A inteligência artificial como impulso final de automatização
A implementação generalizada de sistemas de inteligência artificial na sociedade do trabalho levará ao extremo a contradição em processo no interior do capital. (IA e capital, parte 3)
Tomasz Konicz
"The Internet? Is that thing still around?"
Homer Simpson, dezembro de 1999.1
À euforia seguiu-se a ressaca e a desilusão. O advento da Internet, na viragem do milénio, foi acompanhado por uma propaganda mediática maciça e por uma bonança especulativa nas bolsas de valores de empresas de alta tecnologia ("Novos Mercados", Nasdaq), em que a indústria da Internet foi aclamada como um novo sector económico de ponta e milhões de pequenos investidores se tornaram investidores na bolsa (Acções tecnológicas, Infineon). Por vezes empresas informáticas duvidosas valiam mais do que grupos industriais gigantes como a Daimler. Quando a grande bolha da alta tecnologia rebentou e uma série de startups informáticas duvidosas faliram, instalou-se uma fase de desilusão em que a Internet foi ridicularizada como uma mera moda, uma rede de pontos de venda virtuais. No entanto, não se pode negar que a indústria da Internet transformou fundamentalmente o capitalismo. Apesar de não ter sido criado um novo sector económico de ponta nas tecnologias da informação em que se realizasse a valorização maciça do trabalho assalariado, as antigas empresas informáticas que sobreviveram ao massacre de 2000-2001 nas bolsas valem hoje mais do que empresas industriais.
O capitalismo tardio encontra-se actualmente numa fase semelhante no que diz respeito ao potencial económico da inteligência artificial. O grande hype parece já estar a esmorecer, registam-se os primeiros resultados decepcionantes nas bolsas – para além da Nvidia2 – e o cansaço e a desilusão com a IA estão a alastrar entre o público, uma vez que as grandes visões dos gurus da IA e dos transumanistas3 continuam à espera de ser concretizadas, devido às claras deficiências dos sistemas de aprendizagem artificial utilizados até à data. Além disso, o boom da Internet na viragem do milénio, semelhante às ondas de racionalização industrial nas duas últimas décadas do século XX, quando os robôs industriais transformaram a produção fordista em linha de montagem, parece confirmar uma tese central da economia burguesa: Mesmo que as novas tecnologias tornem obsoletas muitas profissões, o mesmo progresso tecnológico cria campos profissionais suficientes que – apesar de todas as fricções – asseguram a continuação da existência da sociedade capitalista do trabalho.
A revista Technology Review, do MIT, por exemplo, propagou recentemente esta tese da capacidade de regeneração do mercado de trabalho, cobrindo o artigo um vasto leque de crises e avanços tecnológicos desde a década de 1930, altura em que a questão de saber se "o progresso tecnológico, através da crescente eficiência do nosso processo industrial, está a eliminar empregos mais rapidamente do que consegue criar novos" foi também discutida de forma controversa no seio da administração Roosevelt, em plena Grande Depressão.4 Tendo em conta a evolução do mercado de trabalho norte-americano nas últimas décadas, em que cerca de 60% dos assalariados em 2018 estavam empregados em profissões que nem sequer existiam antes de 1940, a Technology Review não via sinais de que a adaptabilidade do mercado de trabalho fosse ultrapassada pelos efeitos da automatização de racionalização. Falar do "fim do trabalho" é uma "distracção" em relação à questão de saber como a inteligência artificial pode ser utilizada para fazer crescer a economia e criar novos empregos, segundo a folha tecnológica. Na mesma linha de pensamento estão os dirigentes sindicais alemães, como Yasmin Fahimi, directora da DGB, que descreveu como um "disparate" a crise da sociedade do trabalho provocada pela crescente "digitalização".5
Um olhar sob o capot da máquina da valorização
O trabalho é, de facto, a base da sociedade de trabalho capitalista; segundo Marx, constitui a substância do capital através da sua objectivação no corpo das mercadorias durante o processo de produção. O trabalho cria valores-mercadorias. E continua a ser gasto em grande escala. Os números do emprego parecem corroborar os argumentos da revista do MIT e da DGB, sobretudo tendo em conta a actual situação do mercado de trabalho nos EUA e na RFA; afinal, a taxa de desemprego calculada oficialmente nos Estados Unidos é particularmente baixa.6 E há uma escassez de trabalhadores qualificados na República Federal.7
No entanto, esta visão algo positivista, que se limita a somar o trabalho assalariado efectuado, não reconhece a função dos diferentes tipos de trabalho, nomeadamente no que diz respeito ao processo de valorização do capital. O trabalho posto à venda no mercado de trabalho capitalista, portanto, tem de ser visto no seu contexto social global para que se possa fazer juízos sobre a estabilidade da sociedade do trabalho. Mesmo que pareçam rentáveis do ponto de vista da economia empresarial, nem todas as formas de trabalho contribuem para a valorização do capital no conjunto da sociedade. O capital é uma totalidade que só pode ser compreendida em termos da sua própria dinâmica social, que se distingue, na sua irracionalidade fetichista, do tacanho cálculo de interesses, aparentemente racional, dos sujeitos do mercado (e muitos à esquerda também têm dificuldades com esta abordagem).
