A Crise da Hegemonia
Perante o esgotamento dos mecanismos de adiamento da crise neoliberal, tanto nos centros como na periferia – pode a esfera
financeira constituir ainda uma forma estável de reprodução do sistema mundial capitalista tardio na crise sócio-ecológica
manifesta?
Tomasz Konicz
O texto de Tomasz Konicz "A crise da hegemonia. Perante o esgotamento dos mecanismos de adiamento da crise neoliberal, tanto nos centros como na periferia – pode a esfera financeira constituir ainda uma forma estável de reprodução do sistema mundial capitalista tardio na crise sócio-ecológica manifesta?" procura descrever – com enfoque no sistema financeiro mundial – a nova fase de crise em que o sistema mundial capitalista tardio está a entrar após o esgotamento das formas neoliberais de adiamento da crise. A primeira secção analisa as mudanças na esfera financeira dos EUA, incluindo as implicações de longo alcance para a política de crise nos centros ocidentais do sistema mundial, enquanto a segunda secção se centra nos desenvolvimentos na República Popular da China e na periferia e semiperiferia do sistema mundial.
Com o início das dinâmicas inflacionistas nos centros do sistema mundial, os seus bancos centrais viram-se obrigados a pôr termo à política monetária expansiva, que esteve na base da longa bolha de liquidez em que a esfera financeira se encontrava desde a transferência de bolha na sequência do rebentamento da bolha imobiliária transatlântica em 2007-2008. Mas a política monetária restritiva que conseguiu reduzir a inflação também está a desestabilizar a superestrutura financeira que tinha sido inflacionada na era neoliberal, como ficou evidente na crise bancária de Março de 2023. A política de crise nos centros encontra-se assim num impasse manifesto, que foi protelado pelas economias de défice da era neoliberal: A política monetária restritiva conduz à estagnação económica e à desestabilização do sector financeiro, enquanto a política monetária expansionista alimenta a inflação. Assim na próxima fase de crise – como resultado das manobras da política monetária – a estagflação deverá estabelecer-se como condição permanente.
A República Popular da China é vista como parte do sistema capitalista global, que na sua concorrência de crise está exposta aos mesmos processos de crise que o 'Ocidente'. São abordadas as crises económicas e financeiras internas e externas, que o capitalismo de Estado chinês conseguiu retardar durante anos através da intervenção e do dirigismo: a crise da dívida e do imobiliário na China, que assumiu dimensões muito superiores às da bolha imobiliária que rebentou nos EUA e na UE em 2007, bem como a crise da dívida na periferia e semiperiferia do sistema mundial, que eclodiu devido ao fracasso do projecto hegemónico chinês da "Nova Rota da Seda". O projecto de grande escala de Pequim para estabelecer um sistema hegemónico chinês através de um programa de crédito e desenvolvimento falhou, devido à crise global do capital sufocando na sua produtividade.
Com base nestas explicações, o artigo argumenta que o estabelecimento de um novo sistema hegemónico sob a liderança chinesa, que substituiria os EUA em declínio, já não é possível, devido à falta de mecanismos para adiar a crise na fase de crise manifesta que agora se desenrola. Em vez disso existe a ameaça de colapso dos Estados autoritários, de instabilidade geopolítica, em particular na periferia, e de avanço das aspirações fascistas – entendidas como uma forma autoritária e, em última análise, terrorista de dominação capitalista de crise – num sistema mundial que está a passar para a desglobalização. (Apresentação do texto na exit! nº 21, Abril de 2024)
1. Os EUA e os centros ocidentais do sistema mundial * 1.1 O capitalismo neoliberal de bolhas financeiras * 1.2 A grande bolha de liquidez * 1.3 Pandemia e guerra: novo surto de crise, velha resposta à crise * 1.4 A inflação – de volta à estagflação? * 1.5 A armadilha de crise da política e as manobras da política monetária * 1.6 A frágil base do sistema financeiro mundial * 1.7 Perspectivas de descida * 1.8 Proteccionismo e crescentes divergências económicas no Ocidente * 2. A China e a periferia do sistema mundial – não há nenhum novo sistema hegemónico * 2.1 A moeda dos BRICS como alternativa? * 2.2 A falência da Rota da Seda * 2.3 Os novos edifícios em colapso na China * 2.4 A hegemonia perdida da China devido à crise * 3. A nova fase da crise – desglobalização e colapso autoritário do Estado numa crise multipolar permanente * 3.1 Nearshoring e integração vertical como estratégias de crise do capital * 3.2 Dissolução multipolar da hegemonia e escalada da concorrência de crise * 3.3 Formação autoritária, extremismo e colapso do Estado * Bibliografia
1. Os EUA e os centros ocidentais do sistema mundial
The party is over. A iminente desvalorização do valor porá inevitavelmente fim à alta aparentemente eterna dos mercados financeiros. Depois de cerca de quatro décadas neoliberais, em que os mercados financeiros globalizados conduziram a economia mundial através de uma verdadeira economia de bolhas financeiras, a fase inflaccionista que começou com a pandemia levou finalmente esta forma de crise do capitalismo conduzido pelos mercados financeiros ao seu beco sem saída logicamente inerente. De certo modo, o sistema global regressou à constelação de crise da estagflação (inflação elevada com estagnação/recessão económica), que substituiu a "prosperidade do pós-guerra" fordista na década de 1970 e ajudou o neoliberalismo a irromper – ainda que agora a um nível de crise muito mais elevado (Konicz 2021a).
Para podermos avaliar as perspectivas de uma forma pós-neoliberal de prolongamento da crise, será brevemente delineado a seguir, em termos da sua génese e percurso, o modo neoliberal de prolongamento da crise que emergiu na década de 1980, em que as crescentes bolhas especulativas nos mercados financeiros em expansão actuaram como a força motriz de uma economia global cada vez mais a crédito. O neoliberalismo foi, de facto, uma reacção à já referida fase de crise da estagflação nos anos 70, em que o boom fordista do pós-guerra se esgotou e o limite interno do capital se manifestou plenamente.
O limite interno do capital, que – para lá do surgimento no curto prazo de "crises de imposição" (Robert Kurz) de novos regimes de acumulação, como na década de 1930 – se manifestou plenamente na estagflação da década de 1970, resulta da contradição em processo do capital, que procura livrar-se da sua própria substância, o trabalho criador de valor na produção de mercadorias, através de uma racionalização cada vez maior. Na tendência histórica, a massa de trabalho valorizado nos ramos industriais estabelecidos diminui, de modo que esta autocontradição do capital só pode ser mantida através da abertura de novos campos de valorização e novos mercados através do "processar" do capital. Isto pode acontecer através da expansão interna ou externa (especialmente na fase inicial do sistema mundial capitalista), ou do desenvolvimento de novos mercados devido a inovações técnico-científicas. As crises graves, as já referidas crises de imposição, ocorrem quando a valorização do trabalho nos ramos industriais totalmente afectados pela racionalização se dissolve sem que novos sectores industriais possam utilizar os assalariados libertados – foi o que aconteceu na década de 1930, após a eclosão da crise económica mundial em 1929, uma vez que o fordismo só conheceu o seu ponto de viragem com a mobilização total e totalitária da Segunda Guerra Mundial. O "milagre económico" do pós-guerra, com a automobilização (para mais pormenores ver Kurz 1999, 364ss., 539ss. e Kurz 2020) das sociedades centrais capitalistas, baseou-se assim no facto de não ter havido desmobilização após o fim da guerra – a indústria passou da produção de tanques para a produção de automóveis.
Este regime de acumulação fordista, baseado na valorização maciça da força de trabalho nas linhas de montagem do sistema de Taylor, esgotou-se no final dos anos 60 e início dos anos 70 sem se abrirem novos campos de valorização para os assalariados "libertados". O crescimento económico abrandou até à estagnação e à recessão, o desemprego em massa regressou aos centros do sistema mundial nos anos 70, enquanto as medidas de estímulo económico e a política de baixas taxas de juro do keynesianismo então hegemónico provocaram o aumento da dívida nacional e da inflação. Decisiva para a irreversibilidade desta manifestação do limite interno foi a então recém-surgida indústria informática e das tecnologias da informação, na qual foram criados "postos de trabalho", mas cujo efeito económico global consistiu num tremendo surto de racionalização, que afastou muito mais trabalho da produção de mercadorias através da automatização do que aquele que foi criado. (1) E foi precisamente este fracasso do keynesianismo na estagflação dos anos 70 que abriu caminho ao neoliberalismo.
1.1 O capitalismo neoliberal de bolhas financeiras
A reacção do sistema foi a fuga para a frente, que constituiu o núcleo económico do neoliberalismo: privação de direitos dos trabalhadores assalariados, desencadeamento dos mercados financeiros, globalização da torre de dívidas através de circuitos de défice e de bolhas especulativas no âmbito da financeirização global do capitalismo, em que o sector financeiro se tornou o sector dominante da economia. A esfera financeira parecia assim assumir a função de um sector de ponta, um "motor" da economia. O facto de isto não poder funcionar durante longos períodos de tempo, uma vez que na esfera financeira não há valorização do trabalho criador de valor, foi evidenciado pelos crescentes abalos nos mercados financeiros que sacudiram o sistema financeiro global desde a década de 1990.
Em última análise, a história económica da era neoliberal pode assim ser entendida como uma sucessão de bolhas especulativas que cresceram em dimensão e dinâmica. Após uma série de crises financeiras regionais na década de 1990, foi criada uma verdadeira economia global de bolhas financeiras a partir da segunda metade da década de 1990. Bolhas especulativas cada vez maiores, que provocam terramotos cada vez maiores nos mercados financeiros quando rebentam, substituem-se umas às outras – com a política a tornar-se um motor desta dinâmica e a ter de "amortecer" as consequências do rebentamento das bolhas com meios cada vez mais extremos.
E foram estas "medidas de resgate" por parte da política após o rebentamento de cada bolha que evitaram um colapso económico a curto prazo – e que, ao mesmo tempo, lançaram as bases para a dinâmica especulativa seguinte, ainda maior. As elites políticas funcionais tornaram-se assim os motores desta instável economia de bolhas financeiras. Por conseguinte, o neoliberalismo, cuja financeirização foi iniciada pela política anti-inflaccionista de taxas de juro elevadas do presidente da Reserva Federal, Paul Volcker (1979-87), caracteriza-se por uma tendência para a descida das taxas de juro a partir da segunda metade da década de 1980. Os políticos reagiram a cada crise no sector financeiro baixando as taxas de juro directoras para apoiar o sector financeiro e a economia, sendo a fase subsequente de taxas de juro elevadas mais baixa e/ou mais curta do que a anterior.
A política de taxas de juro elevadas da Reserva Federal sob a égide de Volcker, que tornou o sector financeiro dos EUA atractivo para o capital que procurava investimento, foi a faísca inicial para a expansão neoliberal da esfera financeira, que criou uma procura gerada a crédito para a produção de mercadorias em declínio. A dívida global tem vindo a aumentar mais rapidamente do que a produção económica global desde os anos 80, com circuitos de défice globais a desenvolverem-se como parte da globalização a partir dos anos 90 (em particular o circuito de défice do Pacífico entre os EUA e a China), em que os Estados Unidos, que estavam em processo de desindustrialização, desenvolveram défices comerciais gigantescos com a China, o Japão e a RFA, para se tornarem o mercado mais importante para investimentos financeiros, por exemplo em obrigações americanas, com base no dólar como moeda de reserva mundial. Daí resultaram os já referidos circuitos de défice: ao fluxo de mercadorias para os EUA corresponderam os fluxos financeiros de títulos do Estado americano para os países exportadores, que, sobretudo no caso da China, se tornaram por vezes os mais importantes credores de Washington. (2)
A bolha especulativa constituiu assim o modo de realização do crescimento gerado a crédito na era neoliberal, (3) em certa medida uma simulação da valorização do capital na produção de mercadorias realizada a crédito. De facto, esta economia de bolhas financeiras era uma antecipação da valorização futura do capital, que era empurrada cada vez mais para o futuro. As bolhas atingiram proporções cada vez maiores, o que – quando inevitavelmente rebentaram – também aumentou o seu potencial destrutivo e os custos de estabilização da política de crise. Desde a ascensão do neoliberalismo e da "financeirização" do capitalismo que a acompanha, o sistema mundial capitalista tardio encontra-se, de facto, numa economia de bolhas em constante crescimento, gerando as montanhas de dívidas que mantêm uma hiperprodutiva produção de mercadorias através da procura financiada a crédito.
Às crises regionais do final do século XX – a crise asiática em 1997 (4) e o crash financeiro na Rússia em 1998 (5) – seguiu-se a grande bolha especulativa com acções de alta tecnologia nos EUA e na Europa, a chamada bolha dotcom, (6) que rebentou em Março de 2000. Esta foi a primeira alta global que afectou quase todos os centros do sistema mundial e desencadeou uma breve recessão. Este mercado em alta, que começou com o boom da Internet, foi impulsionado pela especulação sobre um novo regime de acumulação, um novo sector económico de ponta no qual o trabalho seria valorizado em massa. Depois de esta esperança se ter desvanecido, uma vez que a aplicação da digitalização na economia global fez desaparecer muito mais postos de trabalho do que os criados no sector da alta tecnologia, seguiu-se o grande crash da "nova economia" no Nasdaq e no "novo mercado", (7) que obrigou a política monetária a intervir rapidamente para combater a recessão que se seguiu: a taxa de juro directora nos EUA foi reduzida até um ponto percentual entre 2002 e 2004.
Isto desencadeou um mecanismo característico da era neoliberal, que equivale a uma transferência de bolha: a política de crise, que combateu as consequências do rebentamento da especulação, criou as condições para a próxima alta, ainda maior. O fogo especulativo foi extinto com gasolina. A política de baixas taxas de juro da Reserva Federal dos EUA entre 2002 e 2004, que amorteceu as consequências económicas negativas desta dinâmica especulativa em colapso nas bolsas de alta tecnologia, criou as condições ideais para o surgimento da nova formação de bolhas, ainda maiores: As bolhas imobiliárias que rebentaram em 2007/2008 e devastaram economicamente grande parte da Europa e dos EUA.
As baixas taxas de juro tornaram possível a muitos cidadãos americanos sem dinheiro comprar a crédito imóveis, que funcionavam cada vez mais como objectos especulativos. O sector financeiro desenvolveu assim uma nova linha de negócio, em que as hipotecas com diferentes notações de crédito eram agrupadas em títulos do mercado financeiro, as titularizações de hipotecas, e transaccionadas livremente nos mercados financeiros mundiais. O boom imobiliário espalhou-se dos EUA para grande parte da Europa: Espanha, Irlanda, Reino Unido e algumas regiões da Europa de Leste. Durante alguns anos, as economias afectadas viveram um febril boom da construção, do qual beneficiaram também países ligados à exportação, como a Alemanha. A actividade de construção que acompanhou o boom fez da indústria da construção um dos mais importantes motores económicos, o que levou a uma forte contracção económica após o rebentamento da bolha em 2008, resultando numa crise económica mundial em 2009.
As medidas de crise subsequentes ofuscaram de longe a resposta da política monetária após o rebentamento da bolha das empresas "dotcom". Durante este surto de crise, os decisores políticos não só gastaram biliões de dólares como parte das medidas de estímulo económico para combater a recessão que começou em 2009. Ao mesmo tempo, foi seguida uma política monetária expansionista sem precedentes históricos, com a qual as taxas de juro foram maciçamente reduzidas. Entre 2009 e 2015, prevaleceu de facto uma política de taxas de juro zero. No entanto, nem isso foi suficiente para evitar o colapso do sistema financeiro mundial. As titularizações hipotecárias, que eram antes uma licença para imprimir dinheiro, transformaram-se em lixo tóxico do mercado financeiro com o colapso do banco de investimento Lehman Brothers em 2008, o que levou a esfera financeira a um estado de choque e paralisou o comércio interbancário. E este lixo do mercado financeiro teve de ser eliminado pelos bancos centrais, para evitar que a economia mundial entrasse em colapso devido à paralisia do sistema financeiro (os bancos desconfiavam uns dos outros, uma vez que não era claro quem detinha títulos-lixo nos seus balanços).
1.2 A grande bolha de liquidez
Os bancos centrais dos Estados Unidos e da zona euro começaram então a comprar estes "títulos-lixo" no âmbito do programa de impressão de dinheiro conhecido como "quantitative easing", a fim de aliviar o estado de choque dos bancos e evitar o congelamento total de todos os empréstimos. Esta medida espontânea de crise solidificou-se nos anos seguintes e tornou-se a base da grande bolha de liquidez que se formou no sistema financeiro mundial entre 2009 e 2020. Isto aplica-se tanto à Reserva Federal como ao BCE, que teve de lidar durante anos com as consequências da crise do euro e com as conexas lutas de poder entre Berlim e a periferia do sul da Europa. Inicialmente, os bancos centrais adquiriram sobretudo os títulos hipotecários acima referidos, mas muito rapidamente passaram a adquirir sobretudo obrigações do Estado, para financiar as ajudas públicas globais e os programas de estímulo económico. No decurso da bolha de liquidez, desenvolveu-se um verdadeiro capitalismo de banco central, em que a política monetária se tornou o factor económico central.
