Uwe Stelbrink

AS METAMORFOSES DA CRISE

Quando as bolhas da valorização virtual do dinheiro estouraram nos mercados financeiros internacionais e os E.U.A., como “locomotiva da economia mundial" em perda acelerada de fôlego, puseram a nu que afinal o crescimento "eterno" era financeiramente induzido e a “economia real" de todos os países era dependente de uma procura financiada pelo deficit, nessa altura um bom conselho era caro – e, por um milésimo de segundo histórico, houve silêncio na floresta. Após esse momento assustador em que, até para os suplementos da imprensa conservadora, ficou claro que o capitalismo global poderia ser embatido nos seus limites, começou novamente a conversa habitual de todos os sábios e salvadores do sistema: que a vida continuou, sim, que o padeiro voltou a vender o pão, e o metro de superfície vai andando (embora, em Berlim, apenas como uma sombra de si mesmo), e já não era sem tempo!

Crise, está bem, talvez dos mercados financeiros, mas não uma crise sistémica. Meia dúzia de banqueiros e especuladores enlouquecidos, uma supervisão bancária e bolsista descuidada – tudo isso ainda se pode controlar. E assim evitar a reincidência. E então tudo pode realmente continuar outra vez.

Este ponto de vista reduzido, partilhado por grande parte dos que continuam de esquerda, bem como especialmente pela ESQUERDA com todos os apologistas esclarecidos do capitalismo, resulta de uma crónica rejeição da percepção e do conhecimento. O capitalismo, como forma de socialização em que tudo e todos estão sujeitos ao valor e à valorização, em que apenas se pode confirmar o direito à vida provando a própria rentabilidade, foi levado aos seus limites, tanto no seu processo nuclear, a valorização, como na sua base material, a exploração da natureza.

Quando não se fala de globalização por falar, mas se abre a perspectiva sobre o mundo globalizado, ou seja, totalmente submetido à valorização, pode ver-se diariamente o colapso do capitalismo global. Claro, isto apenas se se entende por colapso não um crash temporal e espacialmente pontual, mas um processo global, contraditório e dessincronizado de dimensão histórica, e se já não se explica arbitrariamente os colapsos em curso de Estados, economias nacionais e infra-estruturas separados desse contexto global e como fenómenos isolados, que poderiam ser evitados ou remediados através de um "melhor governo" ou de "ideias mais justas de solução".

Mas como os antolhos são obviamente percebidos como de algum modo fazendo parte do próprio corpo, para as grandes maiorias, da esquerda à direita e da direita á esquerda, o colapso da economia das bolhas financeiras não foi parte do colapso sistémico em curso, mas sim uma das sempre recorrentes crises do capitalismo, só que desta vez apenas na área da economia financeira.

Assim também a ESQUERDA, no seu tempo, tomou conhecimento dos buracos negros tapados no Hypo Real Estate e em todas as suas associadas com centenas de milhares de milhões de dinheiros públicos, limitando-se a uma crítica sem convicção – sendo que uma crítica radical, porventura uma ideia política, foi coisa que não se conseguiu apresentar.

Mais ainda: Todas as ideias da ESQUERDA pressupõem o funcionamento da máquina da valorização, é claro que com "partilha equitativa dos encargos" e “redistribuição de cima a baixo".

Daí que a ameaçadora "fusão nuclear do sistema" pôde ser mais uma vez temporariamente adiada com um amplo consenso social não declarado – à custa de um gigantesco endividamento público.

Mas como, mesmo para as elites do poder, é claro que esta dívida pública não pode ser superada por uma emissão monetária sem fim (tanto mais que, não sem razão, receiam-se novos riscos sistémicos na ordem dos biliões), os deficits têm de ser reduzidos de qualquer maneira.

A estrutura federal da Alemanha oferece possibilidades muito específicas de adiar as consequências imediatas da crise financeira, que se manifesta como a mais elevada dívida pública na história da República Federal, parqueando-a nos vários níveis dos orçamentos dos Estados federados e dos municípios.

Ocorre aqui uma metamorfose em que, nas infra-estruturas decadentes, dívidas públicas devidas à crise se “transformam” em teatros a fechar, escolas sub-dotadas, aumento das taxas dos serviços públicos e das entradas nas piscinas etc. etc.

Assim, obviamente que a crise sistémica dificilmente pode voltar a ser reconhecida à primeira vista. Muitas das subtilezas anti-sociais transformam-se em decisões anti-sociais de políticos e administrações locais.

O que permite dividir o debate, que no espaço político é possível no plano da crítica sistémica, em centenas de pequenas acções de protesto, de facto justificadas, mas ainda assim isoladas.

A ESQUERDA, após as querelas pessoais que esgrimiu à maneira do SPD, cronologicamente antes da clarificação das questões de conteúdo, se quer realmente promover o anunciado debate dos princípios e do programa, em vez da disputa pouco produtiva sobre se e em que condições pretende participar na gestão de crise - também conhecida por participação no governo - poderia impor-se a tarefa de declarar como reivindicações não negociáveis para a ESQUERDA as mais simples, inteligentes e legítimas aspirações de todas as pessoas a uma vida digna (alimentação saudável, ambiente limpo, saúde, habitação adequada, educação, participação na vida social etc. etc.), ao invés de participar em debates sobre a possibilidade do seu financiamento, que permitem que tais reivindicações permaneçam vinculadas à lógica do sistema e as obrigam a ter de ficar à espera do funcionamento de uma forma de socialização que há muito tempo chegou ao fim.

Os próprios protagonistas da ESQUERDA repetidamente negaram com veemência o argumento barato de que com uma “oposição tão fundamental” não se conseguiria nada, ao referirem as mudanças de atitude e de táctica das elites dominantes, que já seriam devidas apenas à existência da ESQUERDA. Seria, portanto, não apenas oportuno e necessário, mas também possível substituir o pragmatismo por uma crítica radical prática, isto é, por uma oposição fundamental.

Sem essa “oposição fundamental", a ESQUERDA continua a perseguir somente as metamorfoses da crise em cada caso.

Original METAMORPHOSEN DER KRISE in www.exit-online.org.  Publicado em Das Blättchen, 15.02.10

http://obeco-online.org/

http://www.exit-online.org/