1. AS METAMORFOSES DO IMPERIALISMO

(Capítulo 1. do Livro A GUERRA DE ORDENAMENTO MUNDIAL, Robert Kurz, Janeiro 2003) 

No mundo do moderno sistema produtor de mercadorias, a política é apenas a continuação da concorrência económica por outros meios, tal como a guerra (de acordo com uma frase de Clausewitz) é a continuação da política por outros meios. É esta identidade harmonizada entre concorrência, política e guerra que implica a luta pela hegemonia planetária e tem escrito a história do capitalismo.

A luta inicialmente policêntrica pelo domínio mundial capitalista foi, em primeiro lugar, puramente europeia e teve as suas raízes na história da formação do modo de produção capitalista na Europa Ocidental e Central. Do século XVI até ao século XIX formaram-se, simultaneamente com o moderno sistema produtor de mercadorias, os estados nacionais territoriais europeus, cujo conceito de nação se expandiria para o resto do mundo e viria a determinar toda a história mundial, até ao fim do século XX. Mas as imensas extensões das regiões não-europeias surgiram primeiro como meros espaços politicamente vazios e como pomo de discórdia na expansão colonial da Europa. O processo europeu de construção de estados e nações cedo se transformou numa escalada para um conflito pela hegemonia mundial destas entidades capitalistas emergentes com base na economia nacional e no Estado nacional.

Dado que a luta também foi sempre travada por territórios coloniais, e foi assim levada para além-mar, o mercado mundial identificou-se, desde o início, com guerra mundial. A corrida dos estados nacionais europeus pela hegemonia acabaria por não ser decidida, porque, a partir das condições iniciais, nenhum deles dispunha de uma vantagem decisiva. Até ao final do século XVIII, o papel de potência dominante mudou várias vezes, coincidindo com o papel de pioneiro no processo do desenvolvimento capitalista.

A Grã-Bretanha conseguiu, durante grande parte do século XIX, assumir a posição de primeira potência mundial, pois, ao impor o ritmo da industrialização, dominou por muito tempo a transformação decisiva, sobre cujo fundamento, apenas, começou a desenvolver-se o modo de produção capitalista nas suas próprias bases. Mas a corrida da França, e sobretudo da Alemanha, ao desenvolvimento industrial tornou este avanço apenas tangencial no princípio do século XX e repôs uma vez mais o equilíbrio político-militar das potências. Na época das duas guerras mundiais industrializadas e da crise económica mundial do período entre elas e a elas ligado, os estados predadores nacionais europeus do capitalismo digladiaram-se e saíram mortalmente esgotados do campo de batalha. O mercado mundial colapsou; o comércio mundial recuou para um nível só comparável ao dos finais do século XIX. Surgiu com isso o perigo de se impedir a continuação do desenvolvimento capitalista nos mercados internos das economias nacionais e dos estados fechados sobre si próprios.

Este colapso causado pela luta europeia pelo domínio capitalista mundial foi já o prenúncio de um limite absoluto do moderno sistema produtor de mercadorias. Mas foi apenas o prenúncio. Pois a vaga de catástrofes socioeconómicas mundiais da primeira metade do século XX foi, antes de mais, político-militarmente induzida, ou seja, em formas derivadas da relação de capital, estando o espaço de manobra económico do desenvolvimento capitalista mundial ainda longe de esgotado. Naturalmente que, na altura, em cima dos acontecimentos, era impossível reconhecê-lo. Mas, do ponto de vista actual, pode dizer-se que a época das guerras mundiais e da crise mundial a elas ligada foi a última catástrofe resultante da implantação do modo de produção capitalista (ou seja, no interior de um movimento económico ainda ascendente), mas não o seu limite interno absoluto, que marcasse o fim do mesmo movimento económico ascendente.

 

A Pax Americana: A luta pelo domínio capitalista mundial está decidida 

Como consequência da época das guerras mundiais, o desenvolvimento resultante da luta perdida da Europa pela hegemonia capitalista mundial foi essencialmente determinado por um impasse político-militar, e isto num duplo sentido.

Por um lado, as regiões dependentes ou "subdesenvolvidas" do ponto de vista capitalista, situadas na periferia do mercado mundial, aproveitaram as fraquezas dos estados hegemónicos europeus do centro do capitalismo, que sangravam e lambiam as próprias feridas, para sacudir o domínio colonial da Europa e a sua dependência política externa.

O tiro de partida deste movimento de descolonização e de "modernização atrasada", que atravessou todo o século XX, foi dado logo a seguir à Primeira Guerra Mundial pela Revolução de Outubro na Rússia, sem dúvida a Revolução Francesa do Leste. É verdade que o império dos czares fazia parte das potências europeias tradicionais e ele próprio tinha acumulado um império colonial expandindo-se, não no Ultramar, mas na massa continental da Eurásia. Contudo, a Rússia era simultaneamente periferia, sem qualquer base industrial própria, estando em muitos aspectos estruturalmente aparentada com as regiões coloniais e dependentes. Lenine viu a Revolução Russa sempre no duplo contexto de revolução contra o colonialismo europeu, por um lado, e de "modernização atrasada", como consciente "aprender com a Europa Ocidental", por outro.

A orientação a ela ligada, capitalista de Estado embora ideologicamente mascarada de "socialismo", só podia ser a criação de uma base industrial independente e de um mercado interno no quadro de um estado nacional, para poder participar no mercado mundial capitalista como sujeito nacional autónomo. E foi precisamente nesta perspectiva que o paradigma da Revolução de Outubro irradiou para toda a periferia, tornando a União Soviética o "contrapólo" agregador dos historicamente atrasados em concorrência com o Ocidente. A simples massa de população, território e recursos naturais, mobilizados à maneira do capitalismo de Estado no processo repressivo de industrialização da era de Estaline, transformou o contrapólo soviético, também política e militarmente, em contrapotência mundial, à qual o centro europeu do capitalismo ocidental, esgotado com as lutas dilaceradoras pela hegemonia mundial, pouco poderia opor.

Mas o mesmo processo que levou a luta europeia pela hegemonia capitalista mundial a terminar num empate de sujeitos nacionais esgotados e desmoralizados levou também o centro de poder capitalista ocidental a sofrer uma transformação decisiva e irreversível. Pois, paralelamente à emancipação político-militar e à "modernização atrasada" de todo o Leste e Sul, os EUA, de modo não totalmente despercebido, mas de certa maneira nas costas das potências europeias inicialmente centrais do capital, tornaram-se a potência mundial número um.

O centro do poder do capitalismo deslocara-se sobre o Atlântico para a América do Norte. De modo muito parecido com a União Soviética, só que tendo por base uma tradição totalmente diferente, designadamente de concorrência capitalista em vez da tradição burocrática estatal, a simples massa da população numa base industrial há muito desenvolvida predestinou os EUA, um colosso em comparação com as minúsculas nações europeias, para serem a potência dirigente do capital.

A extensão continental do território entre o Atlântico e o Pacífico (com o olhar de Jano virado, simultaneamente, para a Europa e para a Ásia), a aparente inesgotabilidade dos recursos naturais, tal como na Rússia, e, ao contrário dela, o poder de compra acumulado constituíram o maior mercado interno do mundo até hoje.

Foi por isso que os mais importantes desenvolvimentos capitalistas, as mudanças de estrutura social e as tendências culturais e tecnológicas partiram crescentemente dos EUA para atingirem todo o mundo, em maior ou menor escala. Não admira que o século XX tenha sido considerado o "século americano" (em primeiro lugar, por Henry Lace em 1941, como observa o historiador americano Paul Kennedy).

A partir desta base cresceu também o poder militar da potência mundial ascendente, os EUA, numa dimensão até então desconhecida. As duas guerras mundiais só puderam ser decididas através da intervenção dos EUA e as potências europeias "vencedoras" viram-se numa situação semelhante à da Alemanha vencida, não apenas do ponto de vista dos prejuízos sofridos, mas também porque rapidamente foram obrigadas, mais ou menos envergonhada ou indisciplinadamente, a colocar-se sob a protecção feudal dos EUA, para defenderem a sua "honra" imperial, numa situação em muitos aspectos semelhante à das divas, que, numa idade mais avançada, sonham com os sucessos dos tempos idos da sua juventude.

No final da Segunda Guerra Mundial, a superioridade da nova potência mundial número um era sob todos os pontos de vista tão impressionante que superava as vantagens alternadas das anteriores potências europeias, só temporariamente dominantes. Não sem orgulho, escreve Paul Kennedy: "Porque o resto do mundo, no final da guerra, estava tão esgotado ou se encontrava ainda numa situação de 'subdesenvolvimento' colonial, o poder americano em 1945 – na falta de melhor conceito – parecia ser tão elevado como, por exemplo, o inglês em 1815