Em princípio, o procedimento destes programas de compra do banco central é relativamente simples: o banco central compra nos mercados financeiros instrumentos de dívida, como obrigações do Estado ou titularizações hipotecárias de má qualidade (2008), "pagando" estas compras de títulos com dinheiro que ele próprio criou. Em consequência, estes títulos desaparecem do circuito de mercado, estabilizando os mercados e baixando as taxas de juro das obrigações. Ao mesmo tempo, é gerado dinheiro que pode agora criar mais procura na superestrutura financeira – enquanto os títulos comprados ficam estacionados nos balanços dos bancos centrais, que actuam como depósitos de resíduos perigosos para o sistema financeiro global. O dinheiro acabado de imprimir, a "liquidez" que foi injectada nos mercados, faz com que os preços nos mercados financeiros subam: entram num boom, numa bolha. Podemos, portanto, falar da já referida bolha de liquidez, que foi desencadeada por mais uma transferência de bolha – possibilitada pela compra de títulos pelos bancos centrais.
Esta alquimia da crise capitalista tardia pareceu funcionar na perfeição durante anos: A economia foi estimulada pela procura gerada a crédito, as taxas de juro mantiveram-se baixas graças à "flexibilização quantitativa", a inflação permaneceu baixa enquanto a liquidez adicional criada circulou na superestrutura financeira – e os mercados bolsistas continuaram a subir.
Desde o rebentamento da bolha imobiliária em 2008 e da subsequente bolha de liquidez, os preços das acções subiram quase em paralelo com o crescimento dos balanços dos bancos centrais, o que identifica a já referida "flexibilização quantitativa" da política monetária como o principal motor dos preços nos mercados financeiros.
Mas não foram apenas os mercados de acções que se destacaram num boom de liquidez na década que se seguiu ao rebentamento da bolha imobiliária transatlântica. A esfera financeira estava numa "bolha de tudo", uma bolha que abrangia muitos sectores e classes de activos dos mercados financeiros: obrigações, propriedades, criptomoedas, arte e outros activos. A grande inundação de dinheiro dos bancos centrais penetrou em quase todas as áreas da esfera financeira para criar a inflação correspondente nos preços dos mercados financeiros. Na sua fase tardia, após a eclosão da pandemia com os seus pacotes de estímulo de biliões, isto levou a fenómenos como a especulação em enxame por parte de pequenos investidores em acções meme, como o papel da cadeia de retalho de videojogos Gamestop, que foi favorecida por pagamentos directos e ajudas pontuais durante a pandemia (Konicz 2021b).
Em publicações de negócios como o Financial Times (FT), (8) esta ligação entre a inundação de dinheiro e o boom dos mercados financeiros foi abertamente discutida: Segundo elas, a liquidez injectada nos mercados entre o início de 2020 e meados de 2022 teve um impacto "duas a duas vezes e meia" maior na evolução dos mercados bolsistas do que a economia pouco animada. Os investidores estavam, portanto, muito mais preocupados com a secagem da liquidez na sequência da reviravolta das taxas de juro impulsionada pela inflação do que com as perspectivas de crescimento, escreveu o FT em Julho de 2022. Os bancos centrais tinham-se tornado efectivamente a força motriz central do neoliberal capitalismo tardio das bolhas financeiras, que, em última análise, não passa de uma expressão da administração neoliberal das crises levada ao extremo, que se negava a si própria. Mais do que a formação de um capitalismo financeiro de banco central patrocinado e coordenado pelo Estado, que já carrega a negação do neoliberalismo e o surgimento da próxima fase de crise, dificilmente é possível no quadro da economia de bolhas neoliberal.
1.3 Pandemia e guerra: novo surto de crise, velha resposta à crise
Foi o surto de crise iniciado com a pandemia na Primavera de 2020 que pôs fim não só a esta bolha de liquidez, mas também ao capitalismo neoliberal de bolhas financeiras, o mais tardar após a eclosão da guerra da Ucrânia em 2022. Inicialmente a política de crise burguesa recorreu simplesmente aos mesmos métodos de transferência de bolha de 2007-09 acima descritos, sendo que o âmbito destes métodos – correspondente ao nível mais elevado da crise – foi extremamente alargado.
Uma comparação das medidas de crise durante a luta contra a pandemia com as de 2008 torna claro que o surto de crise que começou em 2020 atingiu de facto dimensões muito maiores do que a turbulência global da economia mundial após o rebentamento das bolhas imobiliárias nos EUA e na UE. Num estudo, a famosa consultora de gestão McKinsey (que esteve envolvida no planeamento do sistema Hartz IV, por exemplo) quantificou o alcance de todas as medidas de crise (9) postas em prática em resposta ao surto de crise global desencadeado pela pandemia. Estas medidas totalizaram dez biliões de dólares americanos (ou seja, 10 000 milhares de milhões) só no primeiro semestre de 2020. A McKinsey concluiu que esta soma astronómica, nos primeiros dois meses após o início da pandemia e a recessão económica, excedeu em cerca de 300% as despesas relacionadas com a crise de 2008 e 2009. Nessa altura, foram gastos cerca de três biliões de dólares para combater as consequências económicas do rebentamento das bolhas imobiliárias, segundo a McKinsey. As estimativas do FMI do Outono de 2020 chegaram mesmo a assumir que a pandemia custaria aos contribuintes cerca de 11,7 biliões de dólares a nível mundial. Este montante corresponde a cerca de 12 por cento da produção económica mundial, observou o Wall Street Journal. (10)
Enquanto o capitalismo de Estado chinês funcionou como a grande tábua de salvação em 2008 e 2009, graças a extensos programas de estímulo económico, o foco mudou significativamente em 2020, de acordo com a McKinsey. Em relação à produção económica (PIB), as medidas de crise na República Federal da Alemanha foram as maiores: ascenderam a cerca de 33% do PIB, enquanto os pacotes de estímulo económico em 2008/09 – como o infame programa de abate de veículos – totalizaram apenas 3,5% do PIB da Alemanha na altura. Assim, no caso de Berlim, podemos de facto falar de um aumento de dez vezes no âmbito das medidas de crise! As medidas de apoio atingiram dimensões semelhantes no Japão (22% do PIB em comparação com 2% em 2008), em França (dez vezes mais, para 14,6%) e no Reino Unido (cerca de 14,5%). Nos Estados Unidos, as despesas adicionais relacionadas com a crise tomadas pelo Estado, já altamente endividado, totalizaram 12,1% da produção económica, em comparação com cerca de 4,9% em 2008. Na China, pelo contrário, as despesas relacionadas com a crise em 2020 ascenderam a menos de cinco por cento do PIB.
A dimensão da impressão de dinheiro pelos bancos centrais, que tornou possíveis estas medidas de estabilização e de estímulo económico, torna-se clara a partir da evolução histórica dos balanços dos bancos centrais Fed e BCE. Na véspera da crise de 2008/09, a Reserva Federal dos EUA tinha um balanço total de menos de um bilião de dólares americanos, que disparou para mais de dois biliões em poucos meses, à medida que comprava diligentemente títulos hipotecários. Em 2015, o balanço da Reserva Federal tinha mesmo aumentado para mais de quatro biliões de dólares. No Outono de 2020, meio ano após o início da crise induzida pela pandemia, a Reserva Federal dos EUA tinha acumulado "títulos" no valor de mais de sete biliões de dólares americanos. Aproximadamente no mesmo período após o início da crise, em que o balanço total da Reserva Federal aumentou cerca de um bilião em 2008, explodiu em cerca de três biliões em 2020 (o máximo histórico do balanço até hoje foi de cerca de 8,5 biliões em meados de 2022). A situação não é muito melhor na UE: O total do balanço do BCE aumentou do equivalente a 1,7 biliões de dólares no início da crise em 2008 para cerca de 4,5 biliões de dólares no início de 2019 após a crise do euro, atingindo um máximo histórico de mais de 9 biliões de dólares no início de 2022.
Inicialmente, esta estratégia de escalada, em que as medidas de crise de 2008/2009 – programas de estímulo económico e impressão de dinheiro pelos bancos centrais – foram levadas ao extremo, parecia funcionar. A esfera financeira descolou para um novo boom febril. Os media norte-americanos descreveram o que aconteceu nos mercados na Primavera de 2021 como a "mãe de todas as bolhas do mercado de acções". (11) Devido à forte subida dos mercados de acções no meio de uma grave recessão, desenvolveu-se um nível de preços sem precedentes históricos nos mercados. O valor total de mercado de todas as empresas americanas cotadas na bolsa (o chamado índice Wilshire 5000) subiu para mais de 125% do produto nacional bruto dos Estados Unidos, ultrapassando em cerca de 25% o valor máximo no auge da bolha dotcom em 2000 (ou seja, o boom especulativo das acções de alta tecnologia no início da era da Internet). Nunca antes os mercados de acções norte-americanos tinham registado uma subida tão acentuada numa fase de crise como durante a pandemia.
1.4 A inflação – de volta à estagflação?
Desta vez, porém, esta forma estabelecida de adiamento neoliberal da crise já não funcionou. Com a eclosão da guerra na Ucrânia, o mais tardar, solidificou-se um fenómeno de crise já virulento que fez fracassar esta transferência de bolha e pôs fim à economia neoliberal de bolhas financeiras: a inflação, que tinha sido quase esquecida no neoliberalismo. Tanto nos Estados Unidos como na zona euro, esta vaga de inflação atingiu taxas de crescimento de dois dígitos em 2022 – e isso obrigou a política de crise a combater a inflação, o que equivaleu a abandonar a rota da política monetária expansionista no âmbito da transferência de bolhas.
Ironicamente prevalece agora uma constelação económica semelhante à das vésperas do neoliberalismo, durante o período de estagflação mencionado no início, quando, após o fim do boom do pós-guerra, uma economia coxa interagiu com uma inflação por vezes de dois dígitos, que o keynesianismo então dominante alimentou com taxas de juro baixas e programas de estímulo económico (Konicz 2021a). A crise petrolífera da década de 1970 (à semelhança da pandemia de 2020) foi apenas um factor periférico no desenvolvimento do longo período de estagflação, que teve a sua causa central – como já foi referido – no fim do longo boom do pós-guerra, alimentado pela indústria automóvel e pelo modo de produção fordista.
A desvalorização do dinheiro que começou em 2020 deve-se a vários factores, tanto externos como internos (Konicz 2021c). A inflação actual é, de facto, impulsionada por uma estreita interacção dos limites interno e externo do capital. Uma economia global sobre-endividada e dependente do crédito, que carece de um novo regime de acumulação devido aos constantes avanços da produtividade promovidos pela concorrência, está cada vez mais a deparar-se com os seus limites ecológicos, na sua compulsão de valorização financiada pela dívida. A escassez cada vez mais evidente de recursos, incluindo os estrangulamentos do aprovisionamento, não é apenas o resultado da guerra económica entre a Rússia e o Ocidente por causa da Ucrânia, dos estrangulamentos do aprovisionamento relacionados com a pandemia e da sobrecarga das infra-estruturas degradadas em muitos países capitalistas centrais, depois de terem sido sistematicamente subfinanciadas ou mesmo privatizadas nas décadas neoliberais. As infra-estruturas sociais incluem também o sistema de saúde e o sistema de pensões, igualmente subfinanciados e dependentes de processos de endividamento – e que desencadearam uma verdadeira "crise dos cuidados". E é precisamente esta crise do sistema de saúde que está a tornar as ideias do darwinismo social novamente aceitáveis.
O factor decisivo é o constante aumento da procura da máquina de valorização capitalista global, que está a atingir os seus limites ecológicos e não só produz montanhas de mercadorias para a lixeira (palavra-chave: obsolescência planeada), como também queima vastas quantidades de recursos para projectos especulativos em pirâmide no âmbito da economia neoliberal de bolhas financeiras – tais como bolhas imobiliárias absurdas, como acontece actualmente na China e anteriormente nos EUA e na Europa. Não só a crescente fome de recursos do dinheiro que actua como capital, que tem de se transformar em mais dinheiro através da produção de mercadorias, está a aumentar a procura de muitas matérias-primas fósseis tradicionais – como o carvão prejudicial ao clima – como também as matérias-primas necessárias para uma transformação ecológica (como as terras raras e o lítio) estão a ser muito procuradas, estando a surgir estrangulamentos e lacunas na oferta. Além disso, as consequências da crise climática e da guerra na Ucrânia estão a alimentar a inflação alimentar. O aumento dos preços dos alimentos está a atingir rapidamente níveis que põem em risco a vida de muitas pessoas na periferia do sistema mundial capitalista, devido ao aumento das catástrofes ambientais.
A estes factores "externos", como a crise climática, a escassez de recursos, os estrangulamentos do aprovisionamento e a guerra económica entre a Eurásia e o Ocidente, juntam-se os factores "internos" da inflação, que resultam dos constrangimentos internos do capital que asfixia na sua produtividade. A inflação manifesta-se de duas formas no processo de crise económica: na esfera financeira, como inflação dos preços dos títulos, que atingem alturas vertiginosas, e na "economia real", como inflação dos preços dos produtos de base, que pôde ser mantida sob controlo até 2020. Um elemento central da apologética neoliberal tem invocado a aparente estabilidade dos preços desde o fim do keynesianismo como um feito social importante para os assalariados. Os mercados financeiros mundiais, que atingiram dimensões absurdas, encerram eles próprios um enorme potencial inflaccionista, que só pode ser evitado através de medidas de estabilização da política de crise. Se uma bolha que rebenta nos mercados financeiros já não puder ser interceptada por medidas de crise e transformada na formação de novas bolhas, existe a ameaça de uma fuga maciça de capital da esfera financeira, o que poderia levar à hiperinflação – que representa, de facto, uma forma possível da desvalorização objectivamente iminente do valor que pôde ser adiada durante tanto tempo pela política de crise capitalista.
1.5 A armadilha de crise da política e as manobras da política monetária
No entanto, o adiamento neoliberal da crise chegou ao fim precisamente porque a política se encontra numa manifesta armadilha de crise, numa aporia que impõe às elites funcionais restrições mutuamente excluidoras. As elites funcionais teriam de estimular e arrefecer a economia ao mesmo tempo: Teriam de baixar as taxas de juro e continuar a imprimir dinheiro para apoiar a economia e, sobretudo, os instáveis mercados financeiros. Ao mesmo tempo, porém, os bancos centrais teriam de aumentar as taxas de juro e adoptar uma política monetária restritiva, a fim de conter a inflação – na medida em que tal seja possível apenas através da política monetária, tendo em conta as causas acima descritas.
A armadilha de crise que paira sobre a política de crise capitalista consiste, portanto, no facto de esta só poder escolher o curso da crise inerente ao sistema: Inflação ou deflação, mais inflação da esfera financeira ou um colapso do sistema financeiro global. Deverá a inflação ser combatida – à custa de uma recessão que inclua uma crise da dívida e a ameaça de uma espiral deflacionária, como a que devastou o sul da Europa sob o ditame de austeridade de Schäuble (Konicz 2015)? Ou devem ser mantidas as medidas de estímulo económico e a política monetária expansiva – mesmo à custa da ameaça de hiperinflação? Deflação ou inflação: existem apenas diferentes caminhos de crise ao longo dos quais a irreversível desvalorização do valor pode ter lugar. Ou o dinheiro é desvalorizado na sua capacidade de equivalente geral do valor (inflação) ou o processo de desvalorização afecta o capital na sua forma de capital constante e variável, como fábricas, máquinas e pessoas dependentes do salário, que subitamente se tornam economicamente "supérfluas".
Por outro lado, os bancos centrais teriam de baixar as taxas de juro e, ao mesmo tempo, aumentá-las – e, sobretudo, teriam de deixar de comprar "títulos" e obrigações, que têm sido utilizados para financiar os défices públicos e fornecer cada vez mais liquidez à inchada esfera financeira. Para fazer a quadratura do círculo, pelo menos em certa medida, os bancos centrais parecem estar a mudar para uma espécie de esquizofrenia da política monetária, em que a tendência geral para reduzir os balanços dos bancos se transforma em curtos episódios de política monetária expansiva em tempos de crise. As reduzidas compras de títulos públicos e privados pelos bancos centrais transformam-se numa política de crise expansiva de "custe o que custar" em caso de crise, com biliões a serem gastos na estabilização do sistema financeiro.
