Tudo tem de ficar em chamas!

 

Breve visão geral do desmantelamento induzido pela crise dos resquícios da hegemonia americana pela administração Trump

 

Tomasz Konicz

 

Gronelândia e Panamá, México e Canadá – mais um pouco de praia de Gaza e Boers da África do Sul. As primeiras semanas da segunda presidência de Donald Trump têm sido verdadeiramente surreais em termos de política externa, mesmo sem contar com os desentendimentos transatlânticos. Muitas das declarações da Casa Branca e da política externa concreta no Inverno de 2025 pareceram um sonho mau, algo que simplesmente não pode ser realidade. Um espectáculo de aberrações apresentado por palhaços do terror enlouquecidos. A única coisa positiva deste tempo de pesadelo é que torna impossível para a imprensa burguesa normalizar a presidência de Trump. Apesar dos melhores esforços dos principais media, sobretudo alemães.1

Por vezes, os primeiros passos da política externa de Trump pareciam completamente loucos, desligados de todos os anteriores caminhos em que a geopolítica dos EUA tinha ocorrido. Muitas vezes parecia que Trump não estava a seguir quaisquer interesses económicos ou geopolíticos, como se estivesse a trabalhar conscientemente para destruir as velhas alianças e estruturas hegemónicas que os EUA tinham estabelecido após o fim da Segunda Guerra Mundial. Tudo tem de ficar em chamas2 – este parece ser o lema de Trump. O homem que se propôs a tornar a América grande de novo está efectivamente a agir como coveiro da hegemonia dos EUA.

E no entanto muitas vezes há um método para a loucura. Se a geopolítica de Trump pudesse ser resumida num único denominador, então seria um esforço para prosseguir a política de poder na crise sem admitir a existência da crise. É o que parece quando as elites funcionais capitalistas tiram as suas conclusões do facto de o capitalismo já não poder ser mantido na sua forma actual – e procuram refúgio num imperialismo de crise fascista.3 O isolacionismo que Trump pregou durante a campanha eleitoral foi rapidamente complementado por um imperialismo de aspecto arcaico – semelhante ao praticado pela Rússia de Putin.

 

Construção de um império da Gronelândia à Terra do Fogo

 

Isto é evidente na declaração de Trump a dar para o infantil de que quer anexar a Gronelândia – usando a força militar, se necessário. O que parece ser a fantasia de omnipotência de uma criança apontando o dedo a uma grande ilha do globo e que agora tem à sua disposição os meios de poder adequados para se apoderar dela, pelo menos só se torna compreensível tendo como pano de fundo a escalada da crise climática capitalista. Trump, um negacionista francamente fanático das alterações climáticas, admite implicitamente a existência da crise climática. Mas apenas sob a forma de uma apropriação de terras pelo imperialimo de crise.

O derretimento da camada de gelo no Ártico e o descongelamento do permafrost estão a abrir novas rotas estratégicas de navegação e a expor os recursos desta região do mundo ainda em grande parte inexplorada – o que desencadeou uma correspondente corrida imperialista de crise pelo Ártico entre os Estados vizinhos.4 Não se trata portanto apenas da Gronelândia, mas de reivindicações territoriais na região, onde a Rússia tem até agora as melhores cartas. Os EUA podem ter o Alasca, mas o Kremlin tem as antigas infra-estruturas soviéticas no norte da Sibéria e a maior ligação territorial ao Ártico, o que lhe confere uma gigantesca zona económica exclusiva sob o manto de gelo em rápido degelo.

A Gronelândia melhoraria substancialmente a posição de Washington na corrida imperialista aos recursos do Ártico – e porque não o Canadá, como segundo maior Estado litoral do Ártico. Mesmo que as ameaças militares de Trump contra o seu vizinho do norte continuem a ser retórica imperialista, os esforços de Washington para ligar o Canadá o mais possível aos EUA são inteiramente realistas. Os Estados Unidos são o parceiro comercial mais importante do Canadá, pelo que Trump tem de facto várias alavancas de poder à sua disposição para forçar um processo de expansão para norte a nível geopolítico e económico.

Para além de um extractivismo nitidamente brutal, no esforço para controlar o maior número possível de fontes de energia e recursos naturais, Washington sob Trump parece estar a tentar restaurar o seu domínio sobre toda a América – no espírito da antiga Doutrina Monroe de 1823 e durante a Guerra Fria.

