exit! Crise e Crítica da Sociedade das Mercadorias, nº 22
Índice e Editorial
(Sai a 30 de Abril de 2025, na zu Klampen Verlag. 22 euros (ISBN 9783987370335) ou assinatura)
Índice
Robert Kurz: Condutores na contramão da história
Herbert Böttcher: Anti-semitismo projectivo, “burguesia bruta” e alucinação social
Johannes Vogele: Quando falar do Holocausto desvia a atenção da luta de classes – Negação do Holocausto, marxismo tradicional e ultra-esquerda em França
Roswitha Scholz: Interseccionalidade e diversidade no beco sem saída da velha esquerda – Análise das abordagens de Eleanora Roldán Mendívil/Bafta Sarbo e Karin Stögner
Thomas Meyer: Democracia versus autocracia?
Justin Monday: A descontinuidade do colonialismo – Sobre a filosofia da história e a história real do pós-colonialismo e do decolonialismo
Peter Schmitt: Pseudo-individualidade hoje – Sobre a actualidade da Dialéctica do Iluminismo
Thomas Meyer: Doença mental e neurociência – Notas sobre a naturalização da sociedade
Editorial
O massacre genocida perpetrado pelo Hamas em 7 de Outubro de 2023 e a onda de ódio anti-semita que se seguiu tornaram claro que os judeus já não podem estar seguros da sua vida em lado nenhum. O Hamas, o Hezbollah e o regime dos mulás de Teerão estão entre os herdeiros do anti-semitismo eliminatório dos nazis.1 Já em 1947, Simon Wiesenthal publicou uma brochura que documentava a colaboração do Mufti de Jerusalém, Mohammed Amin al-Husseini, (que era membro das SS) e dos seus capangas com os nazis na “Solução Final para a Questão Judaica”.2 O anti-semitismo dos nazis visava o extermínio dos judeus. Como Moishe Postone explicou no seu artigo teoricamente inovador Anti-semitismo e Nacional-Socialismo,3 o anti-semitismo nazi estava enraizado na ideia do capitalismo baseado no “trabalho criador”. Os judeus foram demonizados como “senhores do dinheiro”, do chamado “capital rapinante”. O que era particularmente evidente nas alucinações de uma “conspiração mundial judaica”, de um “dinheiro judaico” que governava o mundo, de um “intelecto judaico” capaz de subjugar o mundo aos judeus traiçoeira e conspirativamente.
Até hoje o anti-semitismo e a forma como continuou após 1945 continuam a não ser entendidos por muitos, ele é minimizado ou nem sequer é reconhecido como tal. Desde 7 de Outubro de 2023, grande parte da esquerda anti-imperialista/pós-colonial, anti-racista e queer perdeu definitivamente a credibilidade política e a integridade moral.4 Nem sequer são capazes de nomear claramente o terror anti-semita do Hamas. Os activistas (académicos) que supostamente tentam combater o racismo, o sexismo e a discriminação de todos os tipos excluem da sua solidariedade os judeus e/ou os israelitas. O incitamento contra Israel é mais importante para alguns grupos “feministas” do que criticar a violência sexualizada do Hamas.5 No mundo alucinado dos pós-coloniais, os judeus são imaginados como “brancos privilegiados” e Israel como um “Estado colonial”. O anti-semitismo não é levado a sério, mas, se não for explicitamente negado, é desculpado – em última análise, os judeus ou os próprios israelitas são os culpados pelo que lhes é feito. A guerra anti-semita contra Israel é desrealizada para retratar Israel como o verdadeiro monstro em escalada, a situação de ameaça e a luta de Israel pela existência são mal avaliadas, chegando mesmo ao ponto de uma inversão entre perpetrador e vítima. É o que continuam a demonstrar as manifestações anti-semitas, tudo menos pró-palestinianas, nas quais o massacre genocida de 7 de Outubro é negado, minimizado ou celebrado (tal como os ataques de rockets do Hezbollah no norte de Israel desde 8 de Outubro de 2023).6 Judith Butler, o ícone, ou melhor, a mais célebre vacuidade da esquerda queer (que é aqui apontada como exemplo de pseudo-intelectuais de esquerda), para quem o Hezbollah e o Hamas são considerados parte da esquerda global (tal como os gulags estalinistas poderiam ser vistos como a realização de uma “associação de pessoas livres” (Marx)), descreveu o assassinato de judeus (e de israelitas árabes bem como trabalhadores migrantes da Tailândia) como um “acto de resistência armada”, mostrou-se céptica e exigiu provas de que a violência sexualizada contra as mulheres ocorreu efectivamente durante o massacre anti-semita; para Butler o 7 de Outubro nem sequer foi um ataque anti-semita!7
Os chamados Queers for Palestine atraíram muito escárnio e zombaria.8 O jornalista liberal Tobias Huch comentou, a propósito da Marcha das Lésbicas em Berlim, a 26 de julho, que as pessoas que ali se manifestavam não sobreviveriam na Faixa de Gaza sob o regime do Hamas, seriam sumariamente executadas.9 Caspar Shaller, que procurou contrariar esta zombaria e escárnio na revista Jacobin, comparou, com toda a seriedade, a “solidariedade” queer com os palestinianos à solidariedade dos homossexuais com os trabalhadores que se manifestaram contra o regime neoliberal de Thatcher nos anos 80 (onde concede que os »[i]slamistas fascistas [...] com a sua mundividência misógina e a sua homofobia por vezes [?] assassina claramente não são aliados políticos para queers e esquerdistas«). A acusação de alguns de que há muito poucas manifestações contra o Hamas é “absurda” para ele. O Hamas “já é demonizado”. De acordo com o dicionário Duden, demonizado significa algo que é mau, ruim, maligno, perigoso. Para Shaller, o Hamas está a ser retratado de uma forma exageradamente negativa ou como surgiu esta escolha de palavras? O Hamas “é [...] considerado uma organização terrorista” e, afinal, a “guerra israelita [...] é apoiada pelo Estado alemão a nível financeiro, diplomático, jurídico, ideológico e material, através do fornecimento de armas” (jacobin.de, 1.8.2024). Shaller critica assim a “razão de Estado alemã” em relação a Israel, que no entanto consiste maioritariamente apenas em sermões dominicais! Nem uma palavra no artigo sobre o facto de o Hamas utilizar a população palestiniana como escudos humanos e de o “martírio” ser explicitamente procurado na ideologia islamista!10
Para os conservadores e para a direita em particular, a solidariedade pseudo-esquerdista com o Hamas, como se pode ver nas chamadas manifestações pró-palestinianas (que obviamente não exigiram a rendição incondicional do Hamas e a libertação imediata de todos os reféns) e nas ocupações de universidades, é naturalmente uma verdadeira festa: Não estarão a ser confirmados naquilo que pensam que sempre souberam sobre os esquerdistas, que não passam de um bando de idiotas? Tendo em conta a visão maniqueísta do mundo nestes círculos (brancos = racistas, “povos do terceiro mundo” = vítimas inocentes, etc.), este juízo seria de facto compreensível. Jens Balzer sublinha, no entanto, no seu livro After Woke (Berlim 2024), que é preciso tirar as conclusões correctas: A crítica ao racismo e à homofobia, ao patriarcado, etc., continua a ser urgentemente necessária face a um retrocesso autoritário global11 e seria crucial regressar às preocupações originais desses movimentos e virá-las contra os seus actuais representantes! Devido ao reforço dos movimentos de extrema-direita e fundamentalistas religiosos, todos eles antifeministas e antiqueer,12 é politicamente urgente opormo-nos claramente aos chamados esquerdistas que banalizam o terror anti-semita, trabalham para ele e continuam a negar a realidade do fascismo islâmico!