A esperança da política monetária parece ser que os totais dos balanços dos bancos centrais possam ser reduzidos a longo prazo, apesar das intervenções a curto prazo nos mercados financeiros, que se encontram, em certa medida, em estado de retracção. Esta mudança na política monetária, de um curso de combate à inflação para o modo de crise de impressão extrema de dinheiro, pode ser vista muito claramente no surto de crise da Primavera de 2023, quando os bancos nos EUA e na Europa entraram em dificuldades devido à política de taxas de juro elevadas. A Fed reduziu os seus activos totais de cerca de 8,9 biliões de dólares em Abril de 2022 para cerca de 8,38 biliões de dólares em Fevereiro de 2023. Quando esta retirada de liquidez desencadeou o terramoto bancário em Março de 2023, os activos totais da Fed dispararam para 8,73 biliões de dólares. A estabilização foi bem sucedida – pelo menos temporariamente – e, em Outubro de 2023, o total de activos da Fed desceu gradualmente para menos de sete biliões de dólares. (12)
Após algumas semanas de gigantesca expansão monetária, a Fed regressou assim à política monetária restritiva no modo de luta contra a inflação. E não se trata de uma anomalia puramente americana. A redução do total de activos, interrompida por episódios de política monetária expansionista, também se tem verificado no BCE e, em menor grau, no banco central do Japão desde 2022, pelo que o balanço total dos três bancos centrais diminuiu de cerca de 25 biliões de dólares no final de 2021 para cerca de 21 biliões em Agosto de 2023. (13) Este cálculo parece, portanto, funcionar até Novembro de 2023 – mas apenas enquanto a esfera financeira não for abalada por outro surto de crise grave, que por sua vez exigiria uma nova inundação de dinheiro.
1.6 A frágil base do sistema financeiro mundial
O terramoto bancário de Março de 2023, desencadeado pelo colapso do Silicon Valley Bank (SVB) da Califórnia, ilustrou em termos concretos até que ponto a crise já tinha corroído os alicerces da financeirização neoliberal do capitalismo. Há uma diferença importante entre a turbulência de Março de 2023 e o surto de crise de 2007-2009: a grande especulação imobiliária transatlântica foi acompanhada pela emissão em massa de duvidosos títulos hipotecários subprime, que se revelaram tóxicos após o rebentamento da bolha em 2007 e puseram em perigo o sistema financeiro mundial. Mas em 2023 foram as obrigações do Estado, consideradas sem risco, que ameaçaram arruinar os bancos afectados. Estes títulos não são comprados com o objectivo de especulação, como foi o caso das hipotecas agrupadas em "títulos" durante a bolha imobiliária, mas como garantia – especialmente em tempos de incerteza.
Se o capital precisa de ser estacionado em segurança, se os fundos de pensões precisam de garantir um rendimento seguro, embora baixo, se as companhias de seguros querem estacionar o seu dinheiro, então o dinheiro flui para as obrigações dos EUA ou para as obrigações alemãs, que são consideradas a base estável do sistema financeiro global, a espinha dorsal da financeirização neoliberal do capitalismo. Quando se mede este betão sobre o qual foi construído o castelo de cartas financeiro neoliberal nas últimas décadas, o bilião é a unidade de medida adequada: com um volume de mais de 22 biliões de dólares, o mercado de obrigações do Estado norte-americano tinha o maior volume do mundo no final de 2020, seguido da China (20 biliões) e do Japão (12 biliões). (14) O volume do mercado global valia 128,3 biliões de dólares, dos quais 68% eram dívida do sector público e 32% eram dívida das empresas.
Tal como as acções, as obrigações do Estado são transaccionadas a um valor de mercado que pode diferir do seu valor nominal no momento da emissão. A evolução das taxas de juro e o valor de mercado das obrigações do tesouro são inversamente proporcionais. Se as taxas de juro descem, os preços das obrigações sobem. Inversamente, quando as taxas de juro sobem, os preços das obrigações descem. E isto também é lógico: as obrigações emitidas numa fase de taxas de juro baixas perdem valor de mercado numa fase de taxas de juro altas, devido às suas taxas de juro mais baixas. E é precisamente esta fase de taxas de juro elevadas, que os bancos centrais iniciaram para combater a inflação, que conduziu a uma queda maciça do valor das obrigações do Estado.
Os desvios entre o valor nominal e o valor de mercado das obrigações do Estado não são problemáticos, desde que não tenham de ser vendidas prematuramente. Como explicado, as obrigações do Estado são utilizadas como investimentos seguros para aplicações a longo prazo com juros baixos. Só é problemático se os bancos tiverem de vender estes títulos prematuramente numa fase de juros elevados devido a estrangulamentos de liquidez. Foi precisamente este o caso do SVB, que operava em Silicon Valley, onde muitas empresas estão a sofrer com a política de taxas de juro elevadas da Fed e têm de recorrer aos seus depósitos com mais frequência do que a média. Foi, portanto, a venda de emergência de obrigações do Estado americanas que deu origem à falência do SVB. Os rumores de problemas de liquidez no banco das TI desencadearam então uma corrida ao banco, em que os clientes levantaram 42 mil milhões de dólares no espaço de um dia.
A política de taxas de juro elevadas da Fed, utilizada para combater a inflação, provocou a queda do preço dos títulos de dívida pública e o aumento das necessidades de financiamento dos principais clientes dos bancos afectados. A eclosão da crise obrigou a política monetária a efetuar a já referida inversão de marcha a curto prazo, em que o dinheiro foi injectado nos mercados, (15) através da concessão de liquidez aos bancos em condições especiais. Os bancos têm, de facto, de fornecer garantias, principalmente obrigações do Estado. O ponto alto das medidas de crise na Primavera de 2023: os títulos podiam servir de garantia pelo seu valor nominal e não pelo seu valor de mercado actual. Normalmente, os bancos têm de depositar os seus títulos ao valor de mercado como garantia se quiserem receber liquidez adicional do banco central. Assim, o banco central suspendeu efectivamente o mecanismo de mercado para estabilizar o sector financeiro em crise.
1.7 Perspectivas de descida
Da perspectiva do interior do capitalismo, não havia alternativa a estas medidas de política monetária expansiva, uma vez que o desenvolvimento nos mercados de obrigações, a já referida "base" da esfera financeira, teve um impacto em todo o sector financeiro. No entanto, também não há alternativa à luta contra a inflação, que foi prosseguida após a breve fase de crise da impressão de dinheiro.
O terramoto bancário de Março de 2023 marca assim um ponto de viragem decisivo no desenrolar histórico da crise, uma vez que a esfera financeira já não se encontra na bolha de liquidez estável que surgiu após o colapso do Lehman Brothers no decurso da resposta à crise a partir de 2009. O boom nos mercados bolsistas, como parte da bolha de liquidez, foi alimentado pela impressão de dinheiro pelos bancos centrais numa longa fase ascendente, até que ocorreu um aparente desacoplamento na Primavera de 2023: Os balanços dos bancos centrais diminuíram, enquanto os mercados bolsistas viveram uma breve fase de recuperação a partir de Março de 2023. Este mercado em alta de curta duração manteve-se até Agosto de 2023.
O que impulsionou os mercados accionistas no fugaz mercado em alta de 2023? A breve fase de crise da política monetária expansionista em Março de 2023 pode ser vista como uma "faísca inicial" monetária que proporcionou aos mercados vários meses de máximos, que rapidamente se desvaneceram após a secagem da liquidez. Um olhar sobre os ciclos especulativos do passado pode fornecer algumas pistas. Por um lado, este mercado em alta faz lembrar a bolha das empresas "dotcom" no início do século XXI, quando o advento da Internet foi acompanhado de esperanças de um novo regime de acumulação e de uma mania especulativa em acções de alta tecnologia, que se desmoronou na segunda metade da década de 2000. Desta vez é a especulação sobre os avanços no desenvolvimento da inteligência artificial que está a alimentar um boom semelhante nas acções – especialmente em acções de alta tecnologia como a Nvidia. Além disso, as taxas de juro elevadas, à semelhança da fase de juros altos do início da era neoliberal, nos anos 80, têm um efeito ambivalente – especialmente nos EUA, que, apesar de todos os processos de erosão, continuam a ser considerados um porto seguro para o capital em tempos de crise. As taxas de juro elevadas desestabilizam o sistema financeiro sobreendividado, sobretudo na periferia, mas também conduzem a entradas de capital nos centros, o que pode contrariar parcialmente esta situação. Isto aplica-se sobretudo aos Estados Unidos, que estão actualmente envolvidos numa luta hegemónica com a China pela posição do dólar como moeda mundial. Os capitais que ficaram estacionados em segurança durante a última vaga da crise procuram agora ganhar mais uma vez um dólar rápido no grande boom da IA – antes que também esta bolha rebente.
No entanto, estas forças motrizes especulativas – a esperança de novos mercados e uma fase de taxas de juro elevadas – não são nem de perto nem de longe tão estáveis e duradouras como nas fases históricas de ascensão desta economia de bolhas financeiras nos anos 90 e na primeira década do século XXI; são antes fenómenos transitórios fugazes. Por conseguinte, um tal boom especulativo das acções não pode durar enquanto não for apoiado por uma política monetária expansionista renovada, como nos 12 anos anteriores ao advento da inflação. Um renascimento dos mercados bolsistas não pode ser sustentado sem medidas permanentes de apoio à política monetária. Também neste caso ajuda um olhar sobre a história da grande bolha de liquidez, onde também houve fases em que os mercados bolsistas em expansão se desacoplaram da estagnação do crescimento dos balanços dos bancos centrais. Isto aconteceu normalmente na véspera de um surto de crise, como em 2019, pouco antes de a pandemia voltar a colocar o sobreaquecido castelo de cartas financeiro global em modo de crise. O fugaz boom das acções dos EUA em 2023 também foi isolado; já não fazia parte de uma bolha de liquidez geral – pelo menos na Europa – a já referida "bolha de tudo". Os mercados imobiliários na Alemanha e no Reino Unido estão em crise, e mesmo nos EUA o mercado estagnado de imóveis e habitações já não funciona como um motor económico.
Também aqui se torna evidente a necessidade de a política monetária oscilar entre uma política monetária expansionista e restritiva. Devido à teimosa inflação, a Fed manterá as taxas de juro elevadas até que algo na esfera financeira "rebente" novamente, tornando necessárias medidas de resgate e a impressão de dinheiro. Fases de boom de curto prazo na esfera financeira após intervenções de crise, seguidas de estagnação e novas distorções – esta tendência secular está a emergir na esfera financeira pós-neoliberal, que deixará de funcionar como um motor económico, uma vez que já não consegue gerar bolhas financeiras estáveis e de longo prazo.
Estes condicionalismos contraditórios da política de crise do capitalismo tardio também resultam na tendência contínua para a estagflação, ou seja, para uma elevada desvalorização da moeda numa economia em estagnação. A estagflação tornar-se-á o "novo normal" à medida que a crise se for desenrolando. Dependendo da situação de crise actual, da impressão de moeda ou do aperto das taxas de juro, é provável que se verifiquem diferentes momentos de estagflação: estagnação em fases de política monetária restritiva, aceleração da inflação na sequência de medidas de política monetária expansiva. Uma oscilação na evolução da crise entre inflação e recessão/estagnação será provavelmente o resultado da gestão desta contradição pela política de crise, desde que nenhum surto de crise grave provoque um colapso catastrófico do sistema financeiro mundial.
Em suma, a diferença fundamental entre a actual fase de administração de crises e a economia neoliberal das bolhas é que, devido à inflação, a esfera financeira já não pode servir como um gerador estável de crescimento gerado a crédito, como acontecia no neoliberalismo. Mesmo o mercado de obrigações do Estado dos países centrais, outrora considerado um porto seguro e a base do sistema financeiro, está a tornar-se instável e um factor de instabilidade. Como o crescimento do crédito já não pode ser mantido a longo prazo, nem mesmo nos centros, o período de estagflação, juntamente com as manobras de política monetária acima descritas, degenera efectivamente numa mera administração das crises e da miséria. Esta manobra da política de crise, que se manifesta em esforços contraditórios para estabilizar uma esfera financeira cada vez mais instável, que funcionava como um motor económico impulsionado pelo crédito sob o neoliberalismo, acaba por ser uma tentativa de controlar o declínio social e económico, que só pode acabar por falhar perante a compulsão de valorização do capital.
1.8 Proteccionismo e crescentes divergências económicas no Ocidente
O período de estagflação que agora se estabelece, com as suas manobras de estabilização da política económica e monetária, é a futura tendência global, mas – à semelhança da financeirização neoliberal com a sua construção da torre de dívidas – são possíveis formas muito diferentes a nível regional e nacional. Tal como no neoliberalismo globalizado nem todas as economias estavam igualmente endividadas, mas os países fixados na exportação, como a Alemanha e a China, conseguiram elevados excedentes comerciais no contexto de circuitos de défice, em comparação com países deficitários como os EUA ou o Sul da Europa, também no pós-neoliberalismo se estabelecerão novos métodos de concorrência de crise, desde que o sistema mundial tenha tempo suficiente para o fazer devido ao aumento dos riscos externos (ameaça de guerra mundial e choques ecológicos).
Enquanto a orientação para a exportação, a organização horizontal das cadeias de produção globais e a externalização dominaram durante o neoliberalismo, são agora o proteccionismo, a integração vertical e o nearsourcing (ver secção 3.1) que provavelmente funcionarão como meios eficazes de concorrência. Tal como a dívida foi transferida para as áreas económicas inferiores durante o aumento das montanhas de dívida global no contexto da concorrência da crise (por exemplo, para a Grécia e para o sul da Europa pela RFA), as áreas económicas que estão predestinadas para a concorrência proteccionista são agora susceptíveis de ter uma vantagem. E são precisamente os grandes espaços económicos uniformes, como os EUA, que dispõem de importantes recursos próprios, que podem beneficiar desta situação – enquanto o proteccionismo ainda não se tiver generalizado.
A nova fase de crise pós-neoliberal conduzirá, por conseguinte, a uma divergência socioeconómica acelerada no seio dos centros ocidentais do sistema mundial, provocada por um proteccionismo crescente. A antiga "campeã mundial das exportações", a Alemanha, está a perder as suas vantagens competitivas, enquanto os Estados Unidos estão a reorganizar a sua base industrial em detrimento dos seus concorrentes através de medidas proteccionistas, nomeadamente no âmbito dos seus pacotes de estímulo económico. Já não se trata apenas de tarifas punitivas. Em resposta à pandemia, Biden aprovou o Plano de Resgate Americano, um fogo de vista económico no valor de 1,9 biliões de dólares. Seguiram-se os subsídios à indústria de microchips, num total de 52,7 mil milhões de dólares (projecto de lei CHIPS) e, finalmente, a Lei de Redução da Inflação, no valor de 500 mil milhões de dólares, que prevê investimentos em infra-estruturas e "eco-indústrias" – e está salpicada de cláusulas "Buy American", queixou-se o FAZ, por exemplo. (16) E é provável que sejam precisamente estas disposições que favorecem os fabricantes americanos nos pacotes de estímulo económico, que também levaram a uma duplicação do investimento industrial nos EUA desde 2021. (17)
A tendência para o capitalismo de Estado e o proteccionismo em resposta às crises não é nova. A fase de crise que agora se inicia faz lembrar os anos de 1930, quando o grande crash de 1929 desencadeou uma viragem para o dirigismo estatal, o proteccionismo e o nacionalismo em quase todos os países metropolitanos – com as conhecidas consequências económicas e políticas. Estas lições históricas, que ainda estavam presentes na reacção ao surto de crise de 2007/2008, foram agora esquecidas, devido às crescentes contradições sociais e (geo)políticas. A torre global de dívidas organizada através de circuitos de défice está a desmoronar-se, o que intensificará a concorrência entre as "localizações do investimento". As medidas de estímulo económico e a política de investimento da administração Biden são parcialmente bem sucedidas precisamente porque contêm a componente proteccionista de que a UE se queixa – e porque esse proteccionismo ainda não foi generalizado.
Está no horizonte uma nova fase de crise, na qual a globalização neoliberal está a ser substituída por uma maior concorrência capitalista estatal. A crescente divergência económica entre os Estados Unidos, precariamente reanimados, e a zona euro, que definha, deve-se, portanto, precisamente ao proteccionismo delineado por Washington e aos esforços de reindustrialização da administração Biden, que atingem de forma particularmente dura a economia alemã, dependente das exportações. E que conduzirão necessariamente a uma reacção correspondente por parte da UE. O proteccionismo americano pode conseguir, temporariamente, transferir as consequências da crise para a concorrência – até que esta siga o seu exemplo em termos de proteccionismo. A frente unida que o Ocidente parecia formar em resposta à guerra de agressão russa na Ucrânia em 2022 já se desgastou no Outono de 2023 face a estas tendências fundamentais da crise – e desaparecerá completamente a médio prazo.
