Richard Aabromeit

 

VALOR SEM CRISE – CRISE SEM VALOR?

 

Sobre a ausência de uma teoria da crise em Moishe Postone

 

Do seminário do círculo de leitura da crítica da dissociação-valor de Dresden, em Maio de 2014, sob o tema "Moishe Postone entre a crítica do valor e o marxismo tradicional".

 

 

 

"Uma nova interpretação da teoria crítica de Marx" é o subtítulo do livro de Moishe Postone Tempo, Trabalho e Dominação Social, de 2003 (1). Este lema bem que abre o apetite e se, como eu, se entra na leitura com grandes expectativas e, em seguida, ainda há um seminário para concluir a discussão do livro no círculo de leitura, com participação activa – sim, então provavelmente pelo menos alguns desejos teriam de se tornar realidade, e a elaboração da teoria crítica neste país não pode estar assim tão mal... Nós estávamos confiantes, desde o início da nossa leitura e discussão há mais de um ano, em que, além da definição ou a reinterpretação de muitas categorias sociais, tais como género, valor, trabalho, dinheiro, capital etc., o texto também se pronunciaria sobre o que pode fundamentar uma perspectiva apontando para além da formação social capitalista ou patriarcado produtor de mercadorias: entre outras coisas, fornecer uma teoria (radical) da crise. Tal teoria da crise, por um lado, teria de referir-se aos fragmentos de toda a obra de Marx para isso elegíveis, em particular, é claro, dos três volumes de O Capital (ou seja, MEW 23, 24, 25), dos Grundrisse (MEW 42), e da Contribuição para a Crítica da Economia Política (MEW 13). Por outro lado, conduziria ainda a discussão no sentido de juntar, ligar e transformar esses fragmentos, com o objectivo de efectuar o completamento e actualização de tal teoria. Depois da morte de Marx em 1883, como é sabido, essas tentativas foram empreendidas várias vezes, mas, na verdade, mais esporadicamente, entre outros por Rosa Luxemburgo, Karl Korsch e Henryk Grossmann. Após a Segunda Guerra Mundial, no entanto, a questão da teoria da crise desapareceu quase completamente do discurso social. Também as/os poucas/os marxistas que tentaram intervir renunciaram a este tema o mais possível ou referiram-se às declarações de Marx sobre o assunto em termos gerais. Só em 1980 pediram a palavra representantes do chamado Círculo de Göttingen da Juventude Socialista no SPD, com as suas "II Teses de Göttingen" (Göttingen, 1980), ou seja, mais ou menos em simultâneo com o ponto alto da terceira revolução industrial. Na sua sequência surgiram novamente textos a serem levados a sério, que estavam em ligação com teorias da crise ou mesmo alegadamente do colapso e que retomaram de novo o fino fio da teoria marxista da crise. No entanto, estes esforços ficaram limitados no essencial à "Initiative Marxistische Kritik", mais tarde grupo "Krisis" e agora grupo "EXIT!". Pelo contrário: tanto a economia política e a sociologia burguesas, como os marxistas tradicionais, a Nova Leitura de Marx e, claro, também a esquerda do movimento tentaram, primeiro, esconder completamente o tema da crise ou da explicação da crise mais ou menos por rotina, ou bani-lo das suas elaborações teóricas; mais tarde, quando isso já não se podia justificar plausivelmente devido aos dados empíricos disponíveis, polemizou-se com mais ou menos nível contra qualquer teoria radical da crise. Com a pretensão inicialmente referida da parte de Moishe Postone poder-se-ia ter esperado uma contribuição razoavelmente significativa da sua parte para esta temática – pelo menos teriam sido apropriadas algumas referências, ou o anúncio de posteriores tentativas de pretender retomar de novo este conjunto de problemas, dada a sua relevância. Infelizmente, nem no livro que tínhamos usado como um ponto de partida e base para o referido seminário em Dresden se encontra nada nesse sentido, nem Postone regressou ao tema em declarações posteriores com mais do que apenas algumas poucas frases superficiais.