Anti-imperialistas e islamistas estão a unir-se cada vez mais através do ódio a Israel.13 Estes pseudo-esquerdistas colaboradores do islamismo negam assim tudo o que uma verdadeira esquerda sempre defendeu! O anti-semitismo é, mais uma vez, a ideologia de frente transversal que reúne os mais diversos sectores. Os chamados esquerdistas, os neonazis, os islamistas, os lobos cinzentos e os burgueses cultos brutalizados podem apertar as mãos aqui. Enquanto os “esquerdistas” continuam a desrealizar o islamismo, alguns nazis ocidentais vêem-no como uma inspiração: o fundamentalista católico nazi da AfD e apologista das SS, Maximilian Krah, disse o seguinte num podcast de extrema-direita, a propósito do Mês do Orgulho, que é odiado pelos fascistas: “A coisa mais engraçada que vivi durante o Mês do Orgulho foi em 2021, quando a embaixada dos EUA em Cabul proclamou orgulhosamente o Mês do Orgulho. Em menos de três semanas, os talibãs entraram em Cabul. Penso que esta foi a única resposta correcta ao Mês do Orgulho” (fr.de, 2 de Agosto de 2023). É claro que Krah não é um “caso isolado”. Nos Estados Unidos, por exemplo, os supremacistas brancos nutrem uma saudosa simpatia pelos talibãs. Slavoj Žižek cita uma investigação do SITE Intelligence Group “que acompanha as actividades online de grupos supremacistas brancos e grupos jihadistas [...] Por exemplo, uma citação do canal do Telegram ‘Proud Boy to Fascist Pipeline’ afirma: ”Estes camponeses e homens pouco instruídos lutaram para recuperar a sua nação da Globo-Homo. Recuperaram o seu governo, estabeleceram a sua religião nacional como lei e executaram os dissidentes... Se os brancos do Ocidente tivessem a mesma coragem que os Taliban, não estaríamos agora a ser governados por judeus.’”14 Os Talibãs estão aparentemente a fazer o que os fascistas do Ocidente ainda não conseguiram, mas gostariam de fazer.
Os chamados críticos de Israel ignoram ou minimizam o facto de a fundação do Estado israelita ser uma consequência do anti-semitismo europeu, e sobretudo do Holocausto, um Estado que retira a sua legitimidade do facto de ser uma potência protectora armada para todos os judeus perseguidos pelo anti-semitismo; e Israel é também um Estado capitalista, com todas as suas contradições e conflitos, nos últimos anos sujeito a um desenvolvimento cada vez mais autoritário ou extremista de direita e extremista religioso, que ameaça dilacerar a sociedade israelita; é por isso que se tem falado do carácter dual do Estado israelita. Nas palavras de Robert Kurz (2012): “Israel demonstra a sua natureza dual em que, por um lado, como Estado dos judeus, se transformou no objecto de ódio número um na digestão ideológica da crise a nível mundial. Por outro lado, enquanto Estado capitalista, passa pelas mesmas rupturas sociais que todos as outros e produziu o seu próprio fascismo religioso, como poder autodestrutivo interno ... Rabinos proeminentes falam do perigo de talibanização por uma minoria de fanáticos ultra-ortodoxos, que se equiparam aos seus irmãos inimigos islamistas como um ovo ao outro. Juntamente com os colonos chauvinistas, ameaçam barbarizar Israel e privá-lo da sua legitimação histórica”.15
Não é por acaso que a “proibição de criticar” a política israelita, alucinada pelos “críticos de Israel” que se sentem perseguidos e não ouvidos, se assemelha ao modo de discurso dos sujeitos autoritários, que se apresentam como “vítimas da censura”, imaginando-se como “inocentes perseguidos” quando a sua agitação racista é contrariada com críticas.16 Demonizar Israel, negar o seu direito à existência e, ao mesmo tempo, banalizar os grupos terroristas anti-semitas provoca, com razão, uma oposição determinada. No entanto isto não significa que seja “proibido” ou inapropriado criticar Israel, a sua política e a sua condução da guerra, ou o governo de direita de Netanyahu e os seus parceiros de coligação radicais e fundamentalistas de direita (o que foi/é feito muitas vezes, especialmente em Israel).
Uma não reacção de Israel ao assassínio em massa anti-semita teria sido um “convite” à sua repetição, mais cedo ou mais tarde.17 Consequentemente “[continua a ser necessária] a manutenção da força militar contra os inimigos de Israel unidos que querem em última instância uma limpeza anti-semita do mapa”.18 Isto implica o fornecimento de armas a Israel. Os “pacifistas vulgares” como Sarah Wagenknecht, em particular, têm um problema com isto. Se Israel perdesse a guerra anti-semita conduzida pelo Hamas, pelo Hezbollah e pelo regime dos mulás iranianos, Israel deixaria de existir e o objectivo declarado dos grupos terroristas islâmicos de ‘limpar de judeus’ Israel “do rio até ao mar” tornar-se-ia uma realidade. O resultado não seria uma Palestina democrática, em que todos pudessem viver juntos em pé de igualdade, como poderiam acreditar os ignorantes manifestantes ou “estudantes” nas marchas pró-Hamas, mas sim um segundo Afeganistão.
