apoio à liquidez", alertava o FMI.

 

Falando claramente: sob a superfície da actividade "normal" do mercado, o cepticismo e a desconfiança estão a espalhar-se entre os sujeitos que nele intervêm, já que existe mesmo a ideia da insustentabilidade da dinâmica de especulação actual – da bolha de liquidez desencadeada pela política monetária expansionista dos bancos centrais. Cada actor do mercado financeiro tem de participar durante tanto tempo quanto possível durante a bonança, mas ao mesmo tempo tem aumentar a disponibilidade para sair o mais rapidamente possível na turbulência. Por isso também podem ocorrer eventos limitados de ondas de choque maiores através de todo o sistema, como observava o Business Insider: "Quando a liquidez do mercado seca, em momentos de maior volatilidade, a extensão e o alcance dos movimentos do mercado é reforçada". O que surge aqui é o retorno da constelação de crise da crise financeira global de 2007/2008, quando os mercados "congelaram", após o choque do Lehman Brothers, e os empréstimos no mercado interbancário quase paralisaram, porque os actores do mercado financeiro já não confiavam entre si.

 

Desde então, em particular a política monetária dos Estados Unidos fez o abastecimento do sistema financeiro mundial no seu máximo, com liquidez sempre nova, o que – para além da política prolongada de taxa de juro zero – levou à maior emissão monetária na história de cinco séculos do sistema capitalista mundial. O banco central dos EUA, a Fed, comprou entre 2009 e Outubro de 2014 títulos no mercado financeiro no "valor" de 3,5 biliões de dólares, com o que se conseguiu realmente estabilizar o sistema no curto prazo. O início da acção de emissão monetária chamada quantitative easing foi tão controverso como a decisão de a reduzir lentamente a partir do final de 2013 e a parar finalmente por completo, recapitulou a Bloomberg num relatório de fundo: "Tem sido muito debatido se a Fed reduziu muito cedo (o programa de compra de obrigações), dada a fraqueza económica global, ou muito tarde, perante os sinais de formação de bolhas em muitos mercados."

 

Neste comentário transparece o impasse cada vez mais claro da política capitalista para a crise, porque as elites funcionais da política e dos negócios há muito que se tornaram joguetes da dinâmica da crise e apenas podem determinar diferentes vias de novos desenvolvimentos da mesma: no plano da política monetária, a escolha aparente é entre política monetária expansiva ou restritiva, optando apenas entre o inflar de novas bolhas ou a iminente "fuga de liquidez" – juntamente com o risco de "congelamento" dos mercados. Portanto, não é por acaso que para o FMI a instabilidade no sistema financeiro mundial parece apenas crescer a partir do momento em que a Fed estabeleceu a sua "flexibilização quantitativa". É por isso que se pode encontrar no Global Financial Stability Report tanto avisos sobre a continuação da política monetária expansionista, que leva à formação de bolhas, como sobre o seu cancelamento antecipado, porque isso poderia levar a uma "tempestade de volatilidade", na formulação do Wall Street Jornal numa notícia sobre o relatório do FMI.

 

A mesma aporia da política de crise capitalista, aliás, apresenta também a disputa sem fim entre keynesianos e neoliberais em relação à política económica, com ambas as partes em litígio a criticar com razão as receitas do outro lado: obviamente que os programas de estímulo financiados por dívida dos keynesianos mantêm o sistema a funcionar apenas por pouco tempo, como uma espécie de "fogo de vista"  – e é igualmente certo que os programas de austeridade neoliberais levam os países afectados ao colapso sócio-económico. A única conclusão lógica que se pode extrair deste debate cansativo é o reconhecimento de que o capitalismo obviamente já não funciona sem uma formação permanente de dívida.

 

 

É justamente isso que se pode entender das advertências do FMI perante a situação nos países emergentes, que estão ameaçados não só pela queda dos preços do petróleo e de outras matérias-primas, mas também pela rápida subida do dólar dos Estados Unidos e pela iminente reversão nas taxas de juros da Fed. Lembre-se: a gigantesca impressão de dinheiro da Reserva Federal dos EUA, que foi iniciada para superar os efeitos do estouro da bolha imobiliária, possibilitou a formação de novas bolhas de dívida nos países emergentes, uma vez que o capital, face às taxas de juros negativas nos centros do sistema mundial, fluiu para a semiperiferia em busca de rendimentos mais elevados – e esses países foram durante algum tempo celebrados pela imprensa económica burguesa, com uma ignorância já quase chocante, como futura "locomotiva da economia mundial". Após o fim da quantitative easing da Fed falta o ar às bolhas dos países emergentes, uma vez que os fluxos financeiros globais se deslocam novamente para os centros e a valorização do dólar dos EUA torna cada vez mais difícil o serviço da dívida em dólares de países como "Argentina, Brasil, África do Sul e Nigéria".