 

Para lá de todos os méritos que, sem dúvida, têm de ser reconhecidos à contribuição de Postone para a discussão ou nova abordagem da crítica social radical, a falta de uma teoria da crise deixa uma sombra negra sobre a qualidade dos resultados obtidos por Postone. Ele reconhece, de facto, que tem de haver algum tipo de crise; escreve, por exemplo: "A concepção aqui esboçada da complexa dinâmica do capitalismo é de grande relevância para a dupla crise hoje iminente [sic] – a destruição ambiental e o declínio da sociedade do trabalho." (Postone 2013, 384). Mas quem estava à espera que Postone entrasse agora no conceito de "crise" engana-se; imediatamente depois Postone prossegue designadamente com o tema "crescimento": "Ela [a concepção de Postone; RA] permite uma crítica social (em vez de tecnológica), que tem por objecto o curso do crescimento e a estrutura da produção na nossa sociedade moderna." (Ibid.). E continua a abordar mais de perto o tema do "crescimento" e não o tema da "crise". Ainda mais longe de uma teoria da crise, ele formula: "Ao contrário das análises de Robert Kurz, no entanto, eu não acredito que estes desenvolvimentos levem necessariamente ao colapso do capitalismo, mesmo se a dinâmica de expansão começa a paralisar. Os actuais desenvolvimentos de crise poderiam, pelo contrário, levar à construção de Estados altamente militarizados, onde um grande número de pessoas se torna obsoleto e é mantido na ordem com medidas repressivas autoritárias. Este é um cenário muito desagradável, mas, mesmo assim, o capitalismo poderia sobreviver." (Postone 2012, 166). Com estas indicações Postone abandona, infelizmente, o seu tão meticulosamente elaborado nível da crítica do valor fundamental; ele mergulha numa fixação estatista e num politicismo, com os quais consegue de facto chegar a descrever as ameaçadoras acções dos detentores do poder, mas não consegue chegar à compreensão conceptual da situação social. Assim se reforça a suspeita de que Postone não dispõe mesmo de uma teoria da crise ou que recusa absolutamente tal teoria.

 

A procura de vestígios de uma teoria da crise no seu livro torna-se extremamente difícil. De facto também Postone, como a maioria das/os marxistas, faz a famosa citação de Marx dos Grundrisse ("O capital é ele próprio a contradição em processo..." [42 MEW, 601sg; em Postone, 2003, citado na p. 68]). Mas, em vez de aproveitar a oportunidade para, pelo menos aqui, desenvolver uma teoria da crise, o que de facto Marx só conseguiu fragmentariamente ao longo de toda a sua obra, ou para pelo menos dar sinais disso, Postone vira-se de imediato para um dos seus temas favoritos (aqui: o trabalho). Mas o facto de justamente essa citação dos Grundrisse ser uma das mais importantes referências do próprio Marx à "question de vie et de mort" (ibid.) do modo de produção capitalista parece escapar completamente a Postone. Assim ele terá de ir à procura de outra possibilidade que pudesse apontar para além da nossa formação social, e é o que ele também faz depois no seu livro. Apenas uma página depois da referida citação de Marx do fragmento das máquinas dos Grundrisse, diz Postone: "O seu entendimento [de Marx; RA] da contradição fundamental do capitalismo não se refere essencialmente à contradição entre a produção social e apropriação privada [até aqui d'accord; RA], mas sim à contradição no interior da própria esfera da produção, esfera que inclui o processo de produção imediato e as relações sociais constituídas no capitalismo através do trabalho." (Postone 2003, p. 69 sg.; destaques no original). Mais algumas páginas adiante, lemos: "Uma teoria crítica do capitalismo e das possibilidades da sua superação, portanto, deveria ser também uma teoria da constituição social de tais necessidades e formas de consciência – uma teoria que conseguisse lidar com as mudanças históricas qualitativas da subjectividade e compreender em conformidade os movimentos sociais do presente. Ela poderia lançar uma nova luz sobre o conceito marxiano de auto-abolição do proletariado e prestar bons serviços na análise dos movimentos sociais das últimas décadas." (Postone 2003, 73). Aqui temos nós o proletariado (para além de outros “movimentos") como actor: isto no seu conjunto perfaz uma multidão socialmente revolucionária, que Postone prefere considerar, em vez de formular uma teoria da crise.

 

Neste ponto muitos, à partida cépticos ou hostis perante a investigação de Postone, poderiam dizer: portanto também Postone é, no fundo, apenas uma espécie de lutador de classes tardio, ou um representante dos interesses dos oprimidos e desfavorecidos, apenas num nível mais nobre, a partir do qual se pode deduzir a crítica do valor, e a partir do qual, além disso, se impede que o sujeito revolucionário (por exemplo, a classe trabalhadora em conjunto com os intelectuais e as novas classes médias, ou a multitude [ver Hardt/Negri 2004]) se foque com demasiada força no questão da propriedade (cf . Postone 2003, 255, nota de rodapé 30). Sim, quem pretender simplesmente fazer isso, pode desde já pôr de lado tanto o livro Postone como o presente texto e continuar como se nada fosse. Mas, para avaliar a importância de Postone adequadamente, já vale a pena pelo menos um pouco mais de pesquisa!