A introdução de tarifas punitivas contra o Canadá foi acompanhada por medidas de escalada semelhantes contra o México – embora a Casa Branca esteja a perseguir um objectivo diferente contra o seu vizinho do sul. O Canadá deve ser incorporado nos EUA, de preferência anexado, também para aumentar o seu potencial socioeconómico na luta pelo domínio com a China, enquanto o México está a ser pressionado sobretudo em termos de exclusão e isolamento da miséria nas zonas em colapso da periferia. A vontade de fechar os centros, de construir muros permanentes, é uma característica central do imperialismo de crise cada vez mais solidificado,5 que só reconhece a periferia como um depósito de recursos no contexto do extractivismo.

A fronteira sul deverá tornar-se intransponível para as pessoas, mas o potencial de chantagem dos EUA contra o México tem aumentado nos últimos anos, precisamente devido ao crescente movimento transfronteiriço de mercadorias. A administração Biden já preparou em certa medida o terreno para a desglobalização, transformando o México na bancada de trabalho alargada dos Estados Unidos, a fim de reduzir as importações chinesas do exterior. Como parte da chamada estratégia de nearshoring,6 foram criadas as dependências que Trump pode agora usar para forçar o México a fazer concessões de longo alcance. O país da América Central está a deslocar para a fronteira unidades do exército de cerca de 10.000 homens para a defender contra os migrantes, a fim de evitar a ameaça de tarifas que devastariam a jovem indústria exportadora do México.

Trump quer evidentemente substituir o sistema hegemónico dos EUA, que está em processo de colapso e assenta em normas, instituições, sistemas reguladores e incentivos económicos globais dos EUA para as potências aliadas, por um império americano que assenta no domínio militar e em medidas coercivas do Canadá à Terra do Fogo. Controlo directo sobre os recursos e as rotas comerciais estratégicas, protecionismo e reindustrialização interna, selagem da fronteira sul contra o caos da crise que se aproxima, domínio militar e aspirações imperiais em vez da antiga hegemonia dos EUA no sistema de alianças ocidentais – apesar de todo o caos, estes contornos de um imperialismo de crise dos EUA parecem estar a emergir nos primeiros meses da administração Trump. Pretende-se que um império americano substitua a ordem mundial ocidental-global que foi amplamente moldada por Washington após a Segunda Guerra Mundial.

O impulso trumpiano para a construção do império americano não é de facto dirigido tanto contra a Europa como contra a China e a sua crescente influência na América a sul do Rio Grande. E esta estratégia pode muito bem ser bem sucedida, pelo menos a curto prazo, pelo menos em relação à periferia e à semiperiferia. Os abismos económicos e sociais são demasiado grandes: O México tem de executar a mania isolacionista de Trump para proteger a sua indústria exportadora. O Panamá, que Trump ameaça com uma invasão para colocar o Canal do Panamá de novo sob o controlo dos EUA, já anunciou no início de Fevereiro que se retiraria do projecto de investimento chinês da Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative – BRI).7 A Colômbia, que inicialmente se recusou a permitir a aterragem de voos de deportação dos EUA, cedeu em poucos dias após os gestos ameaçadores de Washington. E mesmo o Canadá dificilmente sobreviveria a longo prazo, não só a um conflito militar mas também económico com os Estados Unidos. A guerra comercial norte-americana que Trump desencadeou no início de Março de 2025 afectará mais o Canadá do que os EUA.

 

Nordic racism?

 

Este imperialismo de crise trumpiano, com a sua mistura de expansionismo ártico, extractivismo brutalmente directo e isolacionismo do Sul, tem por vezes um sabor fascista comum – como se o endurecimento ideológico histórico do imperialismo para o fascismo nos séculos XIX e XX tivesse sido comprimido em poucos anos, na reencenação induzida pela crise no século XXI. Trump mandou cancelar todo o apoio financeiro à África do Sul – porque, na sua opinião, a população branca do Cabo seria discriminada.8 A minoria branca da África do Sul continua a ser o sector economicamente mais privilegiado da população, uma vez que as relações de propriedade cimentadas durante o apartheid permaneceram em grande parte intocadas quando este foi ultrapassado. Os planos de expropriação do governo sul-africano para reduzir estes desequilíbrios económicos foram utilizados por Washington como uma oportunidade para exercer pressão sobre Pretória.

Além disso Elon Musk, originário da África do Sul, pronunciou-se a favor da suspensão da política migratória restritiva de Washington num caso de excepção: Os brancos da África do Sul,9 que deveriam imigrar em massa para os Estados Unidos como “minoria perseguida”. Vivemos num mundo de capitalismo tardio em crise, no qual a – digamos – “liderança” dos Estados Unidos quer seguir uma política migratória racista, na qual os brancos da África do Sul têm livre acesso, enquanto os migrantes da América Latina são deportados em massa.10 Isto com o objectivo óbvio de alterar a composição étnica dos EUA a favor das camadas “brancas” da população. Poder-se-ia falar aqui de um racismo nórdico que acompanha o imperialismo de crise acima descrito.