O apelo justificado à solidariedade para com os palestinianos, incluindo o luto pelas suas vítimas, que sem dúvida merecem uma vida melhor do que sob o reinado de terror dos islamistas, é vazio e implausível se nos juntarmos a forças anti-semitas cujo objectivo declarado é a destruição do Estado judaico, sendo que a queima dos palestinianos é conscientemente aceite pelo Hamas (e o número de vítimas é manipulado pelo Hamas).19 O pré-requisito para a solidariedade com os palestinianos, pelo contrário, seria pelo menos reconhecer que eles estão a ser oprimidos pelo Hamas e “usados” para “serem sacrificados” ao seu anti-semitismo genocida, e que o Hamas e os bandos terroristas a ele aliados, com o massacre genocida de 7 de Outubro, são responsáveis pela resposta militar de Israel. Os grupos terroristas de Gaza poderiam ter capitulado a qualquer momento e libertado os reféns; o facto de estarem aparentemente preparados para lutar “até ao último homem” mostra onde estão realmente as suas prioridades – obviamente não estão no bem-estar dos palestinianos!20 Da parte daqueles que supostamente são solidários com os palestinianos, nunca se ouve qualquer crítica à UNRWA, há muito infiltrada por islamistas que herdam o estatuto de refugiados dos palestinianos; nem uma palavra crítica contra os regimes árabes que não integram os refugiados palestinianos e os seus descendentes, que os tratam como párias, que os forçam à dependência para poderem abusar deles como massa de manobra contra Israel!21 Nem uma palavra contra o regime do Hamas e nenhum interesse pelas suas vítimas!22 Onde está a tão proclamada solidariedade para com os palestinianos? A solidariedade para com os palestinianos não pode certamente ser esperada de toda a ralé anti-semita nas ruas e nas universidades. Em vez disso, há apenas slogans anti-semitas, inversão entre agressor e vítima e ódio a Israel!
***
Como de costume, o extremismo de direita e a AfD são combatidos na Alemanha pelos “partidos democráticos” de tal maneira que adoptam cada vez mais as suas posições, assim mostrando que não podem ou não querem opor-se aos extremistas de direita em termos de conteúdo.23 Entretanto já quase não se fala de alterações climáticas no discurso público. Greta Thunberg está a afundar-se no pântano anti-semita, o bolchevique do clima e odiador de Israel Andreas Malm propaga o anti-semitismo verde24 e as campanhas de autocolagem pelo clima da Última Geração estão a dar em nada e a ser perseguidas com todos os “meios do Estado de direito”. Os cientistas do clima continuam a alertar para as consequências das alterações climáticas. O facto de as alterações climáticas aumentarem enormemente o número de refugiados a longo prazo está a ser recalcado ou é aceite, sendo a tónica colocada no isolamento e na defesa.25 Para implementar a defesa contra os refugiados, está a ser utilizada uma “exclusão confinante”26 assegurada pelo estado policial e por militares em campos. Para o efeito os Estados democráticos, com os tão apregoados valores ocidentais, estão sempre dispostos a cooperar com regimes autoritários e Estados terroristas. Isto, por sua vez, está em sintonia com as condições de crise, que estão obviamente a ficar cada vez mais “fora de controlo”. Nada sugere que possam ser controladas, nem mesmo por meios autoritários e repressivos.
O modelo económico alemão – país exportador e de baixos salários – está a atingir os seus limites em tempos de proteccionismo e de concorrência crescente com a China. É claro que as “elites políticas” estabelecidas e os seus pretensos opositores (e mais ainda o “homem comum” zangado na rua) não querem saber nada sobre contextos sistémicos. É mais fácil criticar os Verdes,27 por exemplo, como supostamente responsáveis por tudo isto (inflação, aumento dos preços da energia, insolvências, etc.) por causa da sua “ideologia verde”. Em vez da crítica e de uma autorreflexão ponderada, prevalecem claramente o ressentimento e a raiva entranhada. O cinto tem de ser apertado para aqueles que de qualquer modo pouco ou nada têm. Com um paternalismo nojento, claro! Foi o que demonstrou o “debate” sobre o rendimento do cidadão, supostamente demasiado elevado e que apenas torna preguiçosos os pobres e os trabalhadores precários. O alegado abuso do rendimento do cidadão estaria a tornar-se uma ameaça para a Alemanha como local de negócios. Durante o Campeonato do Mundo de Futebol, o ordinário jornal Focus (27 de Julho) noticiou que os beneficiários do rendimento do cidadão gastavam o seu subsídio em cerveja nos ajuntamentos de adeptos, para depois terem de cortar no final do mês. Não é o montante do rendimento do cidadão que é criticado, mas o facto de estar a ser “esbanjado” em cerveja. Aqueles que têm uma vida pobre ou precária ou caem no declínio social não devem esperar momentos agradáveis para si! Christian Lindner apelou a “brutalidades nos sistemas sociais” (tagesspiegel.de de 20.2.2024) para cumprir o sagrado “travão da dívida” e poder concretizar o reforço militar. Eles virão de certeza! De qualquer modo, a atitude agressiva contra os pobres é a corrente dominante. Nunca houve aqui um “corta-fogo”.
Com a “viragem” decretada por Olaf Scholz por ocasião da guerra de agressão do regime de Putin contra a Ucrânia, estão a ser apertadas ainda mais as tarraxas para colocar a sociedade em forma militar. As escolas da Baviera, por exemplo, já não podem recusar a propaganda do exército nas aulas e as universidades têm de cooperar com ela. A condição civil das universidades será provavelmente em breve totalmente abolida. A introdução de aulas de desporto militar nas escolas também está a ser discutida!28 É surpreendente a pouca oposição que estes planos encontram! Não é a perturbação do consenso que está na ordem do dia, mas sim a cobardia e a denúncia. De repente, reclama-se uma comunidade à qual uma pessoa teria de se sacrificar. Porque é que havemos de deixar que nos imponham a “nação” como pretensa comunidade solidária, matar por ela e deixarmo-nos matar, quando o regime neoliberal se baseia na falta de solidariedade? – como muito bem salientou o jornalista de esquerda Ole Nymoen no Berliner Zeitung (4.8.2024).