 

Embora Postone rejeite, de facto, a ênfase ortodoxa na classe dos trabalhadores/as (no sentido tradicional: todos/as os/as trabalhadores/as produtivos/as de capital ou de valorização) como sujeito revolucionário para o derrube do capitalismo, mostrando que a contradição de classes entre burguesia e proletariado é uma contradição puramente imanente a esta formação social (cf. Postone 2003, 473 sg.), no entanto, através da referência a diferentes "movimentos" sociais (por exemplo, movimentos de mulheres, movimentos de minorias, entre outros), bem como do ditirambo implícito àqueles que, mesmo num período pós-capitalista, teriam de assegurar a necessária "interacção entre a humanidade e a natureza" (Postone 2003 , 575), ele constrói as bases para outro sujeito revolucionário, não delineado com precisão, que tem a tarefa de abolir o valor e a classe trabalhadora. Note-se apenas de passagem: curiosamente, Postone não tematiza nada o estatuto nem o papel da burguesia no seu livro – nem como contraparte dos movimentos sociais, nem como opositora ao derrube do capitalismo, nem de qualquer outro modo. Como pode acontecer tudo isto que acabamos de mencionar, quando repetidamente Postone rejeita expressamente o marxismo tradicional e do movimento operário? Como pode isso acontecer, quando ele ainda tem tantos méritos na reinterpretação crítica do valor de Marx e no esclarecimento da especificidade histórica do capitalismo? E por que não percebeu ele a importância de uma teoria radical da crise, apesar de também serem incontestáveis os seus méritos na clarificação da dialéctica da produção de mercadorias patriarcal capitalista?

 

De seguida vai-se tentar encontrar algumas das razões (certamente não todas) para esta lacuna e mostrar o que isso pode significar para o debate teórico; além disso mostrar-se-á a relevância de uma teoria radical da crise para a compreensão da situação actual na sua totalidade.

 

 

A dialéctica de transformação e reconstituição

 

A primeira indicação de que Postone se furta a reconhecer um limite interno, ou seja, um obstáculo final que torna impossível ao capitalismo continuar a existir para sempre como "sujeito automático" (Marx) e, portanto, ultrapassar a sua própria crise final, encontra-se no capítulo "A dialéctica de transformação e reconstituição" (Postone 2003, 449 sg.). Ele mostra aí como o capital, num processo permanente de transformação, tende para velocidades de inovação cada vez mais elevadas e para aumentar continuamente a produtividade material no processo de valorização. Assim, de acordo Postone, primeiro aumenta a massa de valor social global; mas, uma vez generalizado o novo nível de produtividade, por força da concorrência no mercado, tornando-se agora o novo nível normal, médio, a massa de valor volta a cair para o nível anterior. Assim se teria então reconstituído a forma de valor da riqueza social. Postone escreve: "Neste ponto posso acrescentar que ela [a lei do valor; RA] implica categorialmente a pressão para níveis de produtividade sempre crescentes, para a transformação permanente da vida social na sociedade capitalista e para a reconstituição contínua das suas formas sociais básicas” (Postone 2003, 452). Em vez de se debruçar sobre a escala cada vez mais desenvolvida destes processos, ele insiste na sua simples permanência. Estes processos apenas ainda poderiam ser perturbados por meio de influências externas, tais como a intervenção da política, ou por agrupamentos subversivos, ou por problemas ecológicos no metabolismo com a natureza. Assim, as possibilidades de ultrapassar a nossa formação social estariam limitadas a actividades subversivas de agrupamentos a isso destinados (movimentos sociais no sentido mais amplo) ou a factores naturais (degradação ambiental, etc.). Pela porta das traseiras, Postone, provavelmente sem se aperceber, aproxima-se suspeitosamente das posições do marxismo tradicional e do movimento operário, bem como de outros grupos de protesto. Uma configuração consciente de uma sociedade transcapitalista não pode ser realizada por partes subversivas e/ou críticas e/ou revolucionárias da população, mas apenas por todos – e depois também devem estar todos envolvidos na construção de uma nova sociedade!