No entanto, a febril fantasia trumpiana de uma Gaza etnicamente limpa, que deve ser tomada pelos EUA como uma espécie de colónia e transformada num gueto de riqueza – semelhante ao Dubai ou aos Emirados Árabes Unidos – parece ter surgido de um capricho racista do presidente, uma vez que isto contradiz os interesses geopolíticos elementares de Washington (“You break it, you own it”).11 O sonho febril capturado num bizarro vídeo da IA de uma segunda Riviera pavimentada com hotéis de luxo, em cuja praia Trump e o primeiro-ministro israelita Netanyahu bebem cocktails para engatar mulheres numa discoteca à noite, enquanto o dinheiro chove do céu, é susceptível de ilustrar sobretudo a megalomania de Trump, que aqui também serve simbolicamente as fantasias de expulsão da extrema-direita israelita. De um ponto de vista da crítica da ideologia, no entanto, aqui se exprime sem filtros um impulso induzido pela crise da oligarquia global: o esforço regressivo para se isolar do resto do mundo capitalista tardio, que está em processo de decadência, a fim de congelar o seu luxo no espaço e no tempo.

 

Yanquee goes home?12

 

Extractivismo e expansionismo imperial para o Norte, isolacionismo racista para o Sul global, política brutal de grande potência nacional baseada no protecionismo e na reindustrialização – estes parecem ser os princípios geopolíticos da política “America First” de Trump no hemisfério ocidental. A construção do império pan-americano de Trump, acompanhada por ataques de megalomania, o esforço para (re)estabelecer o domínio geopolítico de Washington na América. No entanto isto parece andar de mãos dadas com um recuo estratégico da Europa. Não é exagero assumir que é improvável que a NATO sobreviva à segunda presidência de Trump na sua forma actual. A aliança militar transatlântica, a base da hegemonia dos EUA já em erosão nas últimas décadas, parece estar a caminhar para uma desintegração aberta.

Tendo em conta a política europeia de Washington, parece sugerir-se a imagem do imperador louco que, num curto espaço de tempo, incendeia um sistema de alianças formado por Washington ao longo de décadas. Tudo tem de ficar em chamas.13 As coisas estão a acontecer em rápida sucessão. Pouco depois de tomar posse, Trump faz reivindicações territoriais contra a UE (Gronelândia), o vice-presidente Vance desencadeia um escândalo na Conferência de Segurança de Munique em meados de Fevereiro com os seus ataques à UE,14 membros e funcionários do governo dos EUA interferem na campanha eleitoral alemã e nos assuntos internos dos Estados da UE a favor das forças fascistas,15 Trump e Vance humilharam o presidente ucraniano em frente às câmaras no final de Fevereiro, Washington está actualmente a planear uma abrangente retirada de tropas e/ou o destacamento de tropas na Europa16 – e para além das restrições comerciais já impostas estão em preparação novas tarifas contra a UE. Muitas tropas americanas poderão ser retiradas pelo menos da Alemanha. Kiev também está a ser forçada a assinar um acordo sobre matérias-primas como parte do extractivismo imperial de Trump, que visa garantir metade dos recursos naturais do país para os EUA.

A hostilidade aberta para com os antigos aliados contrasta com uma aproximação relâmpago a Moscovo. Em poucas semanas Washington e Moscovo normalizaram as suas relações diplomáticas e iniciaram conversações exploratórias sobre a divisão da Ucrânia – sem o envolvimento de Kiev nem dos europeus. Isto contrasta com a escalada entre Washington e Kiev, que levou a uma suspensão temporária do apoio militar por parte dos EUA.17 Uma mudança de regime em Kiev orquestrada por Washington com o derrube de Zelensky, parece agora inteiramente possível. A Ucrânia está efectivamente a ser levada à capitulação enquanto estão em curso os preparativos para uma cimeira entre Putin e Trump.18

Num espaço de tempo muito curto, a antiga potência hegemónica está a dar uma reviravolta geopolítica de 180 graus, em que alianças e estruturas geopolíticas com décadas de existência estão a ser abaladas até ao âmago em apenas algumas semanas. São semanas em que passam décadas. De que se trata então? Será que se trata apenas da pura loucura de um presidente dos EUA que se está a desviar para a extrema-direita?