2. A China e a periferia do sistema mundial – não há nenhum novo sistema hegemónico
As divergências e conflitos crescentes no Ocidente sobreendividado e em crise são interpretados na semiperiferia como uma indicação do fim iminente da hegemonia dos EUA, que será seguido por um século chinês ou por uma "ordem mundial multipolar", segundo a frase favorita de Putin. A conversa de uma ordem mundial multipolar em Moscovo, Ancara, Teerão ou Pequim é, portanto, por um lado, a ideologia de todos os Estados autoritários da semiperiferia que se esforçam, através de políticas imperialistas de poder e de guerra, por herdar os EUA em erosão, a fim de alcançarem uma supremacia ou um domínio a nível regional ou global semelhante ao que Washington teve na segunda metade do século XX. A ironia amarga desta ideologia de crise é que o aumento dos conflitos regionais entre Estados é precisamente expressão da desordem mundial multipolar muito real, numa fase de crise global em que já não pode haver um hegemonista mundial de facto.
A seguir, será fundamentada e explicada a tese de que a China não pode desenvolver um novo sistema hegemónico, ou seja, a actual fase de crise não pode ser ultrapassada por uma simples mudança de hegemonia. No plano económico, o papel de um hegemonista caracteriza-se, em primeiro lugar, pelo controlo de uma moeda de reserva mundial. E isto aplica-se claramente aos EUA e ao dólar americano. O dólar, enquanto moeda de reserva mundial – sobretudo com base no comércio do petróleo –, dá a Washington a possibilidade de contrair empréstimos contra o valor de todas as coisas de valor, para financiar os seus défices orçamentais e a sua máquina militar. Se, pelo contrário, Erdoğan começar a imprimir dinheiro, a inflação simplesmente sobe.
Se a China quiser suceder aos Estados Unidos como hegemonista, tem de desenvolver uma alternativa ao dólar como moeda mundial. É por isso que os acordos de política monetária entre a China, a Rússia e alguns países da semiperiferia estão a causar agitação em 2023. Durante uma visita de Estado a Riade, em meados de Março, o chefe do Governo, Xi Jingping, apelou à conversão do comércio petrolífero com a Arábia Saudita em yuan chinês, para contrariar a "crescente transformação do dólar em arma". (18) Na Rússia em guerra, o yuan tornou-se a moeda mais transaccionada na Primavera de 2023, perante as sanções ocidentais. (19) Pequim conseguiu concluir acordos cambiais bilaterais semelhantes com o Brasil, o Paquistão e a Venezuela. A criação de um sistema monetário alternativo para as "economias emergentes" foi mesmo discutida nas reuniões dos BRICS em Fevereiro e Agosto de 2023.
Os BRICS tornar-se-iam um sistema hegemónico alternativo de facto, centrado em Pequim, que constituiria uma contrapartida ao "Ocidente" dos EUA. Fundada em 2009, a associação das economias emergentes do Brasil, da Rússia, da Índia, da China e da África do Sul, que deve o seu nome às letras iniciais destes países, pôde também regozijar-se por receber muitos pedidos de adesão de países emergentes e em desenvolvimento em 2023. Antes da cimeira de Agosto, tinham sido apresentados 19 pedidos de adesão. Em 2024, mais seis países juntar-se-ão aos BRICS+: Irão, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Egipto, Etiópia e Argentina.
2.1 A moeda dos BRICS como alternativa?
Os acordos discutidos na cimeira de Agosto de 2023 por cada um dos Estados BRICS no sentido de utilizarem as suas moedas nacionais nas trocas comerciais entre si pretendem ser um primeiro passo para a desdolarização. Estes movimentos crescentes de afastamento do dólar devem-se, em parte, às sanções dos EUA contra a Rússia no início da guerra de agressão contra a Ucrânia, uma vez que os activos estrangeiros russos foram congelados pela primeira vez (Lavrov falou de "roubo"), o que foi observado atentamente por todos os regimes com a perspectiva de terem de entrar em conflito com Washington no futuro. No entanto, esta tendência para a desdolarização e a desglobalização só pode ser entendida plenamente no contexto do processo histórico de crise do capital. Só então se tornará claro por que razão a China não estará em condições de herdar a hegemonia dos Estados Unidos.
À primeira vista, a substituição do dólar americano como moeda de reserva mundial parece ser uma perspetiva realista, uma vez que os EUA, sobreendividados, estão em declínio geopolítico e económico há anos, enquanto a aliança BRICS está em ascensão. Desde logo, os números falam por si: a parte dos países do G7 (EUA, Alemanha, Japão, França, Grã-Bretanha, Itália e Canadá) no produto social bruto global caiu de 50% no início dos anos 80 para 30%, enquanto os países BRICS aumentaram a sua produção económica de cerca de 10% para 31,5% da produção económica global no mesmo período. Em 2023, a ambiciosa aliança teria, portanto, uma base de produção maior do que a dos Estados ocidentais!
No entanto, este aumento deve-se em grande parte à China, o que significa que as disparidades e os desequilíbrios no potencial bloco monetário estão agora a atingir proporções enormes. Entre 2008 e 2021, o produto interno bruto per capita da China registou um aumento de 138%. Na Índia, o valor foi de 85%, enquanto a Rússia registou apenas um ligeiro aumento de 14%. O Brasil estagnou, com um magro aumento de quatro por cento e, na África do Sul, o produto interno bruto caiu mesmo cinco por cento.
A China representa actualmente 70% do rendimento nacional bruto dos países BRICS, enquanto o rendimento per capita na Rússia é cinco vezes superior ao da Índia. Estas disparidades gigantescas tornam insignificantes mesmo os notórios desequilíbrios na zona euro, que vieram a lume durante a crise do euro. Além disso, o grupo BRICS tem, até à data, uma estrutura muito frouxa, dificilmente comparável aos resultados do longo processo de criação de instituições e de normalização que precedeu a introdução do euro na UE. A aliança não tem um órgão executivo ou legislativo e nem sequer criou um secretariado central.
A aliança caracteriza-se também por uma forte ambivalência. Foi fundada com a intenção de acabar com a hegemonia do Ocidente e com as práticas imperiais da potência hegemónica EUA. O ataque ao dólar americano como moeda de reserva mundial é um objectivo central desta estratégia. Ao mesmo tempo, porém, os países BRICS não estão a tentar mudar fundamentalmente o comércio mundial, estão apenas a tentar herdar o Ocidente e os EUA no quadro do sistema mundial capitalista – e, ao fazê-lo, estão a cair nas mesmas práticas imperialistas de que os EUA são acusados. Isto é evidente não só na guerra imperialista da Rússia na Ucrânia, mas também nos conflitos no seio da aliança: a China e a Índia, por exemplo, estão repetidamente à beira da guerra nos Himalaias devido a disputas fronteiriças.
No entanto, os interesses económicos comuns são, pelo menos, tão fortes como as forças centrífugas acima descritas. Não se trata apenas de intensificar as relações comerciais e a cooperação geopolítica para reduzir a dependência dos centros ocidentais. Os países BRICS esforçam-se não apenas por criar a sua própria moeda, mas também por expandir o banco de desenvolvimento sediado na China. (20) Isto deve-se ao facto de os Estados da semiperiferia terem de operar num sistema mundial capitalista tardio cujas estruturas e instituições são dominadas pelo Ocidente, desde o papel de liderança do dólar até à supremacia ocidental no Banco Mundial e no Fundo Monetário Internacional.
Os efeitos desta supremacia ocidental são particularmente evidentes na luta contra a inflação por parte dos bancos centrais dos centros, que está a conduzir a colapsos económicos em muitos países mais pobres. Devido à subida das taxas de juro pela Reserva Federal dos Estados Unidos, um quarto dos países emergentes e em desenvolvimento "perderam efectivamente o acesso aos mercados obrigaccionistas internacionais", alertava o Financial Times em meados de Junho de 2023. (21) A previsão de crescimento do Banco Mundial para este grupo de países com acesso particularmente difícil ao crédito baixou de 3,2% para 0,9%.
Esta crise de crédito, desencadeada pela luta contra a inflação nos países ocidentais, é um factor importante na grande corrida à adesão ao grupo dos BRICS. Muitos países em crise, como a Argentina, que seria incluída na aliança dos países emergentes a partir de 2024, esperam simplesmente poder recorrer a fontes de financiamento alternativas, nomeadamente da China. No futuro, não só o comércio entre estes países será efectuado na futura moeda dos BRICS, como também esta se tornará a base monetária de um novo sistema financeiro orientado para os interesses da semiperiferia.
Lá se vai a bela teoria. Na prática, isto significaria que as economias emergentes se encontrariam financeiramente dependentes da China, que, ao criar uma moeda dos BRICS e um sistema financeiro alternativo, pretende também desenvolver oportunidades de investimento alternativas para mitigar a sua vulnerabilidade às sanções dos EUA. Assim, a potencial moeda dos BRICS só seria concebível como veículo monetário de uma hipotética hegemonia nacional, à semelhança do dólar americano.
Além disso há a vil empiria, com os seus números concretos: 60 por cento das reservas mundiais de divisas ainda são constituídas por dólares, o que representa apenas um ligeiro declínio em relação ao máximo histórico de 70 por cento registado no início do século XXI. Cerca de 74% do comércio internacional, 90% das transacções monetárias e quase 100% do comércio de petróleo são realizados em dólares americanos.
E mais: para assumir a liderança, a China teria de suportar os custos de hegemonia inevitáveis num capitalismo tardio em crise e asfixiado na sua produtividade: Os excedentes comerciais chineses teriam de ser reduzidos e transformados em défices, enquanto o mercado financeiro chinês teria de ser aberto. Em termos económicos, a hegemonia do dólar desde os anos 80 assenta precisamente nos circuitos globais de défice acima referidos, em que os enormes défices comerciais dos EUA geram uma procura financiada a crédito, enquanto o mercado financeiro americano absorve os lucros daí resultantes sob a forma de títulos. (22) A China ainda detém grandes quantidades de títulos americanos e foi, durante algum tempo, o maior credor dos EUA.
Em certa medida, a China teria de se tornar um "buraco negro" na economia mundial, como os EUA, cuja atracção gravitacional, através de défices comerciais e orçamentais, suga o excedente de produção de uma economia mundial capitalista tardia sufocada pela sua hiperprodutividade – à custa da desindustrialização e de desestabilizadoras bolhas especulativas. E isto é dificilmente concebível, uma vez que o sector financeiro chinês já foi e continua a ser abalado por graves crises financeiras e de dívida. Uma nova moeda de reserva mundial não altera em nada as causas do processo de crise económica e ecológica, em que o capital atinge os seus limites internos e externos.
2.2 A falência da Rota da Seda
Na verdade, Pequim investiu milhares de milhões nos seus sonhos hegemónicos. A China fez tudo o que estava ao seu alcance para criar uma base económica para a posição hegemónica que almejava, através de uma estratégia de desenvolvimento abrangente orientada para a periferia do sistema mundial – mas esta estratégia apontava numa direcção anacrónica, tentando emular o caminho de desenvolvimento da era fordista.
Lançada em 2013, a "Nova Rota da Seda", um ambicioso programa de investimento de Pequim nos países em desenvolvimento e emergentes, pretendia, na verdade, inaugurar uma era de hegemonia chinesa e transformar o século XXI num século chinês – depois de o século XX ter passado à história como o período hegemónico dos EUA. Pequim orçamentou mais de um bilião de dólares americanos para este programa de desenvolvimento estratégico, que faz lembrar o Plano Marshall dos EUA na devastada Europa do pós-guerra. Tal como Washington utilizou o dinheiro do Plano Marshall, depois de 1945, para reconstruir a Europa e tornar-se a principal potência incontestada do Ocidente na segunda metade do século XX, os enormes empréstimos chineses a muitos países da periferia foram motivados por um cálculo estratégico semelhante.
O impulso ao desenvolvimento das infra-estruturas que a construção de centrais eléctricas, caminhos-de-ferro ou estradas nos "países em desenvolvimento" desencadearia seria, segundo este cálculo, acompanhado de laços estratégicos estreitos entre estes países e a China. Pequim compraria assim o domínio geopolítico através do desenvolvimento económico financiado a crédito em muitas regiões da Ásia, da África e mesmo da América Latina. A China, que há muito se tornou a principal potência comercial na maioria das regiões do Sul global, tornar-se-ia assim o mais importante credor e parceiro estratégico, que poderia construir o seu próprio sistema de alianças centrado na República Popular – à semelhança do "Ocidente" com os EUA como potência líder.
De acordo com o Financial Times (FT), a República Popular investiu o equivalente a 838 mil milhões de dólares neste ambicioso programa de desenvolvimento até ao final de 2021, (23) tornando a China no "maior credor bilateral do mundo". Esta posição de destaque aplica-se sobretudo à periferia do sistema mundial, uma vez que Pequim concedeu mais empréstimos nos 74 países que o Banco Mundial qualifica como países de baixo rendimento do que todos os outros "credores bilaterais juntos". A Belt and Road Iniciative, como é conhecida em inglês a estratégia de investimento da "Nova Rota da Seda", não é apenas o maior empreendimento de política externa da República Popular desde a sua fundação em 1949, mas também o "maior programa de infra-estruturas transnacionais" jamais empreendido por um único país. (24) Mesmo o Plano Marshall, cujas despesas equivaleriam actualmente a cerca de 100 mil milhões de dólares, não tem qualquer comparação com as dimensões da "Nova Rota da Seda".
E foi precisamente este gigantesco programa de investimentos que trouxe à China a sua primeira grande crise de dívida internacional. Segundo cálculos de grupos de reflexão norte-americanos, empréstimos chineses num total de cerca de 118 mil milhões de dólares estariam em risco de incumprimento já em 2022, o que corresponde a cerca de 16% do total dos investimentos da "Nova Rota da Seda". (25) Seria o caso de países de África, do Sul da Ásia e da América Latina que sofreram prejuízos económicos com a crise provocada pela pandemia. De acordo com o relatório, Pequim teve de renegociar os termos de empréstimos estrangeiros no valor de 52 mil milhões de dólares nos anos pandémicos de 2020 e 2021, enquanto o mesmo só aconteceu com passivos no valor de 16 mil milhões de dólares em 2018 e 2019 – ou seja, antes do início da pandemia.
Em Setembro de 2022, o FT observava que a China se encontrava cada vez mais no papel "normalmente desempenhado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI)" em muitos dos investimentos em grande escala financiados a crédito no âmbito da "Nova Rota da Seda". (26) Segundo o FT, Pequim tornou-se agora um "sério concorrente do FMI", depois de a República Popular ter sido obrigada a conceder secretamente "empréstimos de emergência" e pacotes de resgate no valor total de dezenas de milhares de milhões de dólares americanos a países sobreendividados, a fim de evitar incumprimentos ou crises de dívida. Só os três maiores devedores de Pequim – Paquistão, Sri Lanka e Argentina – receberam pacotes de resgate no valor total de 32,8 mil milhões de dólares desde 2017. A lista de países que tiveram de ser estabilizados por Pequim através de empréstimos de crise inclui o Quénia, a Venezuela, Angola, a Nigéria, o Laos, a Bielorrússia, o Egipto, a Turquia e a Ucrânia. Na maioria dos casos, estes empréstimos de emergência impediram a insolvência de projectos de infra-estruturas financiados no âmbito da Nova Rota da Seda.
A componente geopolítica da estratégia de investimento da China é particularmente evidente no elevado nível de empréstimos na região pós-soviética, onde Pequim investiu uns bons 20% dos seus fundos destinados à "Nova Rota da Seda". A maior parte dos empréstimos chineses foi para a Rússia, com 125 mil milhões de dólares, seguida da Bielorrússia, com oito mil milhões, e da Ucrânia, com sete mil milhões. Outro foco da actividade de investimento chinesa é a África subsariana, onde a República Popular concedeu empréstimos num total de cerca de 78 mil milhões de dólares, segundo estimativas ocidentais. E não são apenas os projectos de prestígio sem sentido para o desenvolvimento e devorados pela corrupção, como no caso do Sri Lanka, que estão a ser realizados em África. O capital chinês financiou, por exemplo, uma linha de caminho de ferro na Etiópia, que reduziu o tempo de viagem entre a capital e o vizinho Djibuti de três dias para 12 horas. No Quénia, foi construída uma nova linha entre Mombaça e Nairobi; uma nova ligação ferroviária entre a Tanzânia e a Zâmbia também reduziu drasticamente o tempo de viagem; foram construídas barragens no Uganda; foram impulsionados projectos rodoviários e de infra-estruturas de abastecimento de água e de electrificação em África e na Ásia Central. A estratégia chinesa de acumulação de influência geopolítica através do desenvolvimento económico parecia estar a funcionar plenamente em África até à recente crise.