O Financial Times (FT) já sabe distinguir quando avalia a sociedade do trabalho nos EUA.8 Num resumo negativo da era neoliberal, a revista de negócios em 2023 criticou a formação de uma sociedade de serviços, na qual o emprego no sector dos serviços passou de 45% nos anos 70 para mais de 60% na segunda década do século XXI. Ao mesmo tempo, a proporção de trabalhadores na indústria e no sector da construção caiu de 55% para menos de 40%. De acordo com o FT, os EUA foram ultrapassados pela China em termos de produção industrial. Porque é que isto é um problema? A desindustrialização levou decisivamente à mudança de paradigma da política económica estratégica de Washington, em que o comércio livre neoliberal foi substituído por um protecionismo crescente.
Do ponto de vista de economia nacional, trabalho não é o mesmo que o trabalho, como a revista de tecnologia norte-americana e os sindicalistas alemães insinuam nos seus cálculos de merceeiro. A indústria de produção de mercadorias constitui, por assim dizer, o "fundamento" de uma sociedade capitalista do trabalho, sobre o qual apenas se pode construir um sector de serviços e uma superestrutura financeira – muito concretamente sob a forma de salários e impostos. O Estado social, a educação e a assistência a futuros ou antigos assalariados, bem como a manutenção de infra-estruturas, também têm de ser retirados do processo de valorização do capital como custos económicos, mesmo que empresas individuais (jardins-de-infância privados, universidades, empresas de construção ou lares de idosos) beneficiem disso a nível empresarial. Afinal nem todos os assalariados podem tornar-se cabeleireiros, gestores financeiros, funcionários públicos ou empregados de mesa se não houver uma ampla valorização do trabalho na indústria.
Uma sociedade de serviços dominada pelo sector financeiro, como nos EUA desindustrializados e cobertos pelo “cinturão da ferrugem” até ao grande crash imobiliário de 2008, só pode reproduzir-se através do endividamento e da formação de bolhas, até ao inevitável crash. É esta a lição da crise imobiliária, como refere o FT, que levou Washington a dar uma grande guinada proteccionista. O modelo a seguir é agora a Alemanha, que conseguiu manter a sua base industrial através de enormes excedentes de exportação e de uma política de "empobrecer o vizinho" na era da globalização (e é precisamente por isso que a indústria de exportação alemã está a sofrer cada vez mais com este proteccionismo).
Sem uma ampla base de emprego na produção industrial, não existe uma sociedade de trabalho estável – é esta a conclusão da era da financeirização neoliberal e da globalização, na qual se confirma também o conceito marxiano de valor, que destila o valor das mercadorias em quanta de tempo de trabalho socialmente necessário. Marx falava de trabalho produtivo e improdutivo no que respeita ao processo de acumulação de capital na sociedade como um todo. O trabalho produtivo contribui directamente para a valorização do capital na produção de mercadorias, ao passo que o trabalho improdutivo – por muito útil e socialmente necessário que seja – não o faz directamente. A crise da sociedade do trabalho deve, portanto, ser vista como uma crise do trabalho produtivo, criador de valor, na produção industrial de mercadorias. A crise da sociedade do trabalho é uma crise do trabalho produtivo, entendido no sentido marxiano, que contribui directamente para o movimento de valorização do capital.