Além disso, estão a ser tomadas várias medidas para controlar a desinformação, a propaganda e as notícias falsas na Internet. Seria ingénuo pensar que se trata apenas de apagar com toda a razão a propaganda anti-semita e racista. Como sabemos, as aplicações possíveis não se limitam ao objectivo originalmente previsto. Isso é possível desde logo graças a termos tão elásticos e vagos como “pessoa perigosa”, “deslegitimação do Estado” ou “ódio e incitamento”. Estes termos elásticos permitem a arbitrariedade e, por conseguinte, minam o tão proclamado Estado de direito. Devemos desconfiar quando se anuncia que serão punidas mesmo as declarações “abaixo do limiar da ofensa criminal” (segundo a ministra dos Verdes para os Assuntos da Família, Lisa Paus). Para salvar a democracia, as pessoas estão dispostas a desmantelar o Estado de direito! Como o jurista e politólogo Maximilian Pichl sublinha no seu livro Law statt Order [Lei em vez de ordem] (Berlim 2024), o discurso inflacionário do “Estado de direito” não se refere à protecção dos direitos individuais e à limitação do poder do Estado, que, segundo a sua análise histórica, é o significado de “Estado de direito” no sentido da história das ideias, mas sim aos poderes executivos do Estado, cuja autoridade está constantemente a ser alargada. E a “aplicação do Estado de direito” significa muitas vezes, como Pichl demonstra frequentemente, apenas que o aparelho de violência do Estado tem de poder actuar com rigor. Tendo em conta a crise já não controlável na imanência do capitalismo e as suas distorções, ninguém sabe onde é que esta “viagem” vai parar a médio e longo prazo, para o bem e para o mal. E sobretudo sob o rótulo de “democracia defensiva”! É provável que a formação autoritária e o colapso ou asselvajamento do Estado vão entrelaçar-se e tornar-se o novo normal. O reeleito Donald Trump e o seu gabinete de terror vão provavelmente estabelecer novos padrões no mundo ocidental. As purgas do regime de Trump são certamente apenas o começo!29 Está a tornar-se cada vez mais claro que “a democracia devora os seus filhos” (Robert Kurz)!
***
O ensaio de Robert Kurz “Condutores na contramão da história”, publicado em 1993, trata do surgimento de maciços nacionalismo e patriotismo renovados após a reunificação alemã. Mostra aqui a contradição entre um “anything goes” pós-moderno na sociedade de diversão da época e uma mania de identidade neonacional no seu contexto interno. Em ligação com isto critica uma esquerda que, após o colapso do Bloco de Leste, se cansou de ser de esquerda, desertou para a liberdade de mercado e para o pós-modernismo, mas também para o nacionalismo. Demonstra também que o pensamento de direita e o pensamento marxista tradicional convergiam em termos de nacionalismo e de amor à pátria, chegando mesmo a formar uma identidade, sobretudo no que diz respeito a atitudes autoritárias. Deixa claro que a nação só surgiu no século XIX, através da mercadoria e do dinheiro, sendo portanto um produto histórico e não um facto ontológico, que entretanto está a ser minado pela relação de mercado mundial. Mas essas contradições são ignoradas. O discurso nacional e neopatriótico remete para a globalização do económico, a qual se torna o carrasco do social. O recurso ao Estado-nação é uma tentativa fútil de gerir a crise de forma imanente – daí o título “Condutores na contramão da história”. Ele já não existe económica e culturalmente na sua forma tradicional e as suas funções não foram substituídas. Neste contexto, Kurz faz também uma breve descrição da situação económica da época. As pessoas agarravam-se ao trabalho assalariado industrial, sabendo que já não eram necessárias. Os socialmente desfavorecidos e as minorias eram excluídos e a vida quotidiana era brutalizada. Kurz também tematiza um vazio indivíduo do mercado, no qual surge uma saudade do passado. Portanto para vencer a crise tem de se ir além do conhecido, além de um marxismo da luta de classes e de um pensamento de direita e esquerda que se sobrepõem em grande parte.
O ensaio “Economia de crise do fascismo alemão – Notas sobre a interacção entre o desenvolvimento da crise económica e a fascização na Alemanha do século XXI”, de Tomasz Konicz, aborda a interação entre o desenvolvimento da crise e o desenvolvimento da direita na Alemanha. Com a Agenda 2010 e o Hartz IV e graças ao euro, a Alemanha “campeã mundial das exportações” a conseguiu adiar a crise ou passá-la para outros (Empobrece o teu vizinho). Este “modelo económico” está a atingir os seus limites. A forte dependência das exportações está a tornar-se a ruína do “país dos eficientes”. A agitação e a opressão dos desempregados e dos pobres, que contribuíram para que a obra racista de Sarrazin Deutschland schafft sich ab (A Alemanha abole-se a si própria) se tornasse o mainstream burguês, estão agora a tornar-se economicamente inúteis, face ao proteccionismo e à tendência para a desglobalização. Konicz mostra que a política de reformas do regime de Schröder não pode ser repetida com êxito económico, por mais feroz e cruel que seja a agitação e a opressão burocrática contra os “parasitas sociais”. Aqui Konicz deixa claro que os ideologemas dos neofascistas (“sulistas preguiçosos”, procura de “culpados”, etc.) são componentes levados ao extremo da ideologia neoliberal, ou seja, da própria “normalidade” burguesa. A direita é onde está o centro. A concorrência económica total, a perda de controlo a vários níveis, o (temido) declínio social, etc., estão a fazer transpirar o extremismo de direita. Apesar de tudo, isto não é inevitável. Konicz sublinha a importância de questionar o fetichismo do capital, de resistir à regressão e desinibição gerais, de ver as convulsões e catástrofes no seu contexto histórico (em contraste com a pseudoconsciência instantânea da irracionalidade burguesa). Não há praticamente nenhum sinal de uma esquerda que possa fazer isto a sério, que possa tornar concebível a abolição do capitalismo e uma correspondente “prática de transformação”. Por último, mas não menos importante, os últimos anos, com os Pegida, a mania das conspirações e afins, mostraram que a agitação e propaganda neofascistas encontram ampla aprovação em todos os círculos sociais. Este facto é claramente demonstrado pela convergência de conteúdos de quase todos os partidos com a AfD, o mais tardar desde a dissolução da coligação do semáforo.