A aproximação a Moscovo só pode ter por base um cálculo geopolítico se Trump quiser fazer de Nixon ao contrário. Com a sua visita à China em 1972, o Presidente republicano Richard Nixon iniciou uma normalização diplomática e uma aproximação geopolítica entre a República Popular e Washington. Este facto aproveitou as tensões russo-chinesas para exercer mais pressão sobre a União Soviética durante a Guerra Fria.

Agora Trump parece estar a ir ao encontro da Rússia – que de qualquer modo venceria a guerra contra a Ucrânia a médio prazo – para enfraquecer a aliança eurasiática entre Pequim e Moscovo e, em última análise, afastar Moscovo desta aliança. Os comentários correspondentes do Ministério dos Negócios Estrangeiros russo apontam nessa direção.19 Apesar de todas as rupturas espectaculares, é útil entender a geopolítica como um continuum. E uma das continuidades com que todas as administrações norte-americanas das últimas duas décadas têm sido confrontadas é o irremediável conflito hegemónico com a China.20 Na perspectiva de Washington, a guerra sobre a Ucrânia é apenas um prelúdio do conflito sobre o domínio global com a China e o bloco de poder eurasiático que Pequim está a tentar formar. O conflito na Ucrânia começou em 2014,21 como uma disputa sobre a fronteira entre a esfera de poder eurasiática e o sistema de aliança ocidental-oceânico de Washington.

Agora que a Rússia está enfraquecida após três anos vergonhosos de guerra, Washington parece estar a tentar minar o eixo Pequim-Moscovo, em preparação para o próximo conflito com a China – especialmente porque a Rússia há muito que assumiu o papel de “parceiro júnior” na aliança eurasiática, e corre o risco de degenerar em periferia. Nixon, um anticomunista fanático, foi o único que conseguiu ir a Pequim – Trump parece pelo menos acreditar que pode conseguir algo semelhante em Moscovo. É uma opção geopolítica fundamental que sempre foi discutida em Washington, mesmo que tenha passado para segundo plano nos últimos anos.

No entanto, a “política” de confrontação da administração Trump em relação à UE parece contraproducente, uma vez que Washington se basearia num sistema de alianças estável para combater Pequim. É bom lembrar que os Estados Unidos sempre tiveram uma relação ambivalente com o processo de integração europeia; os aliados que faziam parte da esfera de hegemonia americana ameaçaram repetidamente transformar-se num concorrente – especialmente a nível económico, dados os elevados excedentes de exportação europeus e a desindustrialização dos EUA.

Esta tendência da UE para reduzir o fosso económico em relação aos EUA só se inverteu nos últimos anos, após a eclosão da crise pandémica, a subsequente guerra na Ucrânia e as crescentes tendências proteccionistas de Washington. Desde então a vantagem económica dos EUA sobre a UE tem continuado aumentar,22 ao passo que do ponto de vista militar Washington parece quase impossível de alcançar. Este desacopamento transatlântico está agora, sob Trump, a ter consequências geopolíticas. Isto tornou-se evidente nas – digamos – negociações sobre o destino da Ucrânia, que equivalem a uma chantagem a Kiev por parte da administração Trump. E os europeus estão efectivamente excluídos do regateio imperialista sobre o resultado de uma guerra europeia.

 

Small Parts Isolated and Destroyed23

 

Este sentimento de impotência que se instalou entre o público europeu, à medida que o continente se tornou subitamente no objecto de grandes potências que simplesmente passaram por cima da UE sem abordar as suas preocupações e interesses – é uma experiência que as grandes potências da Europa infligiram ao Sul global durante séculos, como parte da sua expansão imperialista. É o sentimento de periferização iminente. A UE está em declínio económico e não pode ser levada a sério em termos militares – afinal só a ameaça de destruição nuclear do mundo é que ainda é eficaz em conflitos armados. Trump está apenas a retirar as consequências imperialistas dos desenvolvimentos socioeconómicos e militares dos últimos anos, que foram acelerados pela guerra na Ucrânia.

É por isso que a UE está a reagir em pânico com uma ofensiva armamentista, no centro da qual estará o armamento nuclear.24 Se Trump ou Putin devem ser impedidos de anexar a Gronelândia ou os Estados Bálticos, então isso só pode ser feito garantindo a aniquilação geral no fogo nuclear. No meio da manifesta crise socio-ecológica do sistema mundial capitalista, a Europa tem portanto todas as razões imperialistas para expandir o seu arsenal nuclear. Uma Alemanha com armas nucleares, dirigida pela sátira realista de um Mr. Burns, onde o fascismo está a avançar para o poder25 – o que é que pode aí correr mal?