Esta tendência para a redução da força de trabalho industrial, que o Financial Times lamentou em relação aos EUA, pode ser comprovada empiricamente em quase todos os "países industrializados" ocidentais. Mesmo na República Federal da Alemanha, orientada para a exportação e que continua a ter o sector industrial mais forte da Europa, a percentagem de pessoas empregadas na indústria transformadora caiu de pouco menos de 50 por cento no início da década de 1970 para cerca de 23 por cento em 2023, em resultado da automatização da produção industrial – ao mesmo tempo que os produtos industriais alemães, como máquinas e automóveis, inundavam meio mundo.9 A base industrial das sociedades capitalistas do trabalho está, assim, a tornar-se cada vez mais frágil.
Além disso, com o início da terceira revolução industrial, a partir do final dos anos 70 e dos anos 80, que conduziu ao grande aumento da automatização da produção industrial, a dívida global total aumentou mais rapidamente do que a produção económica global.10 O sistema mundial capitalista tardio está, assim, cada vez mais dependente do crédito; esta dívida cria procura para a venda de mercadorias, pelo que muitos dos empregos industriais que ainda existem dependem simplesmente da procura gerada pelo crédito. A sociedade do trabalho do capitalismo tardio está, de certa forma, em défice. Mas esta dinâmica de endividamento não pode ser mantida por muito mais tempo, face às crescentes distorções na esfera financeira e à inflação persistente. A ilusão de uma sociedade do trabalho capitalista intacta, de que tanto gostam os sindicalistas alemães e as revistas tecnológicas americanas, só pode ser mantida se se ignorar a situação na periferia do sistema mundial – de cujas regiões em colapso e Estados falhados os assalariados economicamente supérfluos tentam desesperadamente fugir para os centros.
Se olharmos para debaixo do capot da máquina de valorização capitalista, torna-se assim claro que o optimismo difundido pelas revistas tecnológicas norte-americanas e pelos responsáveis sindicais alemães nas vésperas do grande impulso de racionalização da IA é descabido. Não só a sociedade do trabalho capitalista está a sofrer um processo de erosão progressiva, em que a sua base industrial continua a derreter, como também os métodos de adiamento da crise, em que este sistema zombie deficitário produz montanhas de dívidas cada vez maiores, estão a atingir os seus limites devido à crescente instabilidade na esfera financeira e à inflação obstinada. A contradição em processo no interior do capital, que se está a livrar da sua própria substância, o trabalho assalariado, através da racionalização, já não pode, portanto, ser sustentada por estes métodos de adiamento da crise financiados a crédito na próxima vaga de automatização.
Além disso, a falta de investimento no Estado social, na educação e nas infra-estruturas aumenta a susceptibilidade das sociedades capitalistas tardias às crises. É precisamente aqui que se reflecte o desequilíbrio crescente na sociedade como um todo entre trabalho produtivo (valorização do capital na produção de mercadorias) e trabalho improdutivo (despesas necessárias em infra-estruturas sociais e no Estado social). As especificidades alemãs, que são frequentemente utilizadas para banalizar a crise da sociedade do trabalho, em nada alteram este facto. A falta de mão de obra qualificada e o envelhecimento da sociedade, de que todos se queixam, devem-se precisamente ao facto de a parte cada vez menor do trabalho assalariado na produção de mercadorias ter como contrapartida despesas cada vez maiores com os "custos mortos" das infra-estruturas sociais (educação, cuidados, Estado social, crianças como factores de custo e de destruição de carreiras, etc.).
O burocrata em vias de extinção
Ao contrário dos funcionários dos sindicatos alemães, que provavelmente também são atormentados por uma espécie de ansiedade em relação ao emprego nesta discussão, os bancos de investimento americanos estão definitivamente a abordar o potencial "disruptivo" da revolução da IA no mercado de trabalho global. Num estudo publicado em meados de 2023, a Goldman Sachs estimou que a "IA generativa" (bots treinados para processos de trabalho específicos utilizando montanhas de dados) tornará obsoletos ou degradará cerca de 300 milhões de empregos em todo o mundo. Numa previsão semelhante publicada no início de 2024, a consultora de gestão McKinsey concluiu que, só nos Estados Unidos, até 30 por cento das actuais horas de trabalho poderão tornar-se redundantes até 2030, estando particularmente em risco o trabalho de escritório simples e menos remunerado, o atendimento ao cliente e os serviços, bem como as vendas.11
Os contabilistas e os trabalhadores administrativos de escritório estão particularmente em risco. A primeira grande vaga de automatização no decurso da terceira revolução industrial da microeletrónica e da indústria das TI atingiu a força de trabalho no final dos anos 70 e 80 – agora é a vez dos trabalhadores de colarinho branco. O trabalho de escritório poderá em breve tornar-se obsoleto em grande escala. Quanto mais esquemático for o procedimento, quanto menor for a margem de manobra individual no processo de trabalho, mais fácil será a sua automatização através de sistemas de IA, que podem ser "treinados" para estes processos de trabalho, à semelhança dos "modelos de grande linguagem", utilizando quantidades gigantescas de dados a que as grandes empresas e as agências governamentais têm acesso. O trabalhador de escritório, toda a classe de trabalhadores de colarinho branco que surgiu em massa na primeira metade do século XX,12 está ameaçado de extinção. Esta camada de assalariados pequeno-burgueses, cujo aparecimento fez ruir as velhas esperanças marxistas de um sujeito revolucionário, está ela própria em processo de dissolução. O trabalhador de colarinho branco parece, assim, ter um período de existência social relevante de apenas cerca de 100 anos.