No entanto, esta esperança de modernização capitalista foi frustrada, o mais tardar, em 2020, com a eclosão da pandemia e o correspondente surto de crise. Grande parte da periferia e da semiperiferia, que deviam ser integradas no sistema hegemónico de Pequim através da Nova Rota da Seda, viram-se numa crise económica grave, por vezes existencial, o mais tardar com a reviravolta das taxas de juro da Fed e do BCE. O maior perigo para países como a Turquia, o Brasil, o México e a África do Sul foram as saídas de capitais, acompanhadas de uma desvalorização da moeda. Trata-se de uma clássica armadilha da dívida: em períodos de taxas de juro baixas nos centros, em especial nos EUA, o capital que procura investimento flui para a semiperiferia na expetativa de rendimentos mais elevados, o que leva a um aumento do endividamento, a uma economia cada vez mais deficitária e, frequentemente, à formação de bolhas de dívida e especulativas. Com a reviravolta da Reserva Federal dos EUA em matéria de taxas de juro, o capital voltou a fluir para os centros, provocando o abrandamento das economias dos mercados emergentes, enquanto a consequente desvalorização da moeda e o aumento das taxas de juro tornaram o serviço da dívida mais caro ou insustentável. A Nova Rota da Seda da China conduziu directamente a uma verdadeira crise económica e da dívida.
A estratégia de Pequim também não está a funcionar em termos ecológicos (Konicz 2020a). A interacção cada vez mais frequente entre a crise da dívida e a crise climática, entre os limites internos e externos à capacidade de desenvolvimento do capitalismo, está a transformar a via de desenvolvimento intensiva em recursos da modernização capitalista atrasada num beco sem saída económico e ecológico. A China é, de longe, o maior emissor de gases com efeito de estufa, sendo a sua economia capitalista de Estado responsável por quase 30 por cento das emissões globais de dióxido de carbono. Os segundos maiores causadores do aquecimento global, os Estados Unidos, são agora "apenas" responsáveis por pouco menos de 14% das emissões globais. A China, de longe a antiga economia emergente mais bem sucedida, parece assim ilustrar a impossibilidade ecológica da modernização capitalista atrasada.
A ideia de que as economias da semiperiferia, que durante anos foram celebradas como as "locomotivas da economia global", iriam recuperar o atraso económico em relação aos centros não é, portanto, apenas desonrada pela crise económica – está também em total contradição com os limites externos e ecológicos do capital, que se manifestam na crise climática. Mesmo os países emergentes que – ao contrário da China – não conseguiram recuperar economicamente o atraso em relação aos centros, registam um aumento extremo das emissões de CO2em relação a 1990: No Brasil é de 115%, na Turquia de 186%, na Indonésia de 215% e no caso da Índia de 305%. Uma grande parte do aumento das emissões de gases com efeito de estufa no século XXI pode, por conseguinte, ser atribuída ao crescimento nos países recentemente industrializados – embora devam também ser tidos em conta os efeitos de redução na sequência do colapso do socialismo de Estado soviético.
Este é o ambiente de crise global sócio-ecológica de um sistema mundial capitalista tardio que está a entrar em colapso devido às suas contradições, no qual a China lançou a sua grande tentativa de construir o seu próprio sistema de alianças através de um ambicioso programa de investimento para se tornar o novo hegemonista. As montanhas cada vez maiores da dívida global e a escalada da crise climática estão a pôr em causa o programa imperial de Pequim, que, na realidade, procurava imitar a ascensão dos EUA após a Segunda Guerra Mundial.
Ora a ascensão hegemónica de Washington após o fim da Segunda Guerra Mundial teve como pano de fundo o período de ascensão fordista dos anos 50 e 60 acima descrito. Este regime de acumulação fordista, com a indústria automóvel como sector líder, constituiu a base económica da hegemonia dos Estados Unidos até ao seu fim, nos anos 70, tendo sido substituído no neoliberalismo pela financeirização do capitalismo – na verdade, a crescente formação de défices globais que conduz a novas bolhas financeiras e crises de dívida.
Durante a "Guerra Fria", os Estados Unidos puderam ascender e tornar-se a principal potência do "Ocidente", o hegemonista sem restrições e com aceitação, sobretudo porque a longa expansão económica permitiu a Washington dar aos seus aliados uma margem de manobra económica – que o Japão e a Alemanha também utilizaram amplamente durante o "milagre económico" para rapidamente ultrapassarem a indústria dos Estados Unidos em termos de qualidade. A rápida subida da maré do fordismo levantou todos os barcos. Enquanto o capital pôde expandir-se para novos mercados (automóveis, "produtos de linha branca", electrónica de consumo etc.) que só surgiram com o fordismo, a concorrência entre os "centros económicos" manteve-se em segundo plano – mesmo perante o "conflito de sistemas".
A China, pelo contrário, tem de operar num sistema mundial em crise, no qual o enorme nível de produtividade global da indústria de produção de mercadorias conduziu a uma crise de sobreprodução sistémica, que não só resulta em montanhas de dívida em constante crescimento, como o sistema hiperprodutivo está efectivamente a funcionar a crédito. Além disso, a falta de um novo sector líder e de um novo regime de acumulação está a levar a uma crescente fixação da política económica nas exportações e às correspondentes guerras comerciais, nas quais os países capitalistas centrais tentam apoiar as suas economias com excedentes de exportação – à custa dos seus concorrentes, que frequentemente reagem com medidas proteccionistas. A procura de excedentes de exportação, aperfeiçoada sobretudo pela RFA no âmbito de uma política de "empobrecer ao vizinho", com a qual a crise sistémica de sobreprodução é de facto "exportada", é portanto uma fonte de tensões interestatais permanentes entre as "localizações económicas" ameaçadas pelo declínio.
Esta é também a razão dos obstáculos quase intransponíveis à construção de um sistema hegemónico na actual crise mundial do capital. A hegemonia, ou seja, a posição de liderança aceite ou tolerada pelas potências subordinadas de um sistema de poder, só é concebível ao preço do financiamento a crédito, uma vez que já não existe uma base económica sob a forma de um novo regime de acumulação para um sistema hegemónico estável.
2.3 Os novos edifícios em colapso na China
No entanto, a crise não está a ocorrer apenas fora da República Popular. A China – como parte do sistema mundial – é ela própria afectada pela crise mundial do capital. Isto é particularmente evidente na gigantesca bolha imobiliária em que a República Popular se encontra, embora Pequim esteja a tentar evitar o seu rebentamento devido à ameaça de ondas de choque económicas, tomando medidas para atrasar a crise.
Dificilmente outra empresa simboliza tão claramente a eterna enfermidade do sector imobiliário chinês como a segunda maior promotora imobiliária do país, a Evergrande, que entrou em dificuldades em Setembro de 2021, quando não conseguiu pagar os juros das obrigações offshore devido a uma montanha de dívidas que tinha aumentado para cerca de 300 mil milhões de dólares (Konicz 2021d) – e que, desde então, tem sido alimentada pelo Estado chinês. Em Outubro de 2023, exactamente dois anos após o início desta saga de crise, a Evergrande abriu um novo capítulo na sua história de crise interminável, depois de as autoridades estatais terem detido o fundador da empresa e vários gestores de alto nível (27) e avisado os credores de que um "colapso incontrolável" do gigante da construção poderia afectar todo o sector imobiliário da "República Popular". (28)
A Evergrande, fundada em 1996, acumulou a sua montanha de dívidas principalmente em projectos imobiliários – por vezes gigantescos – em mais de 200 locais na China. O esquema do grupo – tal como o de outras empresas imobiliárias – assemelhava-se a um clássico esquema em pirâmide. Os projectos de construção eram financiados antecipadamente pelos compradores de imóveis, pelo que este modelo de negócio só parecia viável na sua fase de expansão: enquanto fosse possível adquirir novos grupos de clientes e os preços dos imóveis estivessem a subir. As famosas cidades-fantasma chinesas, constituídas por prédios de habitação construídos à pressa e muitas vezes já em ruínas, que foram construídos sobretudo nas fronteiras administrativas das aglomerações chinesas para contornar as restrições locais à propriedade, são precisamente o produto desta dinâmica especulativa, cuja escala gigantesca supera tudo o que se passou nos EUA ou em partes da Europa Ocidental antes do crash imobiliário de 2007/2008.
Qual é, então, a dimensão da bolha imobiliária e da dívida que o capitalismo de Estado chinês, impulsionado pelos mercados financeiros, criou? Num estudo publicado em 2020, (29) que se debruçou sobre esta dinâmica especulativa, o economista norte-americano Kenneth Rogoff chegou à conclusão de que os sectores da construção e do imobiliário chineses geram cerca de 29% do produto interno bruto (PIB) da China, através de efeitos directos e indirectos. Isto significa que a formação de bolhas na "República Popular" capitalista de Estado não tem de temer a comparação com o Ocidente, não só em números absolutos, mas também em relação aos seus efeitos económicos. Em Espanha, em 2006, no auge da bolha imobiliária transatlântica, o sector imobiliário representava cerca de 28% do PIB, na Irlanda era de cerca de 22%.
A situação é ainda mais dramática quando o nível de preços nos mercados imobiliários mais importantes da República Popular é estabelecido em relação ao nível salarial. Em Pequim, Xangai e Shenzhen, são necessários mais de 40 rendimentos médios anuais para comprar um imóvel, contra 22 em Londres, uma das cidades mais caras do Ocidente, e apenas 12 em Nova Iorque. Rogoff descreveu esta situação como uma dimensão "impressionante" e "sem precedentes" para as grandes economias, para a qual o capitalismo de Estado chinês, impulsionado pelo mercado financeiro, empurrou a sua bolha imobiliária. Isto também é evidente no rácio entre espaço habitável e população, que, segundo Rogoff, na República Popular já atingiu há muito o nível da França e do Reino Unido – e é mesmo superior ao de Espanha. Se a febre da construção fosse de facto para dar espaço às pessoas, o mercado imobiliário chinês já estaria saturado há muito tempo. De acordo com o Financial Times, 90 milhões de pessoas poderiam encontrar uma casa nos imóveis especulativos vagos da "República Popular".
A Evergrande é apenas a proverbial ponta do icebergue de um capitalismo de Estado autoritário que partilha com os seus concorrentes ocidentais uma tendência fundamental da crise – está a funcionar a crédito. Em 2020, todos os passivos acumulados na China (Estado, sector privado, esfera financeira) ascendiam a cerca de 317% do PIB da República Popular, o que estava apenas um pouco atrás da média mundial de 356%. Apesar das declarações dos dirigentes de Pequim e dos esforços acrescidos para limitar os empréstimos, a montanha de dívidas da China cresceu mais rapidamente do que o produto interno bruto da "oficina do mundo" desde 2008. Uma gigantesca montanha de dívidas está também a pesar sobre os municípios chineses, que, segundo a Goldman Sachs, deverá ascender a 8,2 biliões de dólares americanos – as dívidas foram transferidas para "veículos financeiros" para não aparecer nas estatísticas. Isto equivale a cerca de 52% do PIB da República Popular. Aliás, as autarquias sobreendividadas aproveitaram uma importante fonte de financiamento durante o boom imobiliário: vendem terrenos a empresas imobiliárias, (30) que constroem sobre eles as suas propriedades especulativas. Segundo as estimativas, a montanha de dívidas acumulada pelos bancos-sombra chineses, que não é oficialmente registada, ascende a 13 biliões de dólares.
O capitalismo de Estado chinês está, assim, exposto às mesmas contradições crescentes do processo de crise do capitalismo tardio que o resto do One World capitalista. As opções abrangentes de intervenção estatal de Pequim apenas significaram que, na China capitalista, esta dinâmica especulativa pôde ser levada a dimensões muito maiores do que no Ocidente – sem a descarga num surto de crise como o de 2008. O Estado foi capaz de intervir "com sucesso" nas crises da dívida – o que prolongou a dinâmica especulativa e da dívida, como ilustrado pela história de Evergrande.
E Pequim não pode permitir-se um colapso da torre de dívidas no mercado imobiliário, uma vez que uma queda na economia e no mercado imobiliário – no qual a classe média chinesa investiu as suas poupanças – é susceptível de causar a mais grave perturbação política. A legitimidade do PCC assenta na promessa de construir uma "sociedade moderadamente próspera" (Xi Jingping). A China capitalista de Estado faz parte do sistema capitalista mundial, incluindo a sua crise sócio-ecológica, o que também se reflecte no facto de a República Popular ter construído a sua vertiginosa modernização capitalista sobre uma montanha de dívidas em constante crescimento. Até à crise financeira mundial de 2008, a indústria de exportação era o motor económico da China. Os excedentes comerciais chineses extremos, em comparação com as economias de défice dos EUA e da Europa, não só impulsionaram a industrialização e a modernização de exportação da República Popular, como também andaram de mãos dadas com a exportação de dívida, tal como fez a República Federal da Alemanha enquanto "campeã mundial dos excedentes de exportação".
Esta situação alterou-se com o rebentamento das bolhas imobiliárias nos EUA e na Europa, que foi combatida globalmente com enormes medidas de estímulo económico. Este gigantesco aumento da procura pública correspondeu a cerca de 4,7% da produção económica mundial em 2009, sendo as despesas de estímulo económico na República Popular particularmente elevadas: Na altura, cerca de 14% do PIB (nos EUA, apenas 7,1%). No entanto, estas gigantescas medidas de apoio, que Pequim implementou em resposta à crise de 2008, também forneceram a faísca inicial para uma transformação da dinâmica económica da China: as exportações perderam peso, enquanto a indústria da construção, as infra-estruturas e o sector imobiliário financiados a crédito se tornaram os principais motores do crescimento económico – até à quota do PIB absurdamente elevada de 29% de hoje.
2.4 A hegemonia perdida da China devido à crise
A modernização da China impulsionada pelas exportações, com a sua exportação de dívida, transformou-se assim numa economia de défice, inicialmente alimentada pelo Estado e que há muito escapou ao seu controlo. E é precisamente esta transformação do modelo económico chinês, que passou da produção de mercadorias para o crescimento da bolha financeira, que, de acordo com a teoria da hegemonia do teórico marxiano Giovanni Arrighi, aponta para uma hegemonia "perdida" de Pequim devido à crise.
Na sua fascinante obra Adam Smith em Pequim, Giovanni Arrighi descreveu a história do sistema mundial capitalista como uma sequência de ciclos hegemónicos. Uma potência emergente alcança a posição dominante no sistema numa fase de ascensão caracterizada pela indústria produtora de mercadorias; após uma crise de sinalização, esta potência hegemónica entra num declínio imperial em que a indústria financeira ganha importância, até ser substituída por um novo hegemonista com maiores meios de poder.
Arrighi identificou quatro ciclos hegemónicos: "Um ciclo genovês-ibérico que abrangeu o período entre o século XV e o início do século XVII; um ciclo holandês entre o final do século XVI e o final do século XVIII; um ciclo britânico entre meados do século XVIII e o início do século XX; e um ciclo norte-americano entre o final do século XIX e a última expansão financeira" na década neoliberal de 1980 (Arrighi 2009, 292). A "progressão" das potências hegemónicas que acompanha a expansão global do sistema mundial capitalista é notável. Vai desde as cidades-Estado italianas com "a sua diáspora empresarial cosmopolita", passando pelo "proto-Estado nacional dos Países Baixos (as Províncias Unidas) e as suas corporações oficialmente autorizadas, por um Estado multinacional (a Grã-Bretanha) e o seu império tributário que se estende pelo globo, até um Estado-nação de dimensão continental (os EUA) com o seu sistema global de corporações transnacionais" e bases militares (ibid., 297).
Segundo Arrighi, cada ciclo hegemónico tem duas fases: Primeiro, há uma fase de ascensão imperial, que se caracteriza pela "expansão material", ou seja, o domínio do comércio ou da indústria de produção de mercadorias da nova potência hegemónica. Após a eclosão de uma "crise de sinalização" económica, inicia-se a fase de declínio imperial, que é acompanhada pela expansão financeira e pelo domínio da indústria financeira, dando ao hegemonista em declínio um último apogeu económico e imperial.
Por fim, há uma fase de declínio em que o antigo hegemonista é substituído pela potência hegemónica seguinte, em ascensão. Segundo Arrighi, esta progressão das potências hegemónicas é um resultado directo da expansão do sistema mundial capitalista, uma vez que estas têm de mobilizar cada vez mais recursos para manter a sua posição hegemónica. A transição entre dois ciclos hegemónicos é, por isso, muitas vezes acompanhada pelo endividamento da potência hegemónica descendente em relação à hegemónica ascendente.