Perante o terrorismo do Hamas e a resposta militar de Israel, o anti-semitismo em relação a Israel está a ser desencadeado em grande parte da esquerda, especialmente em contextos pós-coloniais, o que está a ter uma ressonância social positiva. Partindo desta situação, o texto de Herbert Böttcher “Anti-semitismo projectivo, ‘burguesia bruta’ e alucinação social” baseia-se em abordagens da teoria crítica para definir o anti-semitismo. Esta insistiu na ligação entre anti-semitismo e sociedade capitalista e entendeu o anti-semitismo como um processamento projectivo das crises e, portanto, como expressão de alucinação social. A partir daqui, coloca-se a questão de saber como o anti-semitismo projectivo se apresenta perante as actuais situações de crise que se agravam dramaticamente. Será retomada a reflexão de Moishe Postone sobre a dominação abstracta do capital e a conexa antinomia entre concreto e abstracto, como pano de fundo essencial da alucinação anti-semita, bem como o recurso de Robert Kurz à multiplicação do capital como irracional fim em si mesmo, incluindo o seu carácter de crise, e ainda a reflexão de Roswitha Scholz no sentido de entender o anti-semitismo e o racismo em relação com o todo da socialização da dissociação-valor, dando seguimento simultaneamente à lógica própria de cada um deles – e recusando a pressão da lógica identitária de derivação.
O anti-semitismo, como processamento projectivo das crises, situa-se actualmente na crise imanentemente inultrapassável do capitalismo, que se manifesta nas chamadas crises múltiplas. Ao estilo da “burguesia bruta”, pretende-se que as perdas de controlo sejam compensadas através da rejeição dos culpados na miséria. A ausência de reflexão é combinada com o imediatismo das concretizações ou personalizações projectivas. Continua a ser assumida sem reflexão a normalidade: o alucinado fim em si da multiplicação do capital juntamente com a sua destrutiva dinâmica de crise. Mas as “soluções” só podem aparecer quando a reflexão crítica sobre a “totalidade concreta” puder ser eficaz como irritação e interrupção da normalidade alucinada.
O texto “Quando falar do Holocausto desvia a atenção da luta de classes – Negação do Holocausto, marxismo tradicional e ultra-esquerda em França”, de Johannes Vogele, é dedicado a uma parte pouco conhecida da negação do Holocausto: em França, a história da negação do Holocausto tem uma componente particular que não se encontra mais lado nenhum. Durante algum tempo, a negação do Holocausto foi propagada e activamente publicitada por uma parte dos da “ultra-esquerda” – um movimento/escola marxista, antileninista e comunista dos conselhos. Baseavam-se nos comunistas italianos de esquerda Bordiguistas e no seu antifascismo. Em que medida é que esta história representa mais do que uma simples anedota ou bizarria, situando-se, por um lado, na tradição do anti-semitismo e do anti-sionismo de esquerda e representando, por outro lado, uma visão maniqueísta do capitalismo, como essencialmente caracterizado pela luta de classes e por estratégias de poder político? Onde é que uma crítica de ultra-esquerda e truncada do capitalismo e uma teoria da conspiração anti-semita (de extrema-direita) se encontram? Qual é a relação entre a negação pura e simples do genocídio e a actual negação generalizada através da banalização (em que a memória do genocídio serve dois objectivos para a ultra-esquerda: distrair o proletariado da sua missão histórica e justificar a fundação do Estado de Israel)?
No ensaio de Roswitha Scholz “Interseccionalidade e diversidade no beco sem saída da velha esquerda”, duas abordagens proeminentes mais recentes à raça, classe e género, e à interseccionalidade, nomeadamente a concepção de “Diversidade de Exploração” de Eleonora Roldán Mendívi/Bafta Sarbo (2021) e as reflexões de Karin Stögner sobre ideologia e interseccionalidade (2021), são confrontadas com as elaborações do livro “Diferenças da Crise – Crise das Diferenças” (2005), que, na sua opinião, ainda hoje se mantém válido nos pontos essenciais. A principal crítica é que várias formas de discriminação e desigualdades são novamente subsumidas à categoria da classe e prossegue-se uma ontologia do trabalho, como é feito por orientações que remetem principalmente para o marxismo tradicional. Neste contexto, a crítica da dissociação-valor também põe em causa uma “normalidade” esgotada, que hoje em dia está de novo em alta e faz das “pessoas comuns” a referência da crítica de esquerda. O declínio das camadas médias, que determinam o que é considerado “normal”, também desempenha aqui um papel importante. No entanto, as mudanças das últimas décadas exigem outras categorias e um entendimento da totalidade para lá das antiquadas teorias marxistas; em vez disso, está a ocorrer uma regressão em grande parte da esquerda actual, chegando-se a “invocações dos mortos” (Marx). Estas tendências também podem ser reconhecidas de formas diferentes em Roldán Mendívil/Sarbo, que vêm de um canto marxista tradicional, e em Stögner, que se situa na tradição da Escola de Frankfurt. Em vez disso, numa perspectiva de crítica da dissociação-valor, as disparidades económicas, o anti-semitismo, o racismo, etc. devem ser reconhecidos tanto na sua lógica própria como na sua interligação, e uma relação hierárquica de género não deve voltar a ser uma contradição secundária.
Com o declínio dos Estados ocidentais, o ponto de viragem anunciado pela guerra na Ucrânia e a relativa ascensão da China no capitalismo global em crise, o pensamento maniqueísta está em alta no discurso político. Diz-se que há uma luta entre a democracia liberal e as autocracias. O Ocidente estará em confronto com um “eixo de autocracias” (Anne Applebaum). No texto “Democracia versus autocracia?”, Thomas Meyer traça este desequilíbrio ideológico, que é alimentado pelo pensamento “ou-ou” da Guerra Fria e pelo choque de civilizações de Samuel Huntington. Mostra por que razão esta oposição permanece à superfície e onde residem os limites fundamentais da tão apregoada democracia ocidental/burguesa/liberal e da sua liberdade.