A recolha e organização da informação poderão em breve ser feitas automaticamente, tanto mais que os sistemas administrativos já foram quase totalmente digitalizados. A grande vaga de IA que se avizinha basear-se-á, portanto, nos trabalhos preliminares de digitalização que tem vindo a ser efectuada nos escritórios desde o início dos anos oitenta. E será relativamente fácil de implementar, uma vez que os custos de investimento são relativamente baixos. Os computadores e os programas de administração podem continuar a funcionar, apenas as pessoas que os operam desaparecerão. Os custos de espaço de escritório e outros "sistemas de apoio à vida" também serão largamente eliminados. Por outro lado, há investimentos substanciais em centros de dados onde sistemas de IA treinados executam as antigas tarefas de escritório com custos mínimos de pessoal, mas estas despesas ainda são baixas em comparação com a onda de racionalização industrial a partir dos anos 1980. Nessa altura todo o sistema Taylor teve de ser substituído e linhas de montagem inteiras foram equipadas com sistemas robóticos, cada um dos quais podia custar milhões.
Em comparação com estes esforços de racionalização da indústria, que custaram milhares de milhões de euros e fizeram com que a proporção de operários industriais continuasse a diminuir, os investimentos que estão a ser feitos nas infra-estruturas digitais, que tornarão os empregados obsoletos, são insignificantes. Actualmente é muito mais barato automatizar o trabalhador de colarinho branco do que o trabalhador industrial. A este respeito, a tendência capitalista tardia para o trabalho ao domicílio, para trabalhar a partir de casa, que se estabeleceu sobretudo na sequência da pandemia, aponta também para o começo da sociedade capitalista do trabalho no início da era moderna. No âmbito do chamado sistema de trabalho por encomenda, o trabalho assalariado entrava nas casas e nas cabanas dos arrendatários, dos pequenos agricultores e dos artesãos, que recebiam materiais e ferramentas para a produção doméstica de mercadorias “por encomenda” dos primeiros capitalistas, que depois as compravam e colocavam à venda no mercado. Actualmente, o capital está a libertar gradualmente os seus empregados dependentes do salário para o trabalho doméstico, antes que o impulso da automatização da IA os torne completamente obsoletos. Numa clássica negação dialéctica da negação, a fase histórica final do capital reflecte mais uma vez momentos da sua história de ascensão para uma fase superior de desenvolvimento.