Mas porque é que a UE é relegada a ser tratada como uma região periférica pela administração Trump? Outro continuum a que Washington se encontra exposto, sem o poder admitir, é o processo de crise do capital na sua dimensão económica. O colapso do sistema hegemónico norte-americano só pode ser plenamente compreendido quando se tem em conta esta dinâmica de crise.

O processo de crise económica26 é particularmente evidente no proteccionismo,27 que procura proteger a indústria nacional ou iniciar a reindustrialização à custa dos concorrentes. O protecionismo de Trump – à semelhança dos seus planos de expansão do Ártico – equivale a uma admissão implícita da crise global do capital, que promove tendências de desindustrialização devido ao nível de produtividade industrial alcançado globalmente, uma vez que não há novos sectores económicos à vista que valorizassem massas de trabalho assalariado. Já não é possível estabelecer um novo regime de acumulação, como o fordismo do pós-guerra, porque o capital se tornou demasiado produtivo para si mesmo, por assim dizer. O trabalho assalariado, enquanto substância do capital, é cada vez mais afastado da produção de mercadorias – e em breve também do sector dos serviços28 – pela concorrência, a cada nova vaga de racionalização.

E é precisamente por isso que a aliança e o sistema hegemónico dos Estados Unidos também estão a entrar em colapso, uma vez que a crise está a forçar os Estados e as regiões económicas a entrarem numa concorrência de crise pelas suas indústrias, no protecionismo – Washington só pode tentar influenciar o curso do colapso hegemónico substituindo a hegemonia por um domínio imperial e militar, sem os habituais clichés dos “valores” e dos direitos humanos.

A hegemonia geopolítica baseia-se na aceitação ou, pelo menos, na tolerância da posição do hegemonista, uma vez que as potências subordinadas nos centros também beneficiam do sistema hegemónico. No entanto isto requer uma base económica que torne possíveis estas formas de governo mediado nos centros do sistema mundial. Foi o que aconteceu em particular no período do pós-guerra, uma vez que o regime de acumulação fordista acima referido, a “prosperidade do pós-guerra”, permitiu um longo período de expansão económica que acompanhou o estabelecimento da hegemonia dos EUA. A maré alta levantava todos os navios nos centros. Não foram apenas os EUA que beneficiaram, mas também a Europa e o Japão.

Em resposta ao esgotamento do fordismo na década de 1970, estabeleceu-se a globalização neoliberal impulsionada pelo mercado financeiro, com os EUA como o centro financeiro mundial, o que de facto fez do crescimento do crédito – ou seja, da dívida total a aumentar mais rapidamente do que a produção económica – o lubrificante da hegemonia dos EUA. Graças à moeda de reserva mundial, o dólar, os Estados Unidos desenvolveram uma economia deficitária instável, alimentada pela especulação, que facilitou bolhas especulativas e défices comerciais cada vez maiores. Como um buraco negro, os EUA conseguiram absorver a sobreprodução industrial da economia global hiperprodutiva, enquanto a economia das bolhas financeiras conseguiu passar de boom em boom, apesar dos abalos cada vez maiores dos mercados financeiros. Assim, os potenciais concorrentes dos EUA continuaram a ter incentivos económicos tangíveis para aceitar a posição hegemónica de Washington e do dólar – sob a forma dos crescentes excedentes comerciais que conseguiam obter entre Nova Iorque e Los Angeles.

No entanto esta economia global de deficit, com o dólar como moeda mundial e os EUA como seu centro hegemónico, dissolveu-se efectivamente em resultado das crises de 2008 e 2020. A crise imobiliária de 2008 provocou o colapso de grande parte da classe média americana e abriu caminho ao populismo protecionista de direita de Trump,29 enquanto o aumento da inflação na sequência da luta contra a pandemia pôs fim à política monetária expansionista dos bancos centrais,30 o que sufocou a economia global de deficit – com excepção dos EUA, com o dólar como medida (em erosão) de todas as coisas de valor.

Desde então a hegemonia não pode mais ser mantida, pois simplesmente não há mais nada para “distribuir” a fim de manter um sistema regulatório baseado no consentimento ou na tolerância, incluindo as instituições correspondentes. Washington não quer continuar a suportar os custos da sua hegemonia – socioeconomicamente, devido aos elevados défices comerciais, à desindustrialização, às tendências de desintegração social e à instabilidade política associada. E, no plano militar, Washington, que se debate com um défice orçamental gigantesco, exige também mais despesas de defesa à Europa. A construção do império de Trump é, portanto, um sinal de fraqueza e não um regresso à força de outrora.