A teoria pós-colonial parece hoje à primeira vista o regresso do anti-imperialismo no jargão pós-moderno. E de facto muitas das atitudes políticas em relação ao racismo e às questões das relações internacionais de poder surgidas nos últimos dez anos, e que são descritas como pós-coloniais, devem ser consideradas como parte da retradicionalização que tomou conta da esquerda neste período. No entanto a este ponto de vista escapam dois pontos cruciais. Em primeiro lugar, é estranho que não haja praticamente nenhuma tentativa de analisar sob a bandeira do pós-colonialismo o estado do mundo após a colonização. Em vez disso, parece que o tempo está a andar para trás. Apela-se novamente à descolonização, como se os movimentos anticoloniais e de libertação nacional após a Segunda Guerra Mundial não tivessem sido bem sucedidos. Por outro lado, como mostra um olhar sobre a sua história a partir de meados da década de 1980, a teoria pós-colonial era uma teoria que se opunha ao anti-imperialismo tradicional em vários aspectos. O facto de ela hoje em dia poder servir para renovar a má tradição necessita, portanto, pelo menos de explicação e, por conseguinte, merece uma crítica ideológica diferente da do anti-imperialismo. Para isso, a primeira parte do artigo de JustIn Monday “A descontinuidade do colonialismo – Sobre a filosofia da história e a história real do pós-colonialismo e do decolonialismo” começa com a questão da posição do pós-colonialismo na academia no seu conjunto, uma vez que o pensamento pós-colonial está muito centrado nesta última e está espalhado por todo o espectro das ciências humanas, culturais e sociais. Também discute a filosofia da história que o pensamento pós-colonial implica, embora opere dentro de paradigmas pós-modernos, ou mais precisamente, pós-estruturalistas, segundo os quais a filosofia da história deve ser desconstruída. Este modo de proceder segue o ponto de vista de que os conteúdos centrais da crítica pós-colonial são tão determinados pelas formas da crítica metodológica desconstrucionista que não podem ser entendidos, e muito menos criticados, sem a sua reconstrução. Por esta razão, os componentes centrais do pensamento pós-colonial só são confrontados num segundo passo (na segunda parte) com a sua história de origem e com a história mundial, na qual as antigas colónias foram de facto descolonizadas e, portanto, nacionalizadas (a publicar na exit! nº 23). Mas não com os resultados que a ala esquerda dos movimentos de libertação anticoloniais outrora esperou e desejou.
Peter Schmitt aborda o conceito de “pseudo-individualidade” (Adorno/Horkheimer 1947) no seu artigo como convidado “Pseudo-individualidade hoje – Sobre a actualidade da Dialéctica do Iluminismo”. Este termo ainda hoje pode ser utilizado para levantar questões altamente controversas. Questões que ganham uma nova urgência em contextos de aplicação técnica que se tornaram omnipresentes: O que significam a individualidade e a liberdade em permanente coexistência com o aparelho? Ainda se pode falar de indivíduos quando se trata de utilizadores de programas de massas? E finalmente: como nos distanciamos de tecnologias altamente ideologizadas que incorporámos tão profundamente nas nossas vidas “individuais”? Embora originária do sistema mediático de outrora, dominado pela rádio e pelo cinema, a pseudo-individualidade pode ser entendida como um teorema útil face aos desenvolvimentos do nosso presente, que ganha novo poder explicativo no contexto dos impulsos de digitalização actualmente em curso. A releitura de passagens relevantes da Dialética do Iluminismo tem lugar em duas etapas. Em primeiro lugar são expostos aspectos individuais com referências históricas, para depois serem relidos tendo por fundo os contextos digitais e económicos da vida que se tornaram omnipresentes.
Se não se tiver em conta o nível político-económico e a condicionalidade histórica do social para as catástrofes sociais e psicológicas, sabe-se que as biologizações fornecem explicações e as necessárias justificações. Em “Doença mental e neurociência – Notas sobre a naturalização da sociedade”, de Thomas Meyer, seguindo uma recapitulação crítica do discurso neurocientífico que já não tem muito impacto público, é contrariada a dicção habitual de que as doenças mentais são essencialmente doenças do cérebro e, por isso, devem ser tratadas com medicamentos. Para além disso, é criticada a uma escala mais alargada a naturalização do social, com a qual a sociedade burguesa sempre se dotou de uma explicação e, portanto, de uma justificação para o que existe.
***
Como sempre, vamos mencionar algumas publicações para concluir. Foram publicados em francês (por Crise & Critique/Albi) de Roswitha Scholz Forme sociale et totalité concrète – Sur l'urgence d'un réalisme dialectique aujourd'hui30 e de Robert Kurz Quand la démocratie dévore ses enfants – Remarques sur les fascismes historiques et le nouvel extrémisme de droite, completado por um epílogo de Roswitha Scholz La démocratie dévore toujours ses enfants, aujourd'hui plus que jamais!.31
Tomasz Konicz publicou uma nova edição actualizada de Klimakiller Kapital – Wie ein Wirtschaftssystem unsere Lebensgrundlagen zerstört [Capital assassino do clima – Como um sistema económico está a destruir os nossos meios de subsistência] como e-book, bem como três publicações, também em e-book, que tratam dos desenvolvimentos ideológicos dos últimos anos: Deutschlands Querfront – Altlinke auf dem Weg zur Neuen Rechten [A Frente Transversal da Alemanha – A velha esquerda a caminho da nova direita], Faschismus im 21. Jahrhundert: Sketches of Impending Barbarism [O fascismo no século XXI: Esboços da barbárie iminente], Krisenideologie: Wahn und Wirklichkeit spätkapitalistischer Krisenverarbeitung [Ideologia de crise: Alucinação e Realidade do Processamento da Crise Capitalista Tardia].
Elisabeth Böttcher e Roswitha Scholz publicaram o artigo Identitätspolitik und Klassenpolitik – Einige Anmerkungen zum linken Abstraktionsverbot [Política de identidade e política de classe – Notas sobre a proibição da abstração na esquerda] na antologia: Elsner, Steffen; Höcker, Charlotte; Decker, Oliver; Türcke, Christoph (eds.): Desintegration und gesellschaftlicher Zusammenhalt. Kritische Theorie – Psychoanalytische Praxis [Desintegração e coesão social. Teoria crítica – Prática psicanalítica], (Psychosozial-Verlag/Gießen).
Roswitha Scholz publicou o livro O sexo do capitalismo – Teorias feministas e a metamorfose pós-moderna do patriarcado (Editora Elefante/São Paulo).
Na colectânea de ensaios No Rastro do Colapso – Reflexões sobre a obra de Robert Kurz, editada por Marcos Barreira e Maurilio L. Botelho na Editora Consequência (Rio de Janeiro), são retomados alguns dos principais temas do livro de Robert Kurz O Colapso da Modernização, publicado no Brasil há trinta anos, e desenvolvida uma série de reflexões: Do significado histórico da crise do socialismo e do esgotamento da teoria marxista, à instabilidade do capitalismo global e à ascensão do crescimento chinês nas últimas décadas. A recepção da obra de Kurz no Brasil também é discutida, assim como a crise das relações de género modernas e a sua relação com as contradições sistémicas do capitalismo: Será o século XXI uma nova idade das trevas? Mais de três décadas após o anúncio desta tendência para o caos e o declínio das estruturas sociais, poderá um cenário de terra queimada das democracias de mercado ocidentais ser simplesmente descartado como irrealista? Os fundamentos económicos e políticos da globalização capitalista são apenas ameaçados a partir do exterior ou são minados pelas suas próprias contradições, das quais emergem o fundamentalismo religioso e o novo extremismo de direita? Os artigos deste livro procuram responder a estas questões.