Trabalhadores digitais ao dia – o chatbot toma conta do call center
Empregados precários, muitas vezes a trabalhar a partir de casa, miseravelmente remunerados – a automatização do sector dos centros de atendimento telefónico poderia parecer um processo progressivo, tendo em conta as péssimas condições de trabalho, se a existência das pessoas afectadas, que só podem vender a sua força de trabalho no mercado, não estivesse ameaçada. A obsolescência dos trabalhadores dos centros de atendimento telefónico já não é um sonho do futuro, mas uma realidade. O prestador de serviços de pagamento sueco Klarna conseguiu poupar cerca de 700 postos de trabalho depois de a empresa ter utilizado um bot de IA desenvolvido pela OpenAI para tratar os pedidos de serviço.13
A satisfação dos clientes manteve-se tão elevada como com os interlocutores humanos, afirmou a Klarna. As vantagens decisivas do sistema são óbvias: o sistema fala 35 línguas, é utilizado em 23 países, não tem limites de tempo de trabalho, nem exigências salariais ou sindicais. De acordo com as primeiras previsões internas, as poupanças de serviço através da utilização da IA deverão traduzir-se num lucro superior a 40 milhões de dólares. O sistema OpenAI já tratou com exactidão dois terços de todos os pedidos de informação por chat no serviço de apoio ao cliente, poupando muito tempo aos clientes. A empresa vê-se agora como uma "rede global de pagamentos alimentada por IA", como concluiu com entusiasmo em fevereiro de 2024. Ao mesmo tempo, os preços das acções dos operadores de call center, como a Teleperformance e a Concentrix, caíram a pique nas bolsas de valores.14
À primeira vista parece, portanto, que são sobretudo os empregos simples, que exigem pouca qualificação técnica, que são afectados por esta vaga de racionalização. Os empregados de caixa e os taxistas, por exemplo, correm um risco muito grande. De momento, porém, as perdas relacionadas com a IA no sector dos serviços parecem ainda ser amortecidas pela necessidade da indústria da IA de mão de obra não qualificada, que é utilizada no reconhecimento de padrões das redes neuronais artificiais conhecido como "fase de aprendizagem" (ver "A IA e a indústria cultural").15 Centenas de milhares de pessoas com emprego precário, sobretudo na periferia do sistema mundial capitalista, estão ocupadas a marcar os gigantescos conjuntos de dados dos sistemas de IA com "etiquetas" (semelhantes a captchas quando se faz um login) a troco de salários miseráveis, para permitir o seu reconhecimento de padrões em geral. A rede neuronal só "aprende" o que é uma bicicleta quando inúmeras imagens de bicicletas são rotuladas como bicicletas – quanto mais, melhor. O mesmo se aplica a palavras, vídeos, música etc. De resto, isto não significa que a IA compreenda o que é uma bicicleta; é uma relação puramente externa que se estabelece aqui.
O que está de facto a acontecer neste reconhecimento de padrões gerido por trabalhadores digitais pagos ao dia é um processo de internalização de todas as imagens digitalizáveis da realidade externa nas redes neuronais dos sistemas de IA. Trata-se de um gigantesco scanning da mera superfície da realidade, sem poder ter em conta o seu carácter processual, o seu devir e as suas contradições. O invólucro social exterior, a falsa manifestação do capitalismo tardio, torna-se a essência interior dos sistemas de IA, que serão por princípio incapazes de reflexão crítica, mesmo no caso de um rápido desenvolvimento tecnológico – por exemplo, através de computadores quânticos. O ponto-chave aqui é que a digitalização da superfície da vida, do universo e de tudo o resto será completada em algum momento, na medida em que isso for possível em sistemas algorítmicos que não conhecem causalidades e só trabalham com correlações. Consequentemente, a necessidade deste "trabalho de aprendizagem" sem sentido, em que os trabalhadores do clique distribuem rótulos para causalidades e imagens da realidade, entrará em colapso, enquanto a IA será capaz de lidar com muitas tarefas complexas. Precisamente porque é fundamentalmente incapaz de reflexão crítica na era emergente de brutal administração da crise (ver "IA e administração da crise").16
A automatização da classe média
A formação de opinião nos media já está parcialmente automatizada. O jornal BILD, o tabloide mais influente da Alemanha, pretende contrariar a perda de circulação e de alcance relacionada com a Internet através de uma reorganização anunciada em meados de 2023, em que o antigo modelo de negócio será actualizado com recurso à IA.17 Um terço das 18 redacções locais do tabloide será encerrado e um "número de três dígitos" de empregados será despedido, enquanto grandes modelos linguísticos assumirão muitas tarefas quotidianas. De acordo com a editora Springer, estão a ser eliminados "produtos, projectos e processos que não voltarão a ter êxito económico". A IA generativa deve "contribuir para apoiar todo o processo jornalístico", de modo a que – literalmente – a "criação jornalística" se torne a principal área de trabalho, enquanto a produção jornalística se torna um subproduto.
No futuro, os modelos linguísticos de grande dimensão serão utilizados para a pesquisa fastidiosa que tantas vezes atrapalha as "criações" jornalísticas do experiente editor do BILD. A isso se juntarão o design de layouts, as tarefas nas redes sociais e a optimização dos motores de busca (SEO). O facto de os modelos de IA poderem já lidar com muitas tarefas quotidianas "criativas" nas operações dos media foi demonstrado por um escândalo que envolveu a famosa revista desportiva Sports Illustrated, que utilizou secretamente textos gerados por inteligência artificial generativa, aos quais foram também atribuídos autores fictícios – os retratos dos jornalistas desportivos fictícios foram também gerados pela IA.18 O sítio de tecnologia Cnet também publicou secretamente conteúdos gerados por IA.