Os EUA só podem impor a sua vontade ao mundo exterior através da dominância, ou seja, fazendo valer os seus interesses militar ou economicamente, o que em última análise já remeteu a hegemonia de Washington para a história. A Europa está efectivamente a ser abandonada por Washington; todo o sistema hegemónico europeu está em jogo, porque é assim que a crise está a ser concretizada. O que a Alemanha fez na Europa após a eclosão da crise do euro, transferindo as consequências da crise para o Sul, está agora a ser feito na aliança transatlântica. A crise há muito que atingiu os centros e Trump parece querer transformar os europeus numa periferia em crise, tal como Schäuble fez com o Sul da Europa. A UE é fraca – economicamente, mas sobretudo militarmente – e é por isso que está a tornar-se um alvo.

O que poderá acontecer agora ao sistema de aliança ocidental assemelha-se mais à desintegração da União Soviética – e o que restaria seriam fragmentos que provavelmente se afundariam isolados numa regressão nacionalista e fascista. Seria como se a Rússia abandonasse a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. A brilhante previsão feita pelo teórico da crise Robert Kurz quando o bloco de Leste entrou em colapso é susceptível de se tornar realidade nos próximos anos: O colapso do capitalismo de Estado de tipo soviético no Leste, que foi freneticamente aplaudido pelo Ocidente, foi apenas o prenúncio da crise mundial do capital, que acabaria por engolir também os centros ocidentais, argumentou Kurz no clássico da teoria O Colapso da Modernização.31

 

Sim, pânico!32

 

Sem os EUA, que querem seriamente anexar o Canadá33 e ocupar militarmente o Canal do Panamá,34 o Ocidente, a NATO, é uma concha vazia. Nem haverá sistemas de alianças novos e estáveis; Trump não está a construir uma aliança duradoura com a Rússia. Já não existe uma base económica para sistemas hegemónicos estáveis, que só podem existir no capitalismo se houver uma valorização suficientemente ampla da força de trabalho na produção de mercadorias e uma oferta suficiente de recursos. Ambas já são impossíveis na manifesta crise sócio-ecológica do capital – a erosão dos monstros estatais do capitalismo tardio tenderá a escalar a concorrência de crise até ao ponto do conflito militar.35 Após as primeiras fissuras na estrutura de poder geopolítico do Ocidente – como o Brexit – parece estar iminente a grande ruptura qualitativa que porá fim à era da hegemonia ocidental, de um sistema mundial marcado pelo Ocidente.

As acções da Rússia e da Turquia podem ser um vislumbre de um sistema mundial caótico, no qual nenhuma grande potência conseguirá alcançar uma posição hegemónica devido ao processo de crise manifesto. Ambos os monstros estatais prosseguem os seus objectivos imperiais tacanhos – incluindo o recurso à guerra, a massacres e a limpezas étnicas – em constelações em constante mutação, nas quais os aliados de ontem podem muito rapidamente tornar-se inimigos. Por vezes, a cooperação numa área (a Rússia está a construir uma central nuclear na Turquia) e o confronto noutra (Ancara retirou efectivamente a Síria da esfera de influência da Rússia) podem complementar-se mutuamente.

O público ocidental, que vê a NATO e o Ocidente como constantes, simplesmente ainda não está habituado a legitimar mudanças abruptas de rumo imperial. O troll de Putin,36 que apesar de todos os desastres russos interpreta cada volte-face do Kremlin como uma expressão do génio de Putin, pode servir de modelo para a futura reinterpretação orwelliana da realidade por parte dos fala-barato dos media. Muito em breve, os respeitáveis media ocidentais também aprenderão a seguir estas reinterpretações da realidade geopolítica, desde que as constelações mudem em conformidade. The New Yorker já está a praticar.37

Todos os Estados que ainda têm meios para o fazer praticarão o isolacionismo e a expansão: Isolamento para proteger a base industrial e perante a situação de crise da periferia, expansão no quadro do extractivismo imperialista de crise,38 a fim de assegurar matérias-primas, alimentos e fontes de energia cada vez mais escassos.39 É óbvio que a Europa também será afectada por estas forças centrífugas induzidas pela crise; a UE é de facto o elo mais fraco da cadeia geopolítica da crise. O actual processo de desintegração do Ocidente não resultará numa UE mais forte, mas antes acelerará o seu processo de dissolução.