E esta sequência pode também ser empiricamente traçada nos séculos XIX e XX com referência à Grã-Bretanha e aos EUA. O Império Britânico, que se tornou a "oficina do mundo" no âmbito da industrialização do século XVIII, tornou-se o centro financeiro mundial na segunda metade do século XIX, antes de ser substituído pelos EUA, economicamente ascendentes, na primeira metade do século XX, que, por sua vez, viveram a sua "crise de sinalização" durante a fase de crise da estagflação na década de 1970. Seguiu-se a desindustrialização e a financeirização dos EUA, que levou ao domínio económico do sector financeiro norte-americano. A dívida do hegemonista descendente para com o ascendente imperial, que Arrighi tematizou, pode ser vista tanto no caso da Grã-Bretanha em relação aos EUA como no circuito de défice dos Estados Unidos em relação à China.
Ora se o declínio hegemónico é desencadeado por uma "crise de sinalização", em que o modelo de acumulação impulsionado pela produção industrial de mercadorias é substituído pelo capitalismo financeiro, então a China já ultrapassou obviamente a sua "crise de sinalização" em 2008 – como descrito acima. O crescimento da China também está a funcionar a crédito; a República Popular está tão endividada como os centros ocidentais em declínio do sistema mundial. Como explicado acima, a economia de défice chinesa está a produzir excessos especulativos muito maiores do que nos EUA ou na Europa Ocidental. Economicamente, o declínio hegemónico da República Popular devido à crise sistémica global já começou, embora ela ainda não tenha sido capaz de alcançar a sua posição hegemónica geopoliticamente. A financeirização do capitalismo de Estado chinês pode ser rastreada muito simplesmente olhando para a dívida total em relação ao PIB, que, como já mencionado, há muito atingiu o nível de dívida ocidental de mais de 300 por cento.
Como já foi explicado anteriormente: Esta ausência de um novo sector líder, de um regime de acumulação na produção de mercadorias que valorize o trabalho de forma rentável e maciça, (31) em que se manifesta o limite interno do capital, é a principal diferença entre a situação da China actual e a dos EUA no final da Segunda Guerra Mundial. Não se vislumbra uma Primavera económica global, mas apenas sobre-endividamento ou estagflação. Devido ao colapso das suas torres de dívidas internas e externas, a China parece já estar em declínio antes de alcançar a hegemonia. A isto acresce o já referido limite ecológico do capital. Ao ciclo histórico hegemónico do sistema mundial capitalista sobrepõe-se assim o processo de crise sócio-ecológica do capital, que interage com ele e faz que a ascensão e o colapso hegemónico da China se fundam um no outro.
3. A nova fase da crise – desglobalização e colapso autoritário do Estado numa crise multipolar permanente
Conclusão: Um sistema hegemónico em que a posição do hegemonista seja tolerada já não é realizável devido aos limites internos e externos cada vez mais manifestos do capital, devido à dupla crise económica e ecológica. O imperialismo na actual fase de crise, em que o movimento histórico de expansão do capital se transformou numa contracção deixando atrás de si Estados falhados, vai dar ao isolacionismo e ao puro extractivismo de recursos (cf. Kurz 2021). O isolamento das zonas de colapso socioeconómico, que já não desempenham o papel de mercados de venda, anda de mãos dadas com a luta brutal dos Estados pelas reservas cada vez mais escassas de matérias-primas e fontes de energia, que têm de alimentar a máquina da valorização aos soluços.
Há aqui uma clara tendência histórica. A tentativa de controlar directamente as colónias e "protectorados" no século XIX, na era da hegemonia inglesa, transformou-se em imperialismo informal no século XX, tal como praticado por Washington através do derrube e instalação de regimes dependentes. Na fase final do sistema mundial capitalista, o domínio imperialista parece resumir-se à mera manutenção das rotas de extracção, através das quais se pretende que os recursos e as fontes de energia sejam transportados das zonas de colapso económico e ecológico para os centros remanescentes em erosão e em aberta concorrência de crise.
O que se desenrola no actual imperialismo de crise é, portanto, a lógica do "last man standing", em que as consequências da crise são transferidas para a concorrência. Estas lutas pelo poder entre os sujeitos estatais em desintegração, que chegaram agora ao ponto da guerra aberta, estão a executar o processo de crise avançando objectivamente. Trata-se de uma luta geopolítica pelo poder no Titanic do capitalismo tardio que se afunda, na qual já não há efectivamente vencedores. É por isso que todas as alianças aparentes são tão frágeis, como é evidente nos conflitos crescentes entre os EUA e a UE – e não apenas no que diz respeito ao proteccionismo da administração Biden.
No entanto, tendo como pano de fundo a crise sócio-ecológica, a luta entre a Eurásia russo-chinesa e a Oceânia dos Estados Unidos, (32) na qual a Ucrânia e Taiwan constituem um ponto crítico agudo e potencial respectivamente, deve também ser entendida como uma luta entre o futuro e o passado. É uma luta entre a era que se afunda da administração regional neoliberal e a era iminente do regime abertamente autoritário, em que a formação autoritária e a desintegração social interagem, como se pode ver de forma paradigmática na oligarquia estatal e no regime mafioso da Rússia.
A crise está literalmente a levar os monstros estatais do capitalismo tardio em erosão a entrarem em confronto, de modo que a descarga das crescentes tendências autodestrutivas do capital numa guerra de grandes proporções é perfeitamente possível. Estas crescentes distorções geopolíticas, a rápida multiplicação de conflitos regionais, guerras e limpezas étnicas, sobre as quais o perigo de uma grande guerra global entre a "Oceânia" e a "Eurásia" paira como uma espada de Dâmocles, interagem com o fim da era neoliberal da globalização acima descrita, que parece estar a transformar-se no seu oposto, a desglobalização e o proteccionismo. É precisamente aqui que se esboçam claramente os contornos de uma nova fase de crise, que se caracterizará por uma "fragmentação da economia global em blocos geopolíticos", nos quais se utilizariam também "diferentes padrões comerciais e tecnológicos, sistemas de pagamento e reservas monetárias", como alertava o Fundo Monetário Internacional (FMI) num artigo de Abril de 2022. (33)
A guerra de agressão russa contra a Ucrânia foi o decisivo ponto de viragem qualitativo, por assim dizer, que deu início a esta nova fase de crise a nível geopolítico. A inflação e os estrangulamentos da oferta, que já se verificavam antes da guerra devido à luta contra a pandemia, estão agora a ganhar força à medida que a desglobalização se impõe repentinamente. Mas mesmo este grande estouro, que está a abalar o fluxo global de mercadorias e finanças, não surgiu do nada. Os esforços para rever a globalização têm sido virulentos há anos, especialmente na figura do Presidente dos EUA, Donald Trump, que personifica as contradições da produção capitalista de mercadorias como nenhum outro. Trump foi eleito por sectores da classe média pauperizada dos EUA e propôs-se tornar "grande" novamente uma América desindustrializada, atormentada por um défice comercial gigantesco, erguendo barreiras comerciais. O objectivo do proteccionismo de Trump: uma reindustrialização dos Estados Unidos, que a administração Biden está agora novamente a forçar, apesar de todas as diferenças políticas.
3.1 Nearshoring e integração vertical como estratégias de crise do capital
Esta luta hegemónica aparentemente distópica entre a Eurásia e a Oceânia, que se desenrola no contexto da crise mundial económica e ecológica do capital, há muito que tem um impacto na estrutura da produção mundial de mercadorias. A furiosa guerra económica ultrapassou há muito a fase das meras sanções, e estão a emergir claramente esforços para quebrar o circuito de défice do Pacífico, que estão a ser fortemente impulsionados por Washington em particular. O nearshoring, uma nova palavra-chave que se está a impor na imprensa burguesa de negócios, resume de forma quase paradigmática o fim da era da globalização. Concebido como o oposto do famoso off-shoring, este termo refere-se à tendência crescente para a criação de cadeias de produção regionais, com as quais estão a ser revistas as formas globais de organização da produção de mercadorias surgidas na era neoliberal.
As tendências mais fortes para o nearshoring podem actualmente ser observadas no México, que, de acordo com o serviço noticioso de negócios Bloomberg, é um dos "vencedores" das disputas de política comercial entre Washington e Pequim. (34) Em Julho de 2023, as importações de mercadorias do México atingiram um máximo histórico de 15% de todas as importações para os EUA, ultrapassando pela primeira vez as entregas da China (14,6%). (35) Enquanto a quota da China nas importações para os EUA – que atingiu o seu máximo histórico de 21,8% na Primavera de 2018 – caiu para o seu nível mais baixo desde 2006, o vizinho do sul dos Estados Unidos tornou-se o parceiro comercial mais importante da América. O comércio bilateral através do Rio Grande totalizou 263 mil milhões de dólares nos primeiros quatro meses deste ano. (36)
E a tendência de crescimento vai continuar. O banco de investimento Morgan Stanley prevê um aumento rápido das exportações industriais mexicanas para os Estados Unidos nos próximos cinco anos, que deverão passar de 455 mil milhões de dólares americanos para 609 mil milhões por ano. (37) De facto, a parte da produção industrial no produto interno bruto mexicano disparou nos últimos anos – na verdade, desde que a administração Trump introduziu o seu rumo abertamente proteccionista: de cerca de 15,6% no ano pandémico de 2020 para cerca de 16,7% no primeiro trimestre de 2023. (38)
Os níveis salariais a sul do Rio Grande também continuam a ser muito baixos. (39) No final de 2021, os custos laborais na produção industrial mexicana eram, em média, de 2,80 USD, em comparação com uma média de 24,55 USD nos Estados Unidos no início de 2022. O México continua assim a ser um país de baixos salários. No entanto, não são apenas as fases de produção de trabalho intensivo, como as que foram subcontratadas às maquiladoras (zonas industriais isentas de impostos e taxas nas quais se instalaram empresas de montagem) na região fronteiriça com os EUA desde o infame acordo de comércio livre Nafta (40) de 1994, que estão a alimentar a actual retoma industrial do México. Entretanto as empresas estão também a deslocalizar para o México sectores de investigação e de capital intensivo, como noticiou o Spiegel-Online a propósito da Audi e da multinacional química Evonik. (41)
O abismo nos custos salariais entre o centro e a semiperiferia, que conduz à industrialização periférica, faz lembrar superficialmente a Europa Central e Oriental após a adesão à UE. Nessa altura foi o capital industrial alemão, orientado para a exportação, que explorou a proximidade geográfica dos países da Europa de Leste com baixos salários na primeira década do século XXI, a fim de os integrar nas suas cadeias de produção globais como bancadas de trabalho alargadas – e assim obter enormes vantagens competitivas no mercado mundial. A grande diferença entre a Europa Central e Oriental e o nearshoring na América Central, no entanto, é que no México já não se trata de obter vantagens competitivas nos mercados globalizados. O investimento industrial no México é motivado pelo cálculo da obtenção de uma melhor posição – ou do acesso com isenção de direitos aduaneiros – ao grande mercado americano, cada vez mais fechado.
Consequentemente, o capital norte-americano é, de longe, o líder dos actuais investimentos directos no México. (42) No primeiro trimestre de 2023, as empresas americanas investiram 6,4 mil milhões de dólares no país vizinho do Sul, quase o dobro do capital das empresas do segundo classificado, a Espanha, que aplicaram 3,8 mil milhões de dólares. No mesmo período, a Alemanha investiu 1,3 mil milhões de dólares. Em 2022, cerca de 42% de todo o investimento directo estrangeiro (IDE), cerca de 15 mil milhões de dólares, foi canalizado dos EUA para o mercado emergente da América Central. A Europa representou 12,3 por cento de todo o IDE no México em 2022, seguida de perto pelo Canadá, com 10,7 por cento. (43) Este capital foi canalizado principalmente para os Estados do norte e para a área metropolitana da Cidade do México. A produção industrial, e o sector automóvel em particular, foi um foco da actividade de investimento estrangeiro. (44)
As empresas chinesas, que até à data quase não desempenharam um papel no país da América Central, parecem estar aqui a expandir significativamente as suas actividades de investimento. Enquanto as empresas da República Popular da China investiram apenas 67 milhões de dólares no México em 2019, este valor já tinha aumentado para 406 milhões de dólares em 2022. O mesmo se aplica ao IDE de Hong Kong, que disparou de 10 milhões de dólares para 124 milhões de dólares no mesmo período. (45) Com esta estratégia de investimento, Pequim está simplesmente a tentar minar o novo proteccionismo americano. Nos próximos anos, as empresas chinesas pretendem mesmo investir cinco mil milhões de dólares num parque industrial no Estado de Nuevo Leon, no norte do país, para aí instalarem 120 empresas e criarem 7000 postos de trabalho, noticiaram os media chineses em 2023. (46)
É provável que a actividade de investimento das empresas alemãs no México seja motivada por um cálculo semelhante – trata-se efectivamente de ficar sob a alçada da zona de comércio livre norte-americana USMCA, constituída pelos EUA, México e Canadá, que é logicamente também um meio de exclusão, na medida em que penaliza todas as localizações que não fazem parte deste círculo exclusivo de comércio livre. O jornal económico britânico The Economist lamentou mesmo (47) que a estratégia proteccionista herdada de Trump pela administração Biden não está simplesmente a funcionar, uma vez que as cadeias de abastecimento estão a tornar-se cada vez mais "emaranhadas e opacas". A velha globalização está a minar o novo proteccionismo, por assim dizer. De acordo com o relatório, os equipamentos solares chineses, por exemplo, foram exportados para os Estados Unidos através dos países do Sudeste Asiático no final de 2022, fazendo-lhes "pequenas modificações" durante a escala.
Pequim parece agora querer instalar "fábricas de redeclaração" semelhantes no norte do México. Em todo o caso, coloca-se a questão de saber até que ponto o "boom" no vizinho do sul dos Estados Unidos pode durar, tendo em conta as crescentes perturbações económicas e ecológicas fabricadas pelo capitalismo tardio (Konicz 2020b). Embora o investimento no México tenha aumentado nos últimos anos, passando de cerca de 28 mil milhões de dólares em 2020 para cerca de 36 mil milhões de dólares em 2022, até agora só atingiu o nível de investimento anterior ao início da pandemia. (48) A actual retoma da actividade industrial no país emergente deve-se, portanto, em grande medida, à decisão estratégica de Washington de reduzir a sua dependência económica em relação à China.
Por conseguinte, o México está cada vez mais dependente de um mercado de vendas americano que mantém a sua retoma através de programas económicos financiados pela dívida e de barreiras comerciais crescentes – e cujas elites funcionais têm de defender a posição do dólar americano como moeda mundial, com todos os meios geopolíticos e, em última análise, militares à sua disposição. Por isso uma crise nos Estados Unidos, onde se acumulam constantemente novos e gigantescos défices orçamentais (49) e onde a luta contra a inflação já está a fazer com que as taxas de juro das obrigações ultrapassem a barreira dos 5%, (50) também acabará com o boom industrial e de investimento no México, que é efectivamente um apêndice desta economia de défice americana.
A desglobalização que está a ocorrer também está a levar à reestruturação interna de muitas empresas, uma vez que a predominância neoliberal de "estratégias de expansão horizontal" está a ser substituída por esforços de integração vertical. Na economia burguesa, a integração horizontal entende-se por estratégias de domínio do mercado em que as medidas de expansão visam aumentar a quota de mercado através da aquisição de concorrentes, a fim de obter uma vantagem competitiva no respectivo segmento de mercado. (51) Com uma maior quota de mercado, reduz-se a pressão da concorrência, abrem-se novos mercados, reforça-se a posição negocial nas cadeias de abastecimento globais etc. O fim lógico e o objectivo de toda a concorrência no mercado é o monopólio.
Na era da globalização, a procura de uma dominância "horizontal" do mercado por parte do capital foi acompanhada por uma tendência para a externalização, ou seja, para a alienação de sectores da empresa que não faziam parte da actividade principal. As áreas ou etapas de produção (produtos preliminares, componentes, serviços) de trabalho intensivo, prejudiciais ao ambiente ou menos lucrativas foram externalizadas para outras empresas, formal ou efectivamente independentes, frequentemente localizadas em países com baixos salários, o que foi geralmente acompanhado por vagas de despedimentos nos centros. Em última análise, a externalização para aumentar a rentabilidade baseava-se numa deterioração maciça das condições de trabalho e numa redução do custo do trabalho como mercadoria, como "capital variável" (Marx) no processo de valorização (a principal excepção à tendência neoliberal para a integração horizontal era tradicionalmente o sector da energia, (52) onde os fornecedores de energia ou as multinacionais do petróleo controlam normalmente a produção, as centrais eléctricas, as redes e a distribuição).
Consequentemente, a era da globalização assistiu ao aparecimento de cadeias de produção e de abastecimento globais incontroláveis e amplamente ramificadas, nas quais as empresas horizontalmente integradas nos centros do sistema mundial puderam jogar com o seu poder de mercado contra um número incalculável de fornecedores na periferia – onde a exploração continua a apresentar traços do capitalismo primitivo (Konicz 2014a). Em contrapartida, a opção estratégica de integração vertical (53) é uma excepção em muitos segmentos de mercado no neoliberalismo globalizado, uma vez que adopta a abordagem oposta: Uma empresa procura obter controlo directo sobre a cadeia de abastecimento e/ou todo o processo de produção e distribuição.