De facto, a profissão de jornalista faz parte de uma série de empregos bem remunerados da classe média que estão ameaçados pela automatização parcial e pela desvalorização, de acordo com um estudo da empresa de IA OpenAI.19 Para além dos jornalistas, os escritores, matemáticos, intérpretes e programadores também correm o risco de se tornarem obsoletos. Uma boa parte dos empregos da classe média será, portanto, pelo menos desvalorizada. O mesmo se aplica a advogados, designers gráficos, consultores financeiros, analistas, operadores da bolsa20 e à indústria dos media, do cinema aos jogos de vídeo.21 Sempre que é necessário processar grandes quantidades de dados e informações para chegar a conclusões claras – por exemplo, no sistema judicial e no aconselhamento jurídico – já estão prontos a ser utilizados grandes modelos linguísticos. A memorização está a tornar-se obsoleta. Os consultores financeiros e os analistas de mercado operam com probabilidades resultantes do processamento de dados empíricos do mercado, o que agora também pode ser feito de forma eficiente por sistemas de IA.
O segundo pilar da automatização dos empregos da classe média é a modificação do material de dados que os grandes modelos de linguagem digitalizaram, como a geração de novas imagens, gráficos, vídeos, textos, livros, etc. Muitas tarefas no sector da publicidade são susceptíveis de serem eliminadas. Aqui, a modificação simples e superficial do material existente pela IA coincide com as tendências ideológicas e com o modelo de negócio da indústria cultural capitalista tardia, que vive da repetição estética constante do mesmo, o que torna este tipo de geração automática de "conteúdos" particularmente sedutor (ver "A IA e a indústria cultural").22 Os filmes, os livros de entretenimento e os jogos de vídeo estão predestinados a ser amplamente automatizados. Uma grande parte dos empregos na indústria cultural está ameaçada – precisamente porque produz conteúdos ideologicamente estandardizados que apenas reflectem a superfície da realidade social.23
Além disso, os empregos bem remunerados na publicidade e nas vendas, que exigem um trabalho directo com os clientes, também parecem estar a desaparecer a médio prazo (portanto, não são apenas os centros de atendimento telefónico que são afectados). A indústria dos seguros, por exemplo, está a gastar milhares de milhões para automatizar a administração e os amplos departamentos jurídicos e para preparar chatbots para poderem ser utilizados na racionalização das vendas de seguros e do serviço ao cliente.24 Fotos de sinistros agora estão até sendo avaliadas usando IA em uma operação de teste. No entanto, os chatbots, que deverão ser lançados aos clientes como agentes de seguros artificiais, ainda estão em "fase de teste", segundo o Spiegel-Online, uma vez que têm de aprender primeiro o jargão do sector.
Os marqueteiros do século XXI, os influenciadores do YouTube, Instagram, TikTok e afins, que tentam vender ao seu público todo o tipo de merdas sem rotular isso de simples publicidade, já começaram a ser automatizados. Entretanto modelos virtuais "hiper-realistas"(Ars Technica) estão prestes a entrar no mercado de "conteúdos" nas redes sociais, que ronda os 21 mil milhões de dólares.25 Em dezembro de 2023, o sítio Web Ars Technica noticiou o sucesso de um modelo de IA que conseguiu acumular 200 000 seguidores na Internet, podendo vender colocações de produtos por cerca de 1000 dólares por publicação. Estes bots não só têm a vantagem de serem completamente controláveis, o que é susceptível de ser uma vantagem significativa perante as escapadelas26 de influenciadores famosos. Além disso, as bocas de aluguer que pululam nas redes sociais contribuíram, elas próprias, para a sua obsolescência, ao normalizarem a sua aparência e o seu aspecto, o que é imposto pelas exigências da optimização dos motores de busca (SEO) e tem de ser seguido para se obterem os maiores números de acesso possíveis. O influenciador já é um produto publicitário estéril, em grande parte moldado por algoritmos, que agora está pronto para ser automatizado.