Os Estados da UE oferecem uma alavanca perfeita para Washington, Moscovo ou Pequim intervirem na Europa devido à sua concorrência interna: A lealdade da Hungria a Putin, a luta franco-alemã pelo domínio, o pânico da Polónia em relação a uma aproximação entre a Rússia e a Alemanha, o contraste entre o Norte e o Sul da Europa: a Europa trumpiana não criará um pólo geopolítico estável, mas afundar-se-á na regressão e no nacionalismo – à semelhança dos produtos da desintegração da União Soviética. As próximas crises ecológicas ou económicas farão o resto, varrendo os resquícios das instituições e alianças transnacionais.

A crise é o factor impulsionador que alimenta a desintegração das instituições e alianças ocidentais; Trump, tal como a direita em geral, são apenas os seus executores. O que parece irracional na – digamos – “política” de Trump apenas reflecte a irracionalidade do processo do capital, que está a morrer com a escalada das suas contradições sociais e ecológicas. O pânico e o caos que estão agora a dominar o sistema mundial são reais, não são simplesmente desencadeados pela idiotice ou pelas intenções de Trump. As contradições – expressas, por exemplo, nas eternas correcções de rumo do proteccionismo de Trump – são reais, estão a ganhar intensidade e já não podem ser ultrapassadas por estratégias neoliberais de adiamento da crise. A direita, que se aproxima do extremo fascista, é o executor subjectivo40 do avanço objectivamente iminente da crise. Tudo tem de ficar em chamas porque o capital está a despedaçar-se.41 Trump é apenas o meio da autodestruição do sujeito automático sufocado pelas suas contradições.

O momento novo é que as elites funcionais, ou seja, os aproveitadores da dominação sem sujeito do capital,42 perceberam agora o que pelo menos a esquerda alemã, na sua estupidez populista regressiva, se recusa a reconhecer: o sistema está no fim. Isto caracteriza a sua política de pânico, na qual constelações de décadas devem ser cortadas, fronteiras fechadas e regiões ricas em recursos conquistadas em nome da pura sobrevivência. Trata-se de uma tentativa de mudar para um modo de dominação de crise diferente, através do imperialismo, do fascismo e do isolamento total. Está a desenrolar-se uma espécie de pânico em câmara lenta, em que o princípio do sobrevivencialismo está a tornar-se o princípio orientador geopolítico: a ideia ilusória de nos isolarmos da crise,43 que está a funcionar nas contradições internas de todas as sociedades capitalistas. Trump, Musk & cia. agem como bilionários preparadores do sobrevivencialismo.

Este pânico geopolítico em câmara lenta induzido pela crise, no qual os EUA estão a incendiar o seu sistema mundial para se dedicarem à construção de um império, só pode levar a conflitos militares crescentes.44 São o ponto final da concorrência de crise a nível estatal, especialmente tendo em conta os crescentes processos de erosão do Estado. Tudo ficará em chamas45 se o capital não for emancipatoriamente ultrapassado. Isto soa a ilusório? Mas ainda assim não há alternativa à tentativa de emancipação.

 

1 https://www.spiegel.de/ausland/verhaeltnis-usa-deutschland-j-d-vance-knuepft-us-schutz-fuer-deutschland-an-bedingungen-a-8daf2bb8-b131-4b5c-a624-9b7e28037369

2 https://www.youtube.com/watch?v=W_oJf54ZoRE

3 https://www.konicz.info/2022/06/23/was-ist-krisenimperialismus/. Em Português: https://www.konicz.info/2022/07/06/o-que-e-imperialismo-de-crise/

4 https://www.konicz.info/2013/10/05/2639/

5 https://www.akweb.de/politik/was-ist-krisenimperialismus-und-wie-unterscheidet-er-sich-vom-klassischen-imperialismus/

6 https://jungle.world/artikel/2023/45/nearshoring-ende-der-aera-der-globalisierung-neue-kapitalistische-naehe. Em Português: https://www.konicz.info/2023/11/16/a-nova-proximidade-capitalista/

7 https://carnegieendowment.org/emissary/2025/02/panama-canal-trump-china-crisis?lang=en

8 https://www.reuters.com/world/us/trump-signs-executive-order-aimed-south-africa-white-house-official-says-2025-02-07/

9 https://www.thesouthafrican.com/lifestyle/celeb-news/local-celebs/elon-musk-white-south-africans-immigration-donald-trump-latest/

10 https://www.konicz.info/2025/02/06/cancel-culture-usa/. Em Português: https://www.konicz.info/2025/02/10/cancel-culture-usa-3/