 

A dialéctica do modo de produção capitalista reclamada por Postone não se mostra somente nas circunstâncias descritas por ele, com razão, como "efeito passadeira ergométrica [treadmill effect]" (Postone 2003, 436); na consideração deste "efeito passadeira ergométrica” é deliberadamente ignorado por ele, "que o aumento de produtividade deve logicamente chegar a um ponto em que será dispensado mais trabalho abstracto do que poderá ser adicionalmente mobilizado ainda pela expansão dos mercados e da produção. Então também o aumento da mais-valia relativa por trabalhador individual não adiantará nada, porque o número de trabalhadores no conjunto utilizáveis diminui muito. Pode-se mostrar que este ponto, abstractamente antecipado por Marx, é atingido histórica e concretamente com a terceira revolução industrial. Se assim não fosse o capital teria podido mobilizar bastante trabalho abstracto na base dos seus próprios fundamentos produtivos, e aumentar a produção de valor real, em vez de ter de subsidiá-la numa escala sem precedentes, através de endividamento, bolhas financeiras e crédito público.” (2) Não adianta. O conceito acima mencionado de "efeito passadeira ergométrica” em Postone leva a fechar o desenvolvimento da contradição interna do modo de produção capitalista. Pelo facto de, na opinião de Postone, a valorização do valor se reconstituir continuamente, como numa passadeira ergométrica – para sempre? – todas as crises que possam surgir serão, em princípio, superáveis, embora possivelmente com problemas graves. Deste ponto de vista, toda e qualquer crise, de uma maneira ou de outra, nada mais é que uma fase de sobre-acumulação ou sub-consumo, e a essas crises seguem-se, desde o início do capitalismo até hoje, sempre fases de prosperidade – ergo: para que se precisa e para que serve uma teoria da crise, para mais uma teoria da crise que fale de um limite absoluto – que de facto, para Postone, não pode acontecer? Vista assim, a posição de Postone não fica de facto melhor, mas fica um pouco mais compreensível.

 

 

O conceito ambíguo de trabalho – e o de valor

 

Um segundo indício do motivo para a ausência de uma teoria da crise em Postone poderia ser o facto de ele não lidar com o conceito de trabalho com rigor. Por um lado, ele recusa com toda a razão uma ontologização deste conceito e, portanto, a sua relevância trans-histórica: "O facto de Marx tratar o valor como uma categoria historicamente específica de um modo de produção específico e não somente como uma categoria de distribuição assinala – e isto é crucial – que o trabalho que constitui o valor não deve ser identificado com trabalho num sentido trans-histórico. Em vez disso, ele representa uma forma historicamente específica que, com a abolição do capitalismo, será abolida e não realizada." (Postone 2003, 61); por outro lado, este conceito de "trabalho" escorrega-lhe repetidamente para o trans-histórico, por exemplo: "A possibilidade de o trabalho social numa sociedade pós-capitalista poder ser mais interessante e gratificante não significa, contudo, uma utopia do trabalho. Não está ligada à noção de centralidade do trabalho para a vida social. Baseia-se, em vez disso, na negação histórica do papel socialmente constitutivo que o trabalho ocupa no capitalismo." (Postone 2003, 546). Ou: "A necessidade trans-histórica tem o seu fundamento na própria vida humana, no facto de as pessoas serem parte da natureza – ainda que apenas indirectamente, na medida em que elas controlam o seu 'metabolismo' com a natureza através do trabalho." (Postone 2003, 575). Se Postone, portanto, admite uma qualidade trans-histórica do trabalho, seja de que tipo for, ou mesmo apenas a insinua, assim ontologizando de facto mais ou menos este conceito, então ele fica com uma quantidade de problemas. O conceito de trabalho é imputado à natureza do próprio ser humano, ou equivocadamente entendido com uma natureza própria (que no capitalismo apenas teria assumido uma forma feia e de preferência a ser suplantada); portanto, os vários períodos históricos apenas dão o respectivo pano de fundo para os diferentes estádios de desenvolvimento ou formas sociais de trabalho. Assim, o "trabalho" (concreto) pode ser considerado por si só revolucionário ou subversivo e os/as seus/suas prestadores/as (hoje, o proletariado e seus aliados) como aqueles que têm de passar o facho da história – por outras palavras, teriam de efectuar a libertação final do trabalho de todas as suas cadeias históricas. Então o trabalho já não pode continuar a ser concebido como especificamente capitalista. Mas, perante este pano de fundo, também já não se pode assumir uma qualidade do trabalho constitutiva da substância do valor (que seria especificamente capitalista). No final, permanece sem resposta a questão de saber de onde vem o valor – questão que, de resto, já David Ricardo não se tinha colocado, o que foi comentado depreciativamente por Marx. Se a formação do valor continua por esclarecer, ou pouco clara, então a questão de formular uma teoria da crise já não é nada fácil. Será possível que Postone tenha decidido simplesmente fugir-lhe!?