Os relatórios sobre as possibilidades de automatização da classe média são normalmente acompanhados de pílulas tranquilizantes: a automatização nunca poderá substituir completamente as profissões em causa – advogados, jornalistas, programadores, designers, criativos, etc. As profissões em causa poderiam concentrar-se mais nas actividades criativas e na tomada de decisões, enquanto a IA se ocuparia da rotina diária, das tarefas esquemáticas. É claro que estas objecções devem ser levadas a sério, e é provável que prevejam correctamente o futuro próximo, no qual continuarão a existir jornalistas, advogados, autores de livros, etc. No entanto, o aumento da produtividade daí resultante conduzirá a um afastamento de trabalhadores das profissões em causa. A produção capitalista mediada pelo mercado através de sujeitos concorrentes isolados conduzirá a uma concorrência predatória mais forte no mercado de trabalho, de modo que também aqui só sobreviverá um número mais reduzido de fornecedores de trabalho com maior produtividade. A concorrência de mercado assegurará, assim, que apenas sobreviverão os assalariados mais produtivos, os freelancers ou os trabalhadores independentes com a relação preço-desempenho mais favorável.
Os fantasmas da IA que chamaram: a morte lenta do programador
Assim a revolução da IA conduz também a uma desvalorização das competências da mercadoria força de trabalho, que de repente só pode ser posta à venda no mercado de trabalho por uma fracção do seu valor anterior – uma tendência constante do capital enquanto contradição em processo, que já levou à eclosão das desesperadas revoltas dos tecelões da Silésia no século XIX. A revista norte-americana New Yorker entrevistou recentemente um programador que descreveu, por experiência própria, a forma como este processo de desvalorização induzido pela tecnologia está a ocorrer na sua indústria.27 No início do século XXI, quando a Internet conheceu o seu grande avanço, os web designers ainda podiam ganhar bom dinheiro criando homepages – mas estas actividades foram agora largamente desvalorizadas pelo software correspondente que quase qualquer pessoa pode utilizar.
A situação é semelhante com os novos bots de programação de IA que são agora comuns no sector. Um nível de conhecimento superficial e rapidamente adquirido é agora suficiente para resolver problemas complexos de forma rápida e eficiente. O autor do ensaio, que se tornou programador durante o boom das TI, quando podia fixar o seu salário mais ou menos à vontade, descreveu os sucessos de um conhecido que utilizou um bot de IA para programar. O amador, com um conhecimento superficial de linguagens de programação, era capaz de resolver até problemas complexos nos seus projectos de hobby mais rapidamente do que o programador de software altamente remunerado. A ferramenta de IA GPT-4 não só é boa a resolver pequenos problemas "complicados", como também tem as "qualidades de um programador de software experiente", pois pode sugerir boas soluções e caminhos de desenvolvimento para projectos a partir de uma "grande fonte de conhecimentos".
Até agora, o lema na indústria era que as qualificações e a aprendizagem ao longo da vida eram a melhor proteção contra a obsolescência, mas ele aconselharia agora os seus filhos a não quererem tornar-se programadores de software. A arte infinitamente complexa de programar máquinas em linguagens de programação abstractas está a dar lugar ao diálogo técnico entre o utilizador e a ferramenta de programação de IA que a grande maioria dos utilizadores de computadores pode aprender.
De facto, o desenvolvimento de software é um foco importante no âmbito dos esforços de automatização da revolução da IA, uma vez que a máquina autoprogramável representa o Santo Graal do transumanismo, por assim dizer. Esta ideologia de alta tecnologia, nascida em Silicon Valley, vê os seres humanos como um mero fenómeno de transição que será herdado por uma inteligência artificial permanentemente auto-aperfeiçoada – a chamada singularidade.28 Esta distopia só poderá ser bem sucedida se o processo de programação dos bots de IA puder ser gerido autonomamente, se a IA conseguir escrever-se a si própria.
A IA e o limite externo do capital
No entanto, os talibãs da alta tecnologia e os gurus da IA que pretendem arrecadar milhares de milhões de lucros com a obsolescência humana enfrentam outro limite externo: a finitude dos recursos do planeta Terra, que se encontra no meio de uma crise climática manifesta. A indústria da IA já está a consumir enormes quantidades de energia e água.