11 https://time.com/7262241/trump-gaza-ai-video-truth-social-resorts-netanyahu/

12 https://www.youtube.com/watch?v=83idzWTXYAM

13 https://www.youtube.com/watch?v=W_oJf54ZoRE

14 https://www.tagesschau.de/ausland/europa/vance-sicherheitskonferenz-104.html

15 https://www.tagesschau.de/faktenfinder/kontext/musk-x-bundestagswahl-100.html

16 https://www.t-online.de/nachrichten/ausland/internationale-politik/id_100626896/us-truppenabzug-was-das-fuer-deutschland-und-europa-bedeuten-wuerde.html

17 https://www.bbc.com/news/articles/ce8yz5dk82wo

18 https://apnews.com/article/russia-ukraine-war-trump-putin-talks-89e19bc56677064f6f9a6d6e03de7362

19 https://x.com/tkonicz/status/1899843583550558326

20 https://www.konicz.info/2022/05/24/eine-neue-krisenqualitaet/. Em Português: http://obeco-online.org/tomasz_konicz25.htm

21 https://www.konicz.info/2022/06/20/zerrissen-zwischen-ost-und-west/. Em Português: http://obeco-online.org/tomasz_konicz53.htm

22 https://www.konicz.info/2023/11/28/transatlantische-entkopplung/. Em Português: http://obeco-online.org/tomasz_konicz43.htm

23 https://www.youtube.com/watch?v=9YJmuPSLrbk

24 https://www.br.de/nachrichten/deutschland-welt/baut-sich-europa-einen-eigenen-atomwaffenschutzschirm,U4HEiYG

25 https://www.konicz.info/2025/01/18/die-schluesseluebergabe/. Em Português: http://obeco-online.org/tomasz_konicz56.htm

26 https://www.konicz.info/2022/10/02/die-subjektlose-herrschaft-des-kapitals-2/

27 https://jungle.world/artikel/2025/09/trump-regierung-abkehr-globalisierung-zoll-um-zoll-die-krise. Em Português: https://www.facebook.com/boaventura.antunes/posts/pfbid0o61VPsqEVRKdSqDXrt7srKtQtSwCVkPk4eLJh6UmfD9feXwjXSK8gQWmZyJSr6kxl

28 https://www.konicz.info/2024/04/19/ki-als-der-finale-automatisierungsschub/. Em Português: http://obeco-online.org/tomasz_konicz51.htm

29 https://www.konicz.info/2025/01/22/a-countryfor-old-men/. Em Português: https://www.konicz.info/2025/01/29/a-country-for-old-men/

30 https://www.konicz.info/2021/11/16/zurueck-zur-stagflation/. Em Português: https://www.konicz.info/2021/11/18/de-volta-a-estagflacao/

31 https://edition-tiamat.de/books/der-kollaps-der-modernisierung. Em Português: http://www.obeco-online.org/livro_colapsom.html

32 https://www.youtube.com/watch?v=C3c_j0dSjKA&

33 https://abcnews.go.com/Politics/trump-talking-making-canada-51st-state/story?id=119767909

34 https://www.nbcnews.com/politics/national-security/trump-white-house-asked-us-military-develop-options-panama-canal-offic-rcna195994

35 https://www.konicz.info/2025/01/11/zum-ewigen-krieg/. Em Português: https://www.konicz.info/2025/01/19/a-guerra-perpetua/

36 https://www.konicz.info/2016/12/16/putin-unser-der-du-bist-im-kreml/

37 https://www.newyorker.com/news/q-and-a/why-john-mearsheimer-thinks-donald-trump-is-right-on-ukraine

38 https://www.konicz.info/2022/06/23/was-ist-krisenimperialismus/. Em Português: https://www.konicz.info/2022/07/06/o-que-e-imperialismo-de-crise/

39 https://www.konicz.info/2022/05/24/eine-neue-krisenqualitaet/. Em Português: http://obeco-online.org/tomasz_konicz25.htm

40 https://www.konicz.info/2019/08/30/der-alte-todesdrang-der-neuen-rechten/

41 https://www.youtube.com/watch?v=W_oJf54ZoRE

42 https://www.konicz.info/2022/10/02/die-subjektlose-herrschaft-des-kapitals-2/

43 https://www.konicz.info/2018/07/18/der-exodus-der-geldmenschen/

44 https://www.konicz.info/2025/01/11/zum-ewigen-krieg/. Em Português: https://www.konicz.info/2025/01/19/a-guerra-perpetua/

45 https://www.youtube.com/watch?v=W_oJf54ZoRE

 

Original “Alles muss in Flammen stehen!” em exit-online.org. Antes publicado em konicz.info, 15.03.2025. Tradução de Boaventura Antunes

 

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