E é precisamente este caminho que cada vez mais empresas estão agora a seguir, depois de a Tesla – contrariando a tendência do mercado – ter seguido o caminho da integração vertical no neoliberalismo tardio, o que deu à empresa de carros eléctricos grandes vantagens competitivas após o surto da pandemia. Por assim dizer, o princípio da Tesla teve o seu avanço durante a pandemia. A Tesla conseguiu minimizar os efeitos perturbadores da crise induzida pela pandemia através de uma estrutura empresarial vertical. Em termos da sua estrutura organizativa, o Grupo Musk foi, portanto, até certo ponto, um outsider que tirou a sorte grande durante a pandemia. (54)
A Tesla fabrica internamente baterias, software de controlo, bancos de automóveis e motores eléctricos, o que reduz a vulnerabilidade do grupo aos problemas de abastecimento causados pela crise. No ano pandémico de 2021, enquanto enormes estrangulamentos de abastecimento assolavam a indústria automóvel alemã, a Tesla – uma "empresa absurdamente integrada verticalmente", segundo Musk – conseguiu aumentar as suas vendas em 87%, (55) o que acabou por incentivar outros fabricantes de automóveis, como a General Motors (GM), a seguir o exemplo. (56) A GM, por exemplo, não só está a construir fábricas de baterias para os seus veículos eléctricos nos EUA, como também está a garantir o acesso exclusivo à extração de matérias-primas no Quebeque (material de cátodo activo, CAM) (57) e no Sul da Califórnia (lítio). A Ford – historicamente pioneira da integração vertical ()58 – também criou a sua própria fábrica de motores eléctricos, (59) enquanto os fabricantes alemães, que frequentemente criam fábricas de baterias europeias em empresas comuns, (60) estão a tentar reintegrar a produção de software sob a égide da empresa. (61)
A indústria está, assim, a viver uma dinâmica que poderá, em última análise, rever, pelo menos parcialmente, os resultados da globalização, que alterou fundamentalmente a estrutura de produção da indústria: Nos anos 70, os construtores de automóveis produziam, em média, 90% dos seus veículos; actualmente, esta quota interna é de apenas 50%. A Ford construiu o seu Modelo T quase exclusivamente a partir de peças de ferro. E a indústria automóvel não é a única. Cada vez mais grupos retalhistas estão a mudar para uma estratégia de integração vertical, (62) anteriormente praticada sobretudo por discounters como o Lidl (Grupo Schwarz) com as suas marcas próprias baratas. A Edeka comprou padarias (63) e fábricas de massas, (64) o Grupo Rewe adquiriu um grande talho em Março de 2023. (65)
E esta grande vaga de aquisições no sector retalhista, em que o Aldi e o Grupo Schwarz também estão envolvidos, visa claramente garantias perante cadeias de abastecimento globais cada vez mais frágeis. (66) Algo semelhante está a acontecer nos EUA, onde o gigante retalhista Walmart está a investir centenas de milhões de dólares para construir a sua própria cadeia de abastecimento de carne de bovino. (67) As crescentes perturbações ecológicas e geopolíticas do mercado mundial altamente globalizado, causadas pela crise sócio-ecológica do capital, estão, portanto, a dar origem a estratégias de crise correspondentes, especialmente na indústria alimentar particularmente vulnerável – porque é disso que se trata de facto na integração vertical.
A estrutura de produção horizontal que prevaleceu durante o período da globalização, em que muitas etapas de produção foram subcontratadas a fornecedores no âmbito de cadeias de produção globais, está assim a dar lugar a uma tendência para a "integração vertical", em que as etapas de produção são reintegradas e os componentes e produtos preliminares são produzidos internamente. Já em meados de 2022, o jornal económico britânico The Economist descrevia (68) como as tensões e os choques (pandemia e guerra na Ucrânia) estavam a colocar uma pressão crescente nas cadeias de abastecimento globalizadas e a iniciar uma mudança fundamental, uma vez que os "decisores" nas sedes das empresas procuravam cada vez mais ter "não só cadeias de abastecimento eficientes, mas também robustas". Para além da integração vertical, estão a ser utilizadas várias estratégias, como os esforços para voltar a criar maiores capacidades de armazenamento, ou seja, para acumular matérias-primas, ou os esforços para estabelecer vários locais de produção regionais, a fim de poder amortecer as crises regionais. O mesmo se aplica à tendência para celebrar contratos a longo prazo com vários fornecedores de matérias-primas, o que é preferido por 81% das grandes empresas inquiridas, segundo o The Economist citando um inquérito da McKinsey.
A nova popularidade da integração vertical – à semelhança da tendência para o nearshoring – é assim apenas parte de uma mudança global na estrutura global de produção e comércio, que de facto equivale a uma desglobalização causada pela crise. O que é que tudo isto nos faz lembrar? Muitas destas estratégias têm um precedente histórico, nomeadamente a integração vertical. O capital limita-se a copiar um modelo de organização industrial que se difundiu na fase final do socialismo real: o kombinat industrial. Este modelo baseava-se na ideia, nascida da necessidade, de produzir o maior número possível de produtos intermédios numa única empresa, a fim de contrariar os omnipresentes problemas de abastecimento no socialismo de Estado. Ninguém confiava nos seus fornecedores no Bloco de Leste, uma vez que os estrangulamentos de abastecimento eram uma condição permanente – razão pela qual as empresas kombinat se limitavam a acumular o maior número possível de materiais e tentavam organizar elas próprias as etapas de produção.
Esta vontade de acumular e de integrar verticalmente não é, portanto, nada de novo; em certo aspecto, é uma simples gestão da escassez, tal como praticada pelo capitalismo de Estado da Europa de Leste na era Brejnev, na fase da sua enfermidade estagnada. O mesmo se aplica ao agora popular desenvolvimento das capacidades de armazenamento, que na era da globalização neoliberal, com a sua produção just-in-time, eram frequentemente deslocalizadas para as estradas e outras vias de transporte. No capitalismo de Estado realmente existente, todas as unidades de produção se esforçavam por acumular matérias-primas e componentes, a fim de estarem preparadas para a eventualidade de um estrangulamento do aprovisionamento, o que apenas aumentava a escassez geral.
A regionalização das capacidades de extracção e produção das grandes empresas, agora novamente em voga, é também um fenómeno de crise do capitalismo de Estado, em que as mesmas instalações de produção são, de facto, duplicadas ou multiplicadas: Todas as economias capitalistas estatais do "bloco de Leste" formavam uma cópia em miniatura da estrutura industrial soviética, uma vez que a divisão internacional do trabalho, que teria de ser acompanhada pela especialização em indústrias e sectores individuais, simplesmente não funcionava entre os membros do COMECON (Conselho de Assistência Económica Mútua). A integração internacional das economias do "bloco internacionalista de Leste" durante a sua fase de declínio era inferior à do Ocidente.
A fragilidade do capitalismo de Estado soviético da Europa de Leste reflecte-se, assim, na actual crise dos centros ocidentais do sistema mundial – tal como Robert Kurz previu no seu livro O Colapso da Modernização, no início dos anos 90 (ver Kurz 1991). As estratégias de adaptação à crise acima descritas não são eficazes, são sobretudo dispendiosas. A integração vertical, a manutenção de maiores capacidades de armazenamento, a criação paralela de vários locais de produção regionais para o mesmo produto (preliminar), os contratos de fornecimento a longo prazo e inflexíveis – todas estas medidas de crise aumentam os custos e, em última análise, conduzem ao aumento dos preços dos bens correspondentes. Assim, estas estratégias de ajustamento à crise do capitalismo tardio são, desde há muito, mais um factor que contribui para a dinâmica inflacionista geral nos centros ocidentais do sistema mundial, uma vez que estes custos acabam sempre por ser transferidos para os assalariados.
3.2 Dissolução multipolar da hegemonia e escalada da concorrência de crise
Estas mudanças estruturais – nearshoring e integração vertical – interagem assim com a dinâmica geopolítica da crise: os Estados Unidos desindustrializados já não estão dispostos a suportar os exorbitantes défices comerciais com a China, o que significa que o seu papel de motor da economia global alimentada pela dívida está a desaparecer.
O que se está a passar agora a nível mundial pode ser estudado, em certa medida, na crise do euro de 2009-2014: Enquanto as montanhas de dívida europeias estão a crescer e as bolhas dos mercados financeiros estão a aumentar, todos os países envolvidos parecem beneficiar deste crescimento do crédito. No entanto, assim que as bolhas rebentam, começa a batalha sobre quem tem de suportar os custos da crise. Na Europa, como sabemos, Berlim aproveitou para transferir os custos da crise para o Sul da Europa, sob a forma dos infames ditames de austeridade de Schäuble. Agora, a nível mundial, está iminente o colapso da muito maior economia de défice financiada pela dívida, que nos últimos tempos tem sido mantida viva sobretudo pela política monetária expansiva dos bancos centrais. Para muitos países que anteriormente estavam acorrentados à globalização através de circuitos de défice e da concorrência de localização, os custos crescentes da crise estão a superar os benefícios decrescentes das economias de défice, de modo que as tendências centrífugas nacionais e regionais estão a ganhar vantagem e a forçar o colapso da globalização. A consequente incapacidade dos EUA de assumirem o papel de hegemonista não só conduz a um novo confronto entre o Leste e o Ocidente ou a uma inflação de conflitos regionais e pós-estatais, como também aumenta as tensões no Ocidente entre os EUA, cada vez mais proteccionistas, e a UE, dominada pela Alemanha.
O período de crise que agora se desenha é, pois, caracterizado por um sistema capitalista mundial em vias de desintegração, que já não permite uma hegemonia fixa ou a formação de blocos devido aos crescentes impactos económicos e ecológicos, ao mesmo tempo que tendem a aumentar os conflitos abertamente beligerantes por recursos essenciais entre as grandes potências que se isolam cada vez mais da periferia. De certo modo, tudo se transformará em petróleo – especialmente porque o processo de crise não adere à reificação do discurso burguês da crise e os momentos individuais desta dinâmica, que são discutidos na percepção pública como "crise económica", "crise climática", "instabilidade política" ou "estrangulamentos no abastecimento", irão interagir cada vez mais uns com os outros. Esta nova qualidade da crise a nível geopolítico, "neo-imperial", tem o seu ponto de fuga, em última análise, numa troca de golpes nucleares, que se tornará cada vez mais provável à medida que a intensidade da crise ecológica e económica aumentar, com "impactos de crise" sempre novos e cada vez mais violentos.
Como a desglobalização anda de mãos dadas com o colapso da economia global de défice, que levará à desvalorização da montanha de dívidas neoliberal, as mais graves convulsões económicas e sociais, como as que devastaram grandes partes da periferia sob a forma de crises da dívida e colapsos económicos na era neoliberal, desta vez parecem também inevitáveis nos centros. Se as elites funcionais capitalistas não dispuserem de um outro método para retardar a crise, método que ainda não apareceu, o processo de crise, que desde os anos 80 tem vindo a progredir por etapas da periferia para os centros, atingirá assim o seu ponto final lógico. Não são apenas os Estados centrais, gemendo sob um absurdo endividamento privado e estatal, que enfrentam o abismo económico face à reviravolta das taxas de juro da política monetária; são especialmente as economias fixadas na exportação, como a da RFA, altamente dependentes da economia global de défice através dos seus excedentes de exportação que representam de facto uma exportação de dívidas – que podem agora ser particularmente atingidas pela desglobalização.
Tal como foi explicado no primeiro capítulo a propósito da estagflação e da armadilha de crise daí resultante, a fase de crise pós-neoliberal já não parece ser capaz de desenvolver uma forma estável de processamento da crise. Em vez disso, caracteriza-se por tentativas de limitação de danos, em que se pretende evitar o colapso catastrófico da esfera financeira, enquanto as consequências ecológicas e geopolíticas do processo de crise conduzem a choques extra-económicos e "externos" cada vez maiores para o sistema financeiro global em dificuldades. Além disso, este entrelaçamento cada vez maior entre os limites internos e externos do capital, entre convulsões socioecológicas e consequências (geo)políticas, levanta a questão de saber se uma análise da crise centrada apenas em factores económicos continua a ter sentido e a ser viável – especialmente porque as previsões económicas dificilmente são possíveis devido aos muitos factores de perturbação "externos", estritamente não económicos.
3.3 Formação autoritária, extremismo e colapso do Estado
O mercado mundial está a ser mal visto, o Estado volta a ser popular. Assim, à primeira vista, uma tendência que já se manifestava na fase final da era neoliberal parece ter-se tornado um momento central do novo período de crise: O Estado como actor económico, que estabilizou o sistema nos últimos anos com pacotes de estímulo económico e impressão excessiva de dinheiro como parte da última grande bolha de liquidez, é susceptível de se tornar o factor económico dominante devido à nova qualidade do processo de crise. Em geral, o Estado capitalista, que já na sua forma absolutista inicial no contexto da "economia das armas de fogo" europeia (ver Kurz 2013) actuou como o mais importante motor do arranque do processo de valorização, actua como um actor económico central em tempos de guerra e de crise. O Estado não é uma alternativa ao mercado, como aparece frequentemente na crítica truncada do capitalismo, mas um correctivo necessário à dinâmica cega do mercado, que tende a ser autodestrutiva. Assim que as contradições inerentes à valorização do capital abalam o sistema até aos seus alicerces através da crise ou da guerra, o Estado – que é sempre um Estado capitalista – tem de intervir para estabilizar o sistema. O exemplo mais recente foi o período de crise e de guerra dos anos trinta do século XX.
No entanto, este papel necessário do Estado como "administrador de crises" é minado pelo acima descrito esgotamento da globalização impulsionada pelos mercados financeiros (69) na era neoliberal, que, face a montanhas vertiginosas de dívidas, mercados financeiros sobreaquecidos e inflação em rápido crescimento, está a conduzir a política para um beco sem saída, a armadilha de crise acima descrita, que se manifesta em tendências estagflacionárias persistentes. Esta armadilha de crise, cada vez mais evidente, que marca o fim do adiamento neoliberal financiado a crédito no avanço manifesto da crise nos centros, conduzirá às mais graves convulsões económicas e sociais quando se fechar – especialmente nos centros, especialmente nas suas classes médias.
Com o agravamento do empobrecimento, a brutalização progressiva das sociedades metropolitanas burguesas, que se arrasta há décadas, transformar-se-á numa barbarização abertamente fascista, impulsionada por uma crescente concorrência anómica de crise a todos os níveis. O recuo sócio-político do Estado, induzido pela crise, é susceptível de o reduzir ao seu papel original de instrumento de repressão. O novo surto de crise implicará, portanto, uma reacção estatal correspondente. Virão ao de cima os esforços autoritários do Estado, presentes no neoliberalismo sob a forma do desmantelamento da democracia e da expansão do Estado de vigilância. A este respeito, o Presidente de direita dos EUA, Trump, foi apenas um prelúdio. Na Alemanha, em particular, o potencial fascista latente só é susceptível de se manifestar plenamente quando desaparecer no decurso da crise o efeito civilizador dos elevados excedentes do comércio externo, que obriga as elites funcionais da Alemanha a ter em conta a opinião externa. De qualquer modo, há muito que é hábito na Alemanha interpretar as contradições e os problemas sociais em termos racistas. Os refugiados são alegadamente responsáveis pela situação desoladora do Estado social e, por isso, há muito que se iniciou uma "competição" na arena política para ver quem consegue construir a melhor defesa contra os refugiados.
E, no entanto, esta tendência para uma administração de crises autoritária e, em última análise, abertamente fascista, é um fenómeno superficial que só exteriormente faz eco do fascismo do século XX. A mobilização total e totalitária durante a Segunda Guerra Mundial tornou possível o boom fordista do pós-guerra, uma vez que não houve efectivamente desmobilização após o fim da guerra e a produção em massa de tanques foi transferida para a automobilização das sociedades capitalistas do pós-guerra; mas desta vez não está à vista um regime de acumulação semelhante, em que o trabalho em massa seria valorizado na produção de mercadorias. Existe apenas o abismo do sobre-endividamento total na incipiente catástrofe climática, que dá um rumo diferente à função objectiva do fascismo como forma de crise terrorista da dominação capitalista. O momento sempre presente do fascismo como dominação de gangues, ou seja, de comunidades de saque concorrentes, como a Teoria Crítica constatou clarividentemente, está a tornar-se dominante na actual crise sistémica.