 

Realmente parecem não faltar potenciais riscos de incêndio no sistema financeiro mundial inflado por anos de impressão de dinheiro. O FMI menciona explicitamente o sector imobiliário na China, onde a queda dos preços poderia não só ameaçar o mercado financeiro doméstico, mas também infectar outros mercados. Além da situação dramática em muitos países emergentes – desencadeada pelo duplo golpe da iminente reversão da taxa de juros da Fed e da queda dos preços da energia – o relatório também vê em risco a estabilidade financeira mesmo nos centros do sistema mundial, pois a iminente viragem das taxas de juros da Fed e a impressão de dinheiro apenas iniciada na UE levaram à formação de desequilíbrios no sistema financeiro global (carry trades). Na UE, o FMI também regista uma gigantesca montanha de créditos malparados, no montante de cerca de 900.000 milhões de euros, que constitui um remanescente da última crise financeira. Além disso, a política monetária expansiva do BCE colocou as empresas de seguros de vida europeias "em apuros" porque a política prolongada de baixa taxa de juros levou a que "quase um quarto das seguradoras já não consegue satisfazer os seus requisitos de capital de solvência". Este é um mercado com "4,4 biliões em títulos (assets)" que, segundo o FMI, constitui uma "fonte de potencial transbordar" da dinâmica da crise.

 

A impressão de dinheiro pelo BCE, naturalmente, não só conduziu ao reforço dos desequilíbrios na superstrutura financeira, mas – e esta é a verdadeira intenção deste programa de impressão de dinheiro, em curso até ao final de 2016 – permitiu sobretudo continuar a deixar crescer o superávit comercial da zona euro (especialmente a Alemanha) contra os países não-europeus. O euro fraco reduz o custo dos produtos produzidos na zona euro para os mercados não europeus, trazendo agora a toda a zona euro, remodelada pela Alemanha à sua imagem e semelhança, a mesma “política de empobrecer o vizinho” (beggar-thy-neighbour policy), devastadora para os países fora da Europa, que foi seguida pela Alemanha em relação à zona euro com um sucesso devastador até à eclosão da crise do euro. Como os Estados Unidos – ao contrário do sul da Europa – têm o seu próprio banco central e a moeda de reserva mundial, as reacções são inevitáveis.

 

Uma antecipação dos crescentes confrontos de políticas financeiras relacionados com a crise entre os "aliados ocidentais" de ambos os lados do Atlântico é apresentada pelas notícias sobre a especulação de investidores norte-americanos contra títulos alemães e europeus. "Especuladores ricos pretendem atingir a Alemanha" dizia o FAZ indignado no final de Abril, pois com esta acção a impressão de dinheiro pelo BCE foi prejudicada e os juros das obrigações de dívida pública alemã a dez anos registaram um aumento acentuado de dez pontos base num só dia. As outras grandes economias – como a China e o Japão – também vão responder a este apoio à exportação através da impressão de dinheiro com medidas defensivas, havendo aqui uma ameaça de desvalorização competitiva global das moedas (a chamada "guerra cambial"), o que poderia levar à hiperinflação – o mais tardar quando a actual bolha de liquidez global estourar.

 

Pois é precisamente o monstro gigantesco dos mercados financeiros do capitalismo tardio que mantém a inflação baixa, apesar da impressão de dinheiro: a dinâmica da especulação leva a uma inflação dos preços dos títulos, o que só com o estouro da bolha pode cair numa inflação real, quando o capital fictício em pânico tentar escapar da esfera financeira. Para se ter uma ideia das dimensões da presente bolha de liquidez, vale a pena dar uma olhadela ao "nível de correlação" entre os diversos mercados financeiros (acções, hipotecas, obrigações, etc.). Segundo o FMI, desde a eclosão da crise ele não diminuiu, mas tem aumentado – em média de 0,4 para 0,7 actualmente, sendo que um valor de 1,0 implicaria um movimento síncrono. O FMI também adverte aqui para um "aumento dos riscos de contágio" entre os segmentos individuais de mercado na esfera financeira. Isto parece quase um anacronismo, porque todo o sistema financeiro opera cada vez mais de forma síncrona, pois é alimentado pela mesma dinâmica especulativa. Por cima de todos os segmentos de mercado da esfera financeira – sejam de futuros sobre carcaças de porco e sumo de laranja congelado ou de titularizações de hipotecas – desenvolve-se cada vez mais forte, na presente bolha de liquidez, um movimento de valorização do capital fictício uniformemente alimentado pela especulação.

 

E há uma montanha crescente de dívida, que representa a base económica real dessas bolhas proliferando nos mercados financeiros mundiais, alimentadas pelas conjunturas de défice correspondentes (por exemplo, nos países emergentes). A empresa de consultoria McKinsey declarou recentemente que a dívida total global entre 2007 e 2014 aumentou de 269 para 289 por cento do produto económico global. O Geneva Report, publicado pelo International Centre for Monetary and Banking Studies, dava em Setembro de 2014 o aumento a longo prazo das dívidas mundiais (excluindo o sector financeiro): estas aumentaram de 160 por cento do produto económico mundial em 2001, para 200 por cento em 2009 e para 215 por cento em 2013. O relatório alertava para uma "combinação tóxica" entre dívida elevada e que continua a subir e crescimento económico fraco. A diminuição ligeira do nível de endividamento nos sectores financeiro e privado das economias desenvolvidas tem sido mais do que compensada pelo aumento da sua "dívida pública" e por um rápido inchaço da dívida nos países emergentes. "Ao contrário da convicção generalizada, o mundo não começou a desendividar-se e a proporção entre as dívidas e o PIB continua a aumentar, quebrando sempre novos recordes."

 

 

Original Auf ein Neues. Wann platzt die große Liquiditätsblase, in der das Weltfinanzsystem verfangen ist? em http://www.exit-online.org. Publicado em KONKRET 06/15. Texto no Website de Tomasz Konicz. Tradução de Boaventura Antunes

 

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