Caro André:
1. Vamos então ao “trabalho”, aliás, tratar do assunto do “trabalho” que, como é sabido, já foi dito que “é para o preto”, nesta ocidental praia não luterana.
Diz o Código Civil que o contrato de trabalho é aquele em que uma pessoa se obriga a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra, sob autoridade e direcção desta, que lhe paga. Portanto, actividade alienada, sem outra finalidade que não seja o dinheiro (para o pagar). E se o trabalho deixa de ser rentável, paralisa, por muita procura que tivessem os bens e serviços produzidos; não havendo poder de compra, bem podem morrer todos à fome, tanto os produtores, como os consumidores... Havendo quem pague, continua-se a produzir minas antipessoal, bombas atómicas e outros “valores” com total abstracção da sua utilidade...
“Naquele enlevo de alma ledo e cego” que caracteriza o pensamento pós-moderno, cada um pode definir o trabalho como quiser; anything goes. De facto, no auge do capitalismo de casino, no fim do século passado, as coisas pareciam poder funcionar assim mesmo, com a globalização e a expansão do crédito sem barreiras a nível global. Até os pobres puderam comprar casas, e toda a espécie de necessidades, reais ou inventadas, parecia poder ser satisfeita a crédito. A pobreza de espírito também se abasteceu fartamente, confundindo a aparência com a essência, nas prateleiras dos supermercados das ideias “reificadas”, sem limites no espaço nem no tempo para o seu aprovisionamento.
2. O Grupo
Krisis teve a ousadia de dizer que o rei vai nu antes da passagem do
milénio. O Manifesto contra o trabalho não foi uma ideia que lhes deu de
repente, mas vem no seguimento de um trabalho iniciado em 1986, quando
começaram a publicação da revista teórica homónima, de que saíram 23
grossos volumes até ao fim do século, incluindo ensaios com títulos tão
apelativos como
A Honra Perdida do Trabalho – O socialismo dos produtores como impossibilidade lógica,
O Pós-Marxismo e o Fetiche do Trabalho. Sobre a
contradição histórica inerente à teoria
marxista,
A Ascensão do Dinheiro aos Céus. Os limites estruturais da valorização
do capital, o capitalismo de casino e a crise financeira global,
O Fim da Política. Teses sobre a crise do sistema de regulação na forma da mercadoria,
Anti-economia e antipolítica. Contribuições para a
reformulação da emancipação social
após o fim do "marxismo"
para citar alguns próximos do nosso tema e que têm tradução portuguesa. (1)
Na sua auto-apresentação o grupo entendia-se como “um forum teórico para a reformulação da crítica social radical” e, usando uma expressão cunhada pela Internacional Situacionista nos anos sessenta, expressamente declarava não ser uma organização semelhante a um partido que pretendesse "angariar seguidores".
O grupo tornou-se conhecido do grande público quando Enzensberger promoveu uma edição de O colapso dea Modernização (1991), onde Robert Kurz analisa a queda do socialismo real como o princípio do fim do capitalismo e não como a sua vitória final (O livro tem várias edições no Brasil, Paz e Terra). O mesmo autor publica entretanto um grosso volume de 800 páginas (que o autor pretendia chamar “Moinhos Satânicos”, por referência a uma poesia do poeta inglês do sec. XVIII William Blake, mas a editora chamou “O livro negro do capitalismo” por razões legais) sobre a história da modernização, culminando na terceira revolução industrial da microelectrónica, onde a produção para o mercado só pode continuar suprimindo mais postos de trabalho do que é possível criar (2); e também uma antologia comentada da obra de Marx, Ler Marx (duas edições em francês, Lire Marx, La Balustrade), onde desenvolve a tese do “duplo Marx”: o Marx da luta de classes invocado pelo “socialismo real” (sendo que este, visto a posteriori, não passou de uma “modernização atrasada”, para impor a toque de caixa o regime do capital sob monopólio estatal) está esgotado; mas o Marx da “crítica do fetichismo” e da “crítica da economia política” está mais actual do que nunca para compreendermos o mundo em que vivemos. (3)
3. Nos 150 anos do Manifesto do partido
comunista é então preparado um Manifesto contra o trabalho que acaba
por sair em 1999 e rapidamente é traduzido em dez línguas (três
traduções em Português, sendo uma em Lisboa e duas em São Paulo). O
documento apresenta-se logo à entrada como uma desconstrução do
Manifesto de Marx e Engels 150 anos antes: onde este dizia, a abrir
Um espectro ameaça a Europa: o espectro do comunismo. Todas as forças da
velha Europa se uniram numa Santa Aliança para acossar esse espectro: o
papa e o czar, Metternich e Guizot, os radicais franceses e os polícias
alemães.
Diz-se agora
Um cadáver domina a sociedade – o
cadáver do trabalho. Todas as potências do globo estão coligadas em
defesa desta dominação: o Papa e o Banco Mundial, Tony Blair e Jörg
Haider, sindicatos e empresários, ecologistas alemães e socialistas
franceses. Todos eles só têm uma palavra na boca: trabalho, trabalho,
trabalho.
Esta assumida referência ao documento já morto será responsável pelo estilo algo empolado do novo, mas não prejudica o conteúdo nem o esforço analítico deste. Desde logo expõe detalhadamente como o trabalho não é uma constante antropológica, mas um fenómeno histórico recente (capítulos 7 a 10), cujo conceito não existia nas civilizações antigas, designando a palavra quando existia algo completamente diferente (cap. 8, 1º §), que é baseado na coerção (cap. 5 e 8) e na dominação patriarcal (cap. 7). Contrariamente ao “preconceito popular” arraigado, trabalho e capital são as duas faces da mesma moeda (cap. 6), “o trabalho é a substância do capital” de que o movimento operário foi historicamente um promotor (cap. 10). A crise do trabalho é a crise da política e de todo o modo de vida nele baseado (caps. 11-16), crise que se apresenta sem solução no seu próprio quadro, desde que a terceira revolução o industrial da microelectrónica passou a suprimir mais postos do trabalho do que é possível criar.
Esta
última ideia é mesmo o cerne do documento e radica na reflexão de Marx
na preparação de O capital, nos ultimamente célebres Grundrisse, ou
Esboços da Crítica da Economia política, que só foram publicados em 1939
e tiveram tradução portuguesa apenas em 2011 (Boitempo, S. Paulo),
donde é retirada a frase que encabeça o cap. 9:
O próprio capital é a
contradição em processo, […] pois esforça-se por reduzir o tempo de
trabalho a um mínimo, enquanto, por outro lado, põe o tempo de trabalho
como única medida e fonte da riqueza. [...] Assim, por um lado, chama a
terreiro todos os poderes da ciência e da natureza, bem como os da
combinação e do intercâmbio sociais, para fazer com que a criação de
riqueza seja (relativamente) independente do tempo de trabalho nela
aplicado. Por outro lado, pretende medir pelo tempo de trabalho estas
gigantescas forças sociais assim criadas, e contê-las dentro dos limites
requeridos para que o valor criado se mantenha como valor.
Nesse capítulo se analisa como a supressão da força de trabalho humana do processo produtivo torna sem valor os bens produzidos e sem substância o capital, que continua a empolar com base no crédito, enquanto caminham para o colapso as instituições sociais nele baseadas.
4. O ponto fraco do manifesto é claramente o cap. 7. Embora encabeçado
por uma citação de Horkheimer/Adorno, ele não faz justiça aos esforços
já desenvolvidos dentro do próprio grupo para ir além da herança de
Marx, desenvolvendo quer a crítica ao iluminismo da teoria crítica de
Adorno, quer os apports da teoria do discurso de Foucault e sobretudo da
crítica feminista do patriarcado e da subjectividade moderna masculina,
incluindo a crítica da ciência feita por feministas americanas, que já
tinham tido expressão em textos anteriores da revista como
O valor é o homem . Teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos
Dominação sem sujeito . Sobre a superação de uma crítica social redutora
A objectividade inconsciente. Aspectos de uma crítica das ciências matemáticas da natureza
A “dissociação sexual” que caracteriza a modernidade é mencionada no manifesto apenas como separação de esferas de actividade e não como uma dissociação que atravessa todas as esferas e actividades da sociedade, incluindo a política e a ciência. Esta dissociação original, bem marcada historicamente no crime fundador da “caça às bruxas”, desmente a pretensão de totalidade da concepção hegeliana e mostra que a totalidade social é uma totalidade fragmentária que vai muito para além do âmbito da economia política. Mesmo em termos epistemológicos pode aqui espreitar-se um modo de conhecer mais abrangente, para que já Adorno tinha apontado com a ideia do “conhecimento em constelação”.
Enquanto a maioria masculina da revista, embalada com o sucesso editorial do manifesto, quer dedicar-se à “venda” desse produto, sem se afastar para outros temas, Roswitha Scholz publica em 2000 O sexo do capitalismo (reeditado em 2011), desenvolvendo a tese da dissociação que já vinha esboçando desde 1992, e Kurz continua com a crítica ao iluminismo (Razão sangrenta, que só a custo sai na revista).
Em 2004 a maioria numérica da associação acaba por se apossar da revista a golpe e expulsar a minoria mais criativa (e que constituía a maioria da redacção), incluindo as (poucas) mulheres. Os expulsos furtam-se a repetir as cenas habituais nas cisões dos grupos de esquerda, criam uma nova revista (EXIT!) e analisam o assunto cisão em termos da crítica da subjectividade masculina concorrencial burguesa.
Passada uma dúzia de anos parece bastante óbvio que o desenvolvimento teórico foi continuado na EXIT! e empancou na Krisis. Tudo indica que para se encontrar uma saída da sociedade do trabalho é preciso aprofundar a crítica do sujeito moderno historicamente constituído. O último seminário anual da EXIT! tinha por tema exactamente “Crítica social – Sujeito – Psicanálise”.
5. A “crítica do trabalho” sem mais, entretanto, parece ter-se banalizado. Na mensagem de ano novo aos seus seguidores Sarkozy denuncia a loucura do crescimento e declara-se contra o trabalho. (4) Outras abordagens um pouco por todo o mundo não cessam de por em evidência os limites incontornáveis da sociedade actual, como é o caso do Projecto Vénus, de Jacque Fresco, numa perspectiva mais anti-política e anti-financeira, talvez na tradição das comunas utópicas americanas, mas agora numa perspectiva inequivocamente global (5).
Até o Forum de Davos veio recentemente reconhecer que nos próximos cinco anos vão desaparecer a nível global cinco milhões de empregos (6). Hoje a defesa do trabalho, com sermões e liturgias, já só se ouve ser feita pelos treinadores de futebol, o que mostra bem o ponto em que estamos na economia política do faz de conta.
O choque da realidade em curso torna urgente a procura de um pensamento e uma linguagem para abordá-la. E para isso o Manifesto contra o Trabalho continua a ter algum préstimo, como, por exemplo, quando ele põe a nu o esgotamento do sujeito revolucionário, que pretendia ser o proletariado e que afinal não passava de uma “máscara de carácter” (Marx) funcional do automovimento do capital, agora chegado ao fim. Agora cada um poderá esforçar-se por pensar, independentemente do lugar e do contexto étnico ou social em que calhou nascer e crescer. Um banqueiro também pode pensar como viver para além do dinheiro (e o pobre que insiste em pensar que os culpados disto tudo são os que mandam no dinheiro e na política pode ser inconscientemente o último suporte dum sistema em si acabado).
No entanto os seres humanos parecem estar enfeitiçados na forma da subjectividade historicamente constituída, como Kurz constatava no epílogo do seu opus magnum de 2000 acima referido:
"As tarefas que precisam ser resolvidas são de uma simplicidade quase comovente. Trata-se, em primeiro lugar, de utilizar os recursos e materiais naturais, equipamentos e, não em último lugar, competências humanas, reais e abundantemente existentes, para que seja garantida a todas as pessoas uma vida boa e aprazível, livre da pobreza e da fome. É desnecessário referir que há muito tempo que isso seria possível facilmente se a forma de organização da sociedade não impedisse sistematicamente esta pretensão elementar. Em segundo lugar, trata-se de pôr fim à catastrófica má alocação de recursos, na medida em que são mobilizados à maneira capitalista em projectos piramidais sem sentido e em produções destrutivas. Escusado será dizer que estas "más alocações", tão óbvias como perigosas, também são causadas justamente pela ordem social vigente. E, em terceiro lugar, finalmente, por maioria de razão é de interesse elementar traduzir o fundo de tempo social enormemente inflado pelas forças produtivas da microeletrónica num lazer igualmente grande para todos, em vez de "desemprego em massa", por um lado, e aumento do stress no trabalho, por outro.
O facto de ter sido completamente recalcado na consciência social o que é evidente e realmente nem precisa de ser dito, como se tivesse sido pronunciado um feitiço, apresenta os traços de uma história da carochinha incrível, em que o absurdo parece normal e o óbvio parece incompreensível. Apesar do facto gritantemente evidente de o uso mesmo moderadamente racional dos recursos comuns se ter tornado totalmente incompatível com a forma capitalista, discutem-se apenas "concepções" e procedimentos que pressupõem exactamente esta forma."
Continua a haver muita pedra para partir. Continuemos, pois, a pensar e a falar, até porque não é preciso pagar.
31.01.2016
Boaventura Antunes
(1) O ensaio fundador A crise do valor de troca, de 1986, não tem versão portuguesa, mas pode ser lido em inglês na tradução de uma revista de Chicago em http://www.mediationsjournal.org/a…/crisis-of-exchange-value
(2) Original alemão integral em http://www.exit-online.org/pdf/schwarzbuch.pdf
(3) Um artigo para o grande público sobre O duplo Marx foi publicado pela Folha de São Paulo com o título O Manifesto invisível, em Fevereiro de 1998, a propósito dos 150 anos do Manifesto do Partido Comunista (http://obeco-online.org/rkurz8.htm)
(4) Ficheiro audio em http://www.palim-psao.fr/…/voeux-2016-de-nicolas-sarkozy-vi…
(5) O filme-mensagem para 2016, The choice is ours, pode ser visto em https://www.youtube.com/watch?v=Yb5ivvcTvRQ
(6) O relatório fala na “quarta revolução industrial”, que se caracterizaria pela “Internet das coisas”, isto é, as máquinas, equipamentos etc. interagindo entre si, sem necessidade de intervenção humana. Independentemente de o conceito ser questionável (afinal a quarta seria apenas a continuação da terceira revolução industrial da microelectrónica, tal como a pós-modernidade é a continuação da modernidade…), a ideia da “Internet das coisas” já aponta inconscientemente para o fim do capitalismo enquanto sistema social (isto é, capaz de integrar, mal ou bem, as pessoas).
Boaventura Antunes