A formação autoritária do Estado, que se está a tornar cada vez mais presa de gangues, anda assim de mãos dadas com a sua erosão interna, que já começa a desenrolar-se na Alemanha em particular: especialmente no que diz respeito às crescentes actividades extremistas de direita (Konicz 2018) no aparelho de Estado (Konicz 2019). Este processo já avançou muito mais na Ucrânia, onde o domínio oligárquico após o derrube do governo e a eclosão da guerra civil já se transformou na formação aberta de milícias de extrema-direita (Konicz 2014b), que foram capazes de desafiar abertamente o Estado ucraniano no período que antecedeu a guerra. O curso desastroso da invasão russa também revela até que ponto as tendências de erosão do Estado no seio da oligarquia russa tinham progredido, uma vez que até o exército, que era essencial para a projecção de poder do Kremlin, foi totalmente afectado por esta situação – o que tornou possível, em primeiro lugar, a ascensão e a revolta da tropa mercenária Wagner (Konicz 2023). A divisão no seio da direita alemã, que não consegue posicionar-se claramente atrás dos extremistas de direita ucranianos ou do pré-fascismo russo na guerra da Ucrânia, aponta precisamente para a omnipresença destas tendências anómicas autoritárias neste conflito.
A Primavera Árabe é um bom exemplo da fragilidade do regime autoritário no capitalismo e da transformação da ditadura em anomia, no decurso da qual ditaduras aparentemente monolíticas, como as da Síria e da Líbia, entraram em colapso e libertaram as forças centrífugas que lhes eram inerentes. As estruturas autoritárias não são um sinal da força interna do sistema capitalista, que prefere optimizar a auto-exploração dos trabalhadores assalariados no quadro da democracia capitalista, mas sim a sua forma de crise, que não é nem de perto nem de longe tão eficaz na organização do processo de valorização como supõe o habitual discurso publicado nos centros do sistema mundial sobre as formas de optimizar e aumentar o crescimento – que contudo requer um certo grau de estabilidade social para garantir os seus fundamentos ideológicos.
A era da administração de crises abertamente autoritária, que está agora a ser anunciada pela preferência publicamente articulada dos oligarcas ocidentais pelos populistas de direita, (70) também não será, portanto, capaz de criar uma ordem pós-guerra de décadas em termos de política interna, como foi o caso, pelo menos nos centros, durante a era neoliberal, apesar de todos os processos de erosão graduais e das contradições crescentes. As crises climáticas, económicas e geopolíticas são cada vez mais frequentes, pelo que a estabilização, que anunciaria um novo período histórico de administração de crises, é pouco provável, mesmo através de métodos autoritários e ditatoriais. Tanto mais que, como já foi referido, os diferentes aspectos do processo de crise estão cada vez mais em interacção, pelo que a crise climática, por exemplo, terá um impacto económico e social crescente. O tempo dos monstros, como Antonio Gramsci descreveu a crise de ruptura para o fordismo nos anos de 1930, parece ter vindo para ficar.
Poder-se-ia mesmo argumentar que – com o imperialismo de crise e o fascismo em luta pelo anómico como um aberto culto de morte – na fase de declínio do capital, os momentos da sua dinâmica de expansão surgem de novo brevemente, sobrepõem-se e interagem – inteiramente no sentido de uma negação dialéctica da negação, de modo que fenómenos aparentemente familiares, a um nível mais elevado do contraditório desenvolvimento capitalista, seguem uma lógica invertida de desenvolvimento impulsionada pela contracção do processo de valorização. São lembranças do sanguinário capitalismo primitivo da fase ascendente do capital, que o sistema mundial, que está a entrar em agonia, mais uma vez lança sobre a humanidade. Mesmo o mercenário, que está actualmente a celebrar um regresso nas guerras neo-imperialistas de distribuição e de colapso, é um produto do capitalismo primitivo, quando os primeiros "recebedores de soldo" surgiram em massa durante a Guerra dos Trinta Anos como forma germinal do assalariado e aterrorizaram a população (ver Kurz 2013).
Sem uma ultrapassagem emancipatória do capital na sua fuga cega e fetichista para a destruição do mundo, a crise tem o seu ponto de fuga final no pânico, no corte de todos os laços libidinais entre os membros da sociedade, desencadeado pela escalada da concorrência da crise, cuja manifestação já aparece regularmente em amoques individuais (ver o artigo de Leni Wissen nesta edição da exit!). Ao lado da guerra nuclear global, que se torna uma ameaça cada vez maior no imperialismo de crise à medida que a intensidade da crise aumenta, é a crise climática que provavelmente actuará como maior produtor de pânico: concretamente, os sinais cada vez mais claros de que grandes partes do Sul global estão a tornar-se inabitáveis, o que estabelece limites objectivos para todas as formas de administração das crises, mesmo as mais brutais e abertamente terroristas. O que marcaria a transição para o colapso absoluto da civilização.
Deste impulso sistémico para a autodestruição, que é agora óbvio, surge a necessidade para a sobrevivência da ultrapassagem emancipatória do capital, que é por assim dizer o último constrangimento prático com que o regime capitalista de constrangimentos práticos tem de ser passado à história. A luta pela transformação do sistema terá de ser, portanto, o momento central da prática da esquerda, em vez de se perder no oportunismo e na administração das crises, como é actualmente o caso da esquerda alemã.
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Kurz, Robert: Der Knall der Moderne – Innovation durch Feuerwaffen, Expansion durch Krieg: Ein Blick auf die Urgeschichte der abstrakten Arbeit, in: ders.: Weltkrise und Ignoranz – Kapitalismus im Niedergang, Berlin 2013, 88–116. Trad. port.: O estouro da Modernidade, Com tostões e canhões. Inovação com armas de fogo, expansão pela guerra: Uma olhada à pré-história do trabalho abstracto, online: http://www.obeco-online.org/rkurz94.htm
Kurz, Robert: Freie Fahrt ins Krisenchaos – Aufstieg und Grenzen des automobilen Kapitalismus, in: exit! – Krise und Kritik der Warengesellschaft Nr. 17, Springe 2020, 23–44. Trad. port.: Sinal verde para o caos da crise: Ascensão e limites do capitalismo automobilístico, online: http://www.obeco-online.org/rkurz57.htm
Kurz, Robert: Schwarzbuch Kapitalismus – Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft, Frankfurt 1999. Trad. port.: O livro negro do capitalismo. Um canto de despedida da economia de mercado, online: http://obeco-online.org/o_livro_negro_do_capitalismo_robert_kurz.pdf
Kurz, Robert: Weltordnungskrieg – Das Ende der Souveränität und die Wandlungen des Imperialismus im Zeitalter der Globalisierung, Springe 2021. Trad. port.: A Guerra de Ordenamento Mundial. O Fim da Soberania e as Metamorfoses do Imperialismo na Era da Globalização, online: http://obeco-online.org/a_guerra_de_ordenamento_mundial_robert_kurz.pdf
Notas
(1) Uma discussão mais alargada sobre esta fase de crise pode ser encontrada em: Kurz 1999: "A história da terceira revolução industrial", 338ss. [430ss.]; uma breve visão geral foi apresentada em: Konicz 2008.
(2) Na fase inicial, uma das principais motivações das empresas ocidentais, nomeadamente americanas, para deslocalizarem a produção para a China foi a redução do custo do trabalho assalariado através da exploração dos trabalhadores chineses. E a China tinha muita força de trabalho barata. Por outro lado, Pequim esperava beneficiar tecnologicamente, de modo a poder estimular o seu próprio desenvolvimento económico e não apenas continuar a ser, a longo prazo, um fornecedor de trabalho e de produtos baratos. (As empresas estrangeiras só eram autorizadas a operar na China sob a forma de joint ventures, situação que foi entretanto alterada). Esta medida foi efectivamente bem sucedida. No entanto, a trabalho na China tornou-se mais caro, caso contrário seriam incompreensíveis os investimentos chineses no Vietname, em Myanmar etc.
(3) https://www.imf.org/en/Blogs/Articles/2023/09/13/global-debt-is-returning-to-its-rising-trend.
(4) https://www.handelsblatt.com/politik/international/asienkrise-1997-nachwehen-bis-in-die-heutige-zeit/3427028.html.
(5) https://de.wikipedia.org/wiki/Russlandkrise.
(6) https://de.wikipedia.org/wiki/Dotcom-Blase.
(7) https://de.wikipedia.org/wiki/Neuer_Markt.
(8) https://www.ft.com/content/c11cee9e-7a09-4bb6-bde0-87f5392e88c7.
(9) https://www.mckinsey.com/featured-insights/sustainable-inclusive-growth/chart-of-the-day/total-stimulus-for-the-covid-19-crisis-already-triple-that-for-the-entire-2008-09-recession.
(10) https://www.wsj.com/articles/pandemic-response-will-drive-up-global-public-debt-to-a-record-imf-says-11602676800.
(11) https://www.yahoo.com/news/mother-stock-market-bubbles-113044786.html.
(12) https://www.federalreserve.gov/monetarypolicy/bst_recenttrends.htm.
(13) https://www.yardeni.com/pub/balsheetwk.pdf.
(14) https://www.icmagroup.org/market-practice-and-regulatory-policy/secondary-markets/bond-market-size/.
(15) https://www.brookings.edu/articles/what-did-the-fed-do-after-silicon-valley-bank-and-signature-bank-failed/.
(16) https://www.faz.net/aktuell/wirtschaft/mehr-wirtschaft/usa-wie-biden-und-trump-sich-beim-protektionismus-einig-sind-18813444.html.
(17) https://fred.stlouisfed.org/series/C307RC1Q027SBEA.
(18) https://www.globaltimes.cn/page/202212/1281416.shtml.
(19) https://www.bloomberg.com/news/articles/2023-04-03/china-s-yuan-replaces-dollar-as-most-traded-currency-in-russia.
(20) https://www.ft.com/content/1c5c6890-3698-4f5d-8290-91441573338a.
(21) https://www.ft.com/content/3bd28362-c006-44c3-9f7f-a89a78452600.
(22) A erosão da hegemonia americana resulta precisamente do facto de Washington estar a mudar para o proteccionismo e, por conseguinte, já não estar disposto a suportar os custos da hegemonia que conduzem à desindustrialização.
(23) https://www.ft.com/content/ccbe2b80-0c3e-4d58-a182-8728b443df9a.
(24) https://www.nature.com/articles/s41599-018-0077-9.
(25) https://www.dw.com/de/g%C3%B6rlach-global-die-vielzahl-der-krisen-wird-f%C3%Bcr-china-zum-problem/a-62618116.
(26) https://www.ft.com/content/f27a543b-7678-4130-9c05-db0492d9c240.
(27) https://www.ft.com/content/9153d235-b28c-43a7-9ffe-08d0c14546ce#post-f38e8840-aec6-483f-af8e-18925a9a5e42.
(28) https://www.msn.com/de-de/finanzen/top-stories/investoren-warnen-chinas-bauriesen-evergrande-droht-ein-unkontrollierter-zusammenbruch/ar-AA1hXmJN.
(29) https://scholar.harvard.edu/files/rogoff/files/nber_27697_peak_china_housing_1.pdf.
(30) De um ponto de vista puramente técnico, trata-se de contratos de arrendamento a longo prazo, por 70 anos.
(31) A modernização capitalista atrasada da China não é um contra-argumento, uma vez que esta se processou no quadro da dinâmica global de endividamento, em que a valorização do trabalho foi afinal simulada a crédito, em antecipação da valorização futura. Até à "crise de sinalização" acima descrita, a exploração de milhões de trabalhadores assalariados na "oficina do mundo" desenrolava-se no quadro de circuitos globais de défice em que a República Popular, com os seus excedentes comerciais extremos face aos EUA e à zona euro, exportava simultaneamente dívida. Após o surto de crise de 2007-2009, a economia de défice acima descrita emergiu na China com a formação de bolhas no sector imobiliário.
(32) Os EUA estão a tentar impedir a formação de um sistema hegemónico e de alianças chinês na massa terrestre euro-asiática através de sistemas de alianças "oceânicas" que se estendem tanto pelo Atlântico (NATO) como pelo Pacífico (Taiwan, Japão, Vietname, Austrália), a fim de "conter" a expansão chinesa em ambos os casos.
(33) https://www.imf.org/en/News/Articles/2022/04/14/sp041422-curtain-raiser-sm2022.
(34) https://www.bloomberg.com/news/newsletters/2023-09-13/supply-chain-latest-mexico-s-nearshoring-boom.
(35) https://www.bloomberg.com/news/articles/2023-09-06/china-s-share-of-us-imports-falls-to-lowest-level-since-2005.
(36) https://www.businessinsider.de/wirtschaft/international-business/mexiko-loest-china-nun-als-wichtigsten-handelspartner-der-usa-ab/.
(37) https://www.morganstanley.com/ideas/mexico-nearshoring-gdp-growth.
(38) https://www2.deloitte.com/us/en/insights/economy/issues-by-the-numbers/advantages-of-nearshoring-mexico.html.
(39) https://www.thenearshorecompany.com/manufacturing-in-us-vs-mexico/.
(40) O Nafta foi substituído pelo Acordo Estados Unidos-México-Canadá (USMCA) em 2020.
(41) https://www.spiegel.de/ausland/nearshoring-wie-mexiko-vom-handelskrieg-zwischen-den-usa-und-china-profitiert-a-0dddef12-6492-4298-a425-32620f86ddb1.
(42) https://www.bloomberg.com/news/newsletters/2023-06-28/supply-chain-latest-us-nearshoring-proof-grows-as-mexico-exports-jump.
(43) https://www.dallasfed.org/research/swe/2023/swe2303.
(44) https://www.dallasfed.org/research/swe/2023/swe2303.
(45) https://www2.deloitte.com/us/en/insights/economy/issues-by-the-numbers/advantages-of-nearshoring-mexico.html
(46) https://www.globaltimes.cn/page/202310/1300015.shtml.
(47) https://www.economist.com/leaders/2023/08/10/joe-bidens-china-strategy-is-not-working.
(48) https://www2.deloitte.com/us/en/insights/economy/issues-by-the-numbers/advantages-of-nearshoring-mexico.html
(49) https://www.yahoo.com/news/u-payments-debt-spike-659-202342513.html.
(50) https://finance.yahoo.com/news/stocks-wont-have-sustainable-rally-until-bond-yield-hits-pre-financial-crisis-level-183141192.html.
(51) https://www.investopedia.com/terms/h/horizontalintegration.asp.
(52) https://www.ft.com/content/4fd19ca9-9d45-4146-a2ae-a05b796aeecd.
(53) https://www.investopedia.com/terms/v/verticalintegration.asp.
(54) https://www.elektroauto-news.net/news/tesla-vertikale-integration-ist-wertintegration.
(55) https://www.tbsnews.net/world/explainer-how-tesla-weathered-global-supply-chain-issues-knocked-rivals-353143.
(56) https://www.ft.com/content/8e9b17d3-5e1c-4aad-9e28-e6b96648dd7b.
(57) https://www.aichelin.at/produkte/kontinuierliche-anlagen/batteriematerialien/kathodenmaterial.
(58) https://www.barrons.com/articles/tesla-stock-price-ev-vertical-integration-70da8f0b.
(59) https://media.ford.com/content/fordmedia/fna/us/en/media-kits/2021/electric-vehicles.html.html.
(60) https://www.tagesspiegel.de/wirtschaft/mobilitaet/warnruf-eines-autochefs-wir-mussen-den-regulierungswahnsinn-in-europa-beenden-10076272.html.
(61) https://teslamag.de/news/autohersteller-tesla-kurs-software-elektro-komponenten-eigene-produktion-38619.
(62) https://www.t-online.de/leben/essen-und-trinken/id_21087702/eigenmarken-von-lidl-edeka-co-diese-marken-stecken-dahinter.html.
(63) https://www.lebensmittelzeitung.net/handel/kommentare/kommentar-edeka-backt-sich-einen-plan-b-169080.
(64) https://www.lebensmittelzeitung.net/handel/nachrichten/vertikale-integration-edeka-kauft-pastafabrik-172323.
(65) https://www.lebensmittelzeitung.net/handel/nachrichten/vertikalisierung-rewe-spricht-von-strategischer-investition-in-die-eigene-fleischverarbeitung-170427.
(66) https://www.lebensmittelzeitung.net/handel/nachrichten/studie-zu-ma-strategien-europaeische-haendler-treiben-ihre-vertikalisierung-voran-170475.
(67) https://www.agriculture.com/with-a-second-beef-plant-walmart-raises-concerns-about-vertical-integration-in-cattle-markets-7562279.
(68) https://www.economist.com/briefing/2022/06/16/the-structure-of-the-worlds-supply-chains-is-changing.
(69) https://ourworldindata.org/grapher/trade-as-share-of-gdp.
(70) https://winfuture.de/news,129707.html.
Original “Krise der Hegemonie” in: revista exit! nº 21, Abril de 2024, pag. 22-70. Tradução de Boaventura Antunes (07/2025)