 

Mas a concepção do valor e, portanto, também a sua explicação e a da sua origem é de grande importância para a continuação do modo de produção capitalista e para as suas crises: a acção de inovação dos capitais individuais, forçada pela concorrência no movimento de realização – um movimento que ocorre ao nível da totalidade – e sempre em aceleração, conduz primeiro a que por cada unidade de tempo podem ser criadas cada vez mais unidades materiais. Ceteris paribus, portanto, por peça física de produto fica uma quantidade cada vez menor como quota-parte de valor da produção de valor social total. Enquanto pela expansão interna e externa ainda pôde ser subsumida mais força de trabalho ao modo de produção capitalista do que a tornada supérflua com o aumento da produtividade, isto não deu realmente nas vistas e teve por consequência que, apesar de tudo, ainda foi produzida massa de mais-valia suficiente para motivar investimentos de capital na indústria. Pelo menos desde o auge da terceira revolução industrial nas décadas de 1970/1980, no entanto, consegue-se cada vez menos essa façanha. Por outras palavras: a massa de mais-valia (a nível mundial) mantém-se constante ou começa a declinar – à medida que cada vez mais força de trabalho é removida do processo de produção. Mas, como continua a aumentar a produtividade (ver acima), a massa de mais-valia por unidade física de produto tende para zero. Assim, cada vez menos vale a pena um investimento na produção industrial de mercadorias; o que é empiricamente detectável sem dificuldade, como se torna mais que evidente na deslocação das partes do capital livres para oportunidades de investimento lucrativas, ou seja, rentáveis, especialmente nos constructos financeiros velhos e novos.

 

 

A teoria sem empiria?

 

Um terceiro indício da causa de Postone se abster de uma teoria da crise pode ser o facto de ele renunciar quase completamente a referir-se a dados empíricos e a interpretá-los ou explicá-los usando as suas conclusões. Ora, obviamente, tem de se conceder a um livro que expressis verbis pretende contribuir para a elaboração teórica entre marxistas que o foco da discussão não possa ser constituído por exames em série nem inquéritos de longo prazo. Mas, infelizmente, as relações sociais não se exprimem juntamente com os seus conceitos por si mesmas na realidade fisicamente perceptível. Pelo contrário, são os dados empíricos e estatísticos que descrevem caso a caso as actuais situações, desenvolvimentos e formas de movimento das numerosas contradições. Estes dados são de facto sempre amplamente mediados, confusos e enviesados, por vezes também falsificados; apesar disso, eles são justamente a expressão visível da situação social actual. O aforismo "A teoria é a da empiria e a empiria é a da teoria" poderá talvez soar como algo banal – mas exprime muito bem o que se quer dizer aqui. As crises podem ser lidas em primeiro lugar como dados da realidade em mudança. É claro que apenas através do estudo dos mais recentes números e factos por si só não se consegue uma explicação do que realmente ocorre – mas sem esse estudo também não se consegue nada. Portanto, poderia muito bem ser que Postone, também pela renúncia a tais dados, fosse levado a não reconhecer a crise suficientemente, a incluí-la de modo bastante trivial na série de crises históricas desde 1825, não chegando assim a pensar mais em profundidade sobre isso, de modo a abordar um tipo de teoria da crise. Esta sua omissão da empiria leva-o também, em seguida, à ênfase exagerada da mediação social – que acaba por conduzir às consequências mencionadas acima.

 

 

A velha questão crucial da substância do valor...

 

O quarto (e último) ponto para justificar a ausência de uma teoria da crise em Postone gostaria eu de explicar em poucas palavras com o seu mal-entendido na abordagem da substância do valor ou do trabalho abstracto. Reporto-me aqui expressamente aos comentários de Robert Kurz na EXIT! 1 e na EXIT! 2, sob o tema A substância do capital (Kurz 2004, 2005).