O livro de Herbert Böttcher Religionskritik, Gottesverdunstung und Apokalyptik in Krisenzeiten – Theologie als Herrschaftskritik [Crítica da religião, volatilização de Deus e apocalipse em tempos de crise – A teologia como crítica da dominação] foi publicado pela LIT-Verlag. A teologia, a fé e a Igreja são frequentemente entendidas como factores de estabilização em situações de crise. A fé é vista como uma ajuda para lidar com as crises da vida individual, e socialmente como um recurso de orientação em várias situações de crise. Böttcher relaciona isto também com o contexto político e económico das crises, que pressionam cada vez mais a vida dos indivíduos e a convivência social, porque se perde cada vez mais o controlo sobre a vida individual e social. Isto não é uma coincidência, mas a expressão do facto de o capitalismo estar a deparar-se com limites que já não podem ser ultrapassados no quadro do capitalismo. Em vez de enfrentarem esta situação, os indivíduos e os políticos agarram-se a uma normalidade social ilusória e fingem ser capazes de ultrapassar as perdas de controlo através do isolacionismo, da militarização, do autoritarismo e do recurso a noções identitárias de povo e de nação através da classe e da luta de classes. A reflexão teológica e a pregação da Igreja não podem simplesmente adoptar uma abordagem afirmativa destas constelações. De acordo com Böttcher, as tradições judaico-cristãs devem ser enfatizadas criticamente no contexto do capitalismo em ruptura. No entanto, nenhuma crítica teológica directa da sociedade pode ser derivada da memória das tradições bíblicas. Ela tem de emergir em conjunto com uma análise crítica da sociedade. Por isso, Böttcher insiste na necessária ligação entre a teologia e a análise crítica da sociedade.
Gostaríamos também de chamar a atenção para Moishe Postone Legacy Project, que é dedicado à vida e obra de Moishe Postone https://www.moishepostone.org/, bem como para o sítio https://exitinenglish.com/, onde são regularmente publicadas traduções em inglês.
***
Johannes Vogele e Ralf Pieper entraram para a Redacção.
Também este ano voltamos a pedir aos nossos leitores e leitoras que nos apoiem com um donativo e/ou com uma assinatura.
Thomas Meyer pela redacção da exit! em Fevereiro de 2025.
Notas
1. Vgl. Rössel, Karl: Mit Nazis gegen Juden – zur Tradition des eliminatorischen Antisemitismus in der islamischen Welt [Com os nazis contra os judeus – Sobre a tradição do anti-semitismo eliminatório no mundo islâmico], jungle.world, 11.1.2024.
2. Grossmufti – Grossagent der Achse [Grande Mufti – Grande Agente do Eixo], Salzburgo/Viena 1947.
3. Vgl. https://www.kritiknetz.de/images/stories/texte/Postone,%20Nationalsozialismus%20und%20Antisemitismus.pdf. Trad. port. de Nuno Miguel Cardoso Machado a partir da versão inglesa “Antisemitism and National Socialism” (1986): Anti-semitismo e nacional-socialismo, online: https://o-beco-pt.blogspot.com/2012/03/moishe-postone_02.html; também incluída na colectânea de textos de Moishe Postone, Antissemitismo e nacional-socialismo – Escritos sobre a questão judaica, Consequência, Rio de Janeiro, 2021.
4. Uma selecção: Linfield, Susie: Der 7. Oktober und die linke Solidarität mit den Tätern [O 7 de Outubro e a solidariedade da esquerda com os criminosos], jungle.world, 11.1.2024; Barreira, Marcos: In Brasilien gewinnt die traditionalistische Linke an Einfluss und fördert den Israelhass [No Brasil a esquerda tradicionalista está a ganhar influência e a promover o ódio a Israel], jungle.world, 29.2.2024; Konar, Kacper: Erstarkender Antisemitismus – Innenansichten aus der polnischen Linken [O crescente anti-semitismo – Visões internas da esquerda polaca], jungle.world, 8.8.2024; Matteonie, Federica: In Italien rufen Studierende zur »studentischen Intifada« gegen Israel auf [Estudantes em Itália apelam a uma “intifada estudantil” contra Israel], jungle.world, 23.5.2024; Thielen, Philipp: Antisemitismus in Frankreich – die Linke ist Teil des Problems [Anti-semitismo em França – A esquerda é parte do problema], jungle.world, 16.11.2023; Dreis, Ralf: Linke Demonstrationen am »Nakba-Tag« in Griechenland [Manifestações de esquerda no "Dia da Nakba" na Grécia], jungle.world, 30.5.2024.
5. Cf. por exemplo: Frey, Lisa: “I love Hamas”, jungle.world de 2 de janeiro de 2025.
6. Sarah Maria Sander: Als die Hisbollah das Leben in Nordisrael zerstören wollte [Como o Hezbollah queria destruir a vida no norte de Israel], 21.12.2024, https://www.youtube.com/watch?v=tglYp-BPSw8.
7. Vgl. z. B. Illouz, Eva: How the Left Became a Politics of Hatred Against Jews [Como a esquerda se tornou uma política de ódio contra os judeus], 15.3.2024, https://k-larevue.com/en/illouz-butler/.
8. Vgl. Stöver, Merle: Wer sind eigentlich die Queers for Palestine? [Quem são realmente os Queers for Palestine?], belltower.news, 18.7.2024.
9. Queer-Demonstrantinnen fordern eigene Hinrichtung! [Manifestantes queer exigem a sua própria execução!], https://www.youtube.com/watch?v=cUVLjWAcRJA.
10. O sangue gela nas veias quando se olha para declarações como esta: https://www.memri.org/tv/hamas-event-honoring-mothers-palestinian-terrorists-sacrifice-our-children-grandchildren. Cf. também: https://www.memri.org/reports/hamas-indoctrination-children-jihad-martyrdom-hatred-jews.
11. Vgl. Goetz, Judith; Mayer, Stefanie: Globalisierter Backlash – Queerfeindlichkeit und Antifeminismus verbinden autoritäre Bestrebungen weltweit [Reacção globalizada – Queerfobia e antifeminismo ligam aspirações autoritárias em todo o mundo], in: iz3w Nr. 401, iz3w.org, 19.2.2024.