De acordo com estudos de 2022, as tecnologias da informação e da comunicação foram responsáveis por 2,1 a 3,9 por cento das emissões globais de gases com efeito de estufa, o que equivale aproximadamente às emissões do tráfego aéreo.29 A isto acresce a procura de eletricidade dos sistemas de IA, que deverá explodir para 134 terawatts-hora até 2027 – aproximadamente equivalente ao consumo dos Países Baixos. No início de 2024, a Agência Internacional da Energia (AIE) publicou as suas estimativas relativas ao consumo de energia dos sectores das criptomoedas e da IA, que, em conjunto, já eram responsáveis por cerca de dois por cento do consumo mundial de energia em 2022, devendo esta percentagem duplicar até 2026.30
A este facto acresce o elevado consumo de água dos centros de dados de funcionamento a quente, que têm de funcionar com sistemas de arrefecimento a água. Prevê-se que o consumo anual de água das redes neuronais aumente para 6,6 mil milhões de metros cúbicos até 2027, o que equivaleria à captação de água da Dinamarca. Durante uma "conversa" com a GPT-3, em que se responde a 10 a 50 perguntas, evapora-se cerca de meio litro de água. Para recordar, dois mil milhões de pessoas em todo o mundo não têm acesso regular a água potável e 771 milhões de cidadãos do mundo não conseguem sequer cobrir as suas necessidades básicas de forma fiável.31
Para treinar o GPT-3 da Microsoft com os seus 175 mil milhões de neurónios artificiais32 para uma nova tarefa utilizando quantidades gigantescas de dados, evaporam-se até 700 000 litros de água durante o processo de arrefecimento. O consumo de eletricidade de uma única "sessão de treino" deste tipo é equivalente ao consumo anual de 130 lares americanos.33 A fase de aprendizagem dos grandes modelos linguísticos é considerada particularmente intensiva em termos energéticos, mas as operações quotidianas, como as consultas, também se caracterizam por um elevado consumo de computação e energia. Uma simples consulta respondida por um modelo linguístico de grande dimensão consome cerca de 30 vezes mais energia do que uma pesquisa habitual no Google.
O facto de ser uma loucura desperdiçar quantidades gigantescas de energia em redes neuronais artificiais numa crise climática manifesta não significa que este esforço será de alguma forma travado. Por um lado, a dinâmica fetichista do capital é cega às consequências ecológicas e sociais da sua compulsão de valorização. O mundo é apenas um estágio de transição para fazer do dinheiro mais dinheiro. Para o transumanismo e ideologias semelhantes, trata-se, de facto, de uma corrida entre a decadência ecológica dos fundamentos da existência da humanidade e a formação da "singularidade" que herdará a humanidade e que deixaria de depender de ninharias como um ambiente intacto. A esperança é alcançar a singularidade antes do colapso social e ecológico.“Can what is playing you make it to level 2?”, como disse o aceleracionista Nick Land.34 A racionalidade capitalista, sobretudo no culto da IA, revela-se assim uma sinistra idolatria, em que os seres humanos e a natureza são chacinados no altar do capital processando cegamente como sujeito automático, que viria a si na singularidade.
1 https://getyarn.io/yarn-clip/813709cb-ba6e-435c-a171-c5450ce60533
2 https://www.wallstreet-online.de/nachricht/17892567-konkurrenz-waechst-adobe-enttaeuscht-schwachem-ausblick-ki-gewinne
3 https://www.konicz.info/2017/11/15/kuenstliche-intelligenz-und-kapital/. Em português: http://obeco-online.org/tomasz_konicz9.htm
4 https://www.technologyreview.com/2024/01/27/1087041/technological-unemployment-elon-musk-jobs-ai/
5 https://www.spiegel.de/karriere/kuenstliche-intelligenz-auf-dem-arbeitsmarkt-beschaeftigte-fuerchten-jobverlust-durch-ki-a-452166c9-26c9-4805-a0f2-07e894292080
6 https://www.bls.gov/news.release/pdf/empsit.pdf
7 https://www.verdi.de/themen/arbeit/++co++74debf86-472f-11ee-894c-001a4a160129
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9 https://de.statista.com/statistik/daten/studie/275637/umfrage/anteil-der-wirtschaftsbereiche-an-der-gesamtbeschaeftigung-in-deutschland/
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11 https://www.businessinsider.com/jobs-at-risk-from-ai-replace-change-chatgpt-automation-study-2023-7?IR=T
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Original “KI als der finale Automatisierungsschub” in www.exit-online.org. Antes publicado em konicz.info, 20.04.2024. Tradução de Boaventura Antunes