 

Como já foi referido na secção anterior, "O conceito ambíguo de trabalho – e o de valor", a substância que representa o valor é formada pelo dispêndio de trabalho abstracto das forças de trabalho aplicadas na valorização do valor. É verdade que esta formação de substância tem lugar na esfera da produção, ou seja, na mediação social da relação de capital – até aqui podemos acompanhar Postone – mas este facto não explica que o dispêndio de trabalho abstracto tem um aspecto quantitativo, nomeadamente da substância; cuja "quantidade" não pode de facto aparecer apenas por si mesma. Mas, uma vez que ela só chega a existir através do dispêndio do trabalho socialmente necessário ao longo de um certo período de tempo, o seu pressuposto é qualitativo (a relação de mediação social) e quantitativo (a duração do dispêndio da força de trabalho abstracto socialmente necessário). Através do único critério de determinação da substância do valor admitido por Postone, ou seja, o da mediação social, apenas o lado qualitativo do valor pode ser explicado. Mas como a crise actual mostra que a substância do valor, vista a nível mundial, está obviamente em derretimento – por outras palavras, está a ser quantitativamente reduzida – Postone aqui tem de arriar as velas (ou nem sequer chegar a içá-las) e renunciar preventivamente a qualquer teoria da crise.

 

 

Conclusão

 

A contradição invocada por Postone entre a riqueza material e a riqueza abstracta, em contraste com o "marxismo tradicional" que vê a contradição principal do modo de produção capitalista entre o estado das forças produtivas e o das relações de produção (e, portanto, apresenta o trabalho explorado numa contradição fundamental e histórica com os proprietários do capital que se enriquecem), é logicamente correcta, mas não suficiente para postular um momento visando para além da nossa formação social. Mesmo a ​​contradição, em si pertinentemente analisada, entre a transformação permanente e a reconstituição continuada não aponta para lá do capitalismo. Pelo contrário, não se pode excluir que esta contradição constitui um campo permanente de tensão em que se desenrolam os conflitos sociais que permitem sempre uma potencial solução compatível com o sistema; os fundamentos do capitalismo, portanto, não são fundamentalmente ameaçados, mas apenas repetidamente postos em perigo, que regularmente se afirma com violência nas crises e suas formas de movimento. Uma teoria radical da crise, pelo contrário, tem de estar em posição de demonstrar que o capitalismo, com o seu “movimento em si mesmo” (Marx), destrói a sua própria base e, deste modo, pode ser suplantado pela acção histórica socialmente consciente da humanidade. Mas Postone não quis pensar até aí.

 

 

 

Textos usados ​​de Moishe Postone:

 

Zeit, Arbeit und gesellschaftliche Herrschaft. Eine neue Interpretation der kritischen Theorie von Marx [Tempo, trabalho e dominação social. Uma nova interpretação da teoria crítica de Marx], Freiburg i. Breisgau, 2003. Trad. port.: Tempo, trabalho e dominação social, Boitempo, São Paulo, 2014; original: Time, Labor and Social Domination: A Reinterpretation of Marx's Critical Theory, New York and Cambridge: Cambridge University Press, 1993.

 

Die Deutschen inszenieren sich am liebsten als Opfer [Os alemães preferem apresentar-se como vítimas ], Moishe Postone im Interview mit Philipp Schmidt, in: Gremliza, Hermann L. (Hrsg.): No way out? 14 Versuche, die gegenwärtige Finanz– und Wirtschaftskrise zu verstehen [Sem saída? 14 tentativas. para compreender a actual crise financeira e económica], konkret Texte 56, Hamburg 2012: 165–172.

 

Marx neu denken [Pensar Marx de novo] In: Jaeggi, Rahel/Loick, Daniel (Hrsg): Nach Marx. Philosophie, Kritik, Praxis [Depois de Marx. Filosofia, crítica, práxis], Frankfurt a. Main, 2013, p. 364-393.

 

 

Referências adicionais:

 

Hardt, Michael / Negri, Antonio: Multitude, Frankfurt am Main 2004.

Kurz, Robert: Die Substanz des Kapitals, Erster und Zweiter Teil, [A substância do capital, primeira e segunda parte], in: EXIT! 1 und EXIT! 2 , Bad Honnef, 2004 e de 2005.

MEW 42, Berlim, 2005.

Scholz, Roswitha: Nach Postone [Após Postone] in: EXIT! 12, Berlim 2014

 

 

 

(1) O livro foi publicado em 2003 em alemão na Editora ça ira, sendo o original americano de 1993. Postone já em 1983 escreveu um texto precursor como dissertação.

 

(2) Robert Kurz em entrevista a Ulrich Leicht em 13.5.2010.

 

 

Original Wert ohne Krise – Krise ohne Wert? Zur Absenz einer Krisentheorie bei Moishe Postone  in http://www.exit-online.org. Publicado na Revista EXIT! Nº 13 (Janeiro 2016). Tradução de Boaventura Antunes

 

 

http://obeco-online.org/

http://www.exit-online.org/