12. Ver Kaiser, Susanne: Politische Männlichkeit – Wie Incels, Fundamentalisten und Autoritäre für das Patriarchat mobil machen [Masculinidade política – Como incels, fundamentalistas e autoritários se mobilizam pelo patriarcado], Berlim 2020. Ver também Wettig, Hannah: Komplimente von rechts – Traditionelle Familienwerte verbinden Rechtsextreme und konservative Muslime [Elogios da direita – Os valores tradicionais da família unem extremistas de direita e muçulmanos conservadores], jungle.world, 10.8.2023.
13. Cf. por exemplo Fundação Antonio Amadeo (ed.): Antisemitische Allianzen nach dem 7. Oktober [Alianças anti-semitas após o 7 de Outubro], 6.6.2024, https://www.amadeu-antonio-stiftung.de/wp-content/uploads/2024/06/Lagebild-Antisemitismus-13.-Antisemitische-Allianzen.-Pressefahne.pdf e Mohammed, Peshram: Eine unheilige Allianz – Das Bündnis zwischen Linken, Postkolonialen und Islamisten [Uma aliança profana – A aliança entre esquerdistas, pós-coloniais e islamistas], jungle.world, 21.12.2023.
14. Žižek, Slavoj: Die Paradoxien der Mehrlust – Ein Leitfaden für die Nichtverwirrten [Os paradoxos do mais-prazer – Um guia para os não confusos], Frankfurt 2023, zuerst London 2022, 384.
15. Kurz, Robert: Der Tod des Kapitalismus: Marxsche Theorie, Krise und Überwindung des Kapitalismus [A morte do capitalismo: teoria de Marx, crise e ultrapassagem do capitalismo], Hamburg 2012, 159. Trad. port. do texto em: Não há revolução em lado nenhum. Carta aberta às pessoas interessadas na EXIT! na passagem de 2011 para 2012, online: http://www.obeco-online.org/rkurz400.htm
16. Vgl. Konicz, Tomasz: Sarrazins Sieg [A vitória de Sarrazin], konicz.info, 12.9.2010.
17. O alto funcionário do Hamas, Ghazi Hamad, declarou explicitamente que queria repetir esse massacre até que Israel fosse destruído. https://www.jpost.com/arab-israeli-conflict/article-771199.
18. Kurz 2012, ibid.
19. Cf. Sarah Maria Sander: Falsche Opferzahlen in Gaza – übernehmen die Medien manipulierte Daten der Hamas? [Números falsos de vítimas em Gaza – Estarão os media a adoptar dados manipulados do Hamas?], 29.12.2024, https://www.youtube.com/watch?v=HNFsGWoSH9c&t=0s.
20. Cf. Sarah Maria Sander: Die Hamas will mehr Todesopfer in Gaza [O Hamas quer mais vítimas mortais em Gaza], 30.12.2024, https://www.youtube.com/watch?v=UzdNbbdqiX8.
21. Cf. por exemplo, Jewish News Syndicate: UN-Watch Bericht: UNRWA ließ wissentlich Infiltrierung durch Hamas zu [Relatório do Observatório das Nações Unidas: a UNRWA permitiu conscientemente a infiltração do Hamas], mena-watch.com, 13.1.2025 e Shvili, Jason: Warum die Palästinenser in der arabischen Welt Parias sind [Porque é que os palestinianos são párias no mundo árabe], mena-watch.com, 13.11.2023.
22. Nowotny, Konstantin: »Wir wollten sie stürzen«, Interview mit Hamza Howidy ["Queríamos derrubá-los", entrevista a Hamza Howidy], taz.de, 13.7.2024.
23. Cf. por exemplo, Elbe, Anni: Räuberleiter für die AfD – Die Migrationspolitik der Ampel ist am Tiefpunkt angekommen [Escada de ladrão para a AfD – A política de migração da coligação do semáforo atingiu o seu ponto mais baixo], iz3w.org, 16.10.2024, Schultheis, Joschua: Dieser Weg führt zu einer Koalition mit der AfD [Este caminho leva a uma coligação com a AfD], Jüdische Allgemeine, 1.2.2025.
24. Bulle, Sylvaine: Andreas Malm et l’antisémitisme vert, 11.9.2024, https://k-larevue.com/malm-antisemitisme-vert/.
25. Martens, Mawuena: Klimawandel und Flucht – Die doppelte Bedrohung [Alterações climáticas e fuga – A dupla ameaça], Junge Welt, 13.11.2024.
26. Cf. Kurz, Robert: Weltordnungskrieg – Das Ende der Souveränität und die Wandlungen des Imperialismus im Zeitalter der Globalisierung, Springe 2021, 203ss., 358ss. [A Guerra de Ordenamento Mundial. O Fim da Soberania e as Metamorfoses do Imperialismo na Era da Globalização, pp. 137ss., 236ss. http://www.obeco-online.org/a_guerra_de_ordenamento_mundial_robert_kurz.pdf]
27. Cf. por exemplo, Topfvollgold: Die wilden Kampagnen gegen Robert Habeck [As campanhas selvagens contra Robert Habeck], https://www.youtube.com/watch?v=4DGAeHSfOFM.
28. Cf. por exemplo, https://www.imi-online.de/2024/09/06/imi-kongress-2024-zeitenwende-in-bildung-und-hochschulen/ assim como Linder, Fabian: Bundeswehrförderungsgesetz: »Schülern wird Nähe zum Militär aufgedrängt« [Lei da promoção da tropa federal: "Estudantes são obrigados a aproximar-se dos militares"], Junge Welt, 30.11.2024. Kopp, Johannes: Sportunterricht für den Ernstfall – Kinder zum Krieg erziehen [Educação física para situações de emergência – Educar as crianças para a guerra], taz.de, 24.1.2025.
29. Konicz, Tomasz: Cancel Culture USA, konicz.info, 6.2.2025. Em Português: https://www.konicz.info/2025/02/10/cancel-culture-usa-3/
30. Original alemão in exit! Nr. 6. Em português: http://obeco-online.org/roswitha_scholz12.htm
31. Original alemão in exit! Nr. 16 [Em Português: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz32.htm]. Die Demokratie frißt ihre Kinder, de Robert Kurz, 1993, em exit-online.org [Em Português: A democracia devora seus filhos, Consequência, Rio de Janeiro, 2020].
Original “Editorial der exit Nr. 22” in exit-online.org. Tradução de Boaventura Antunes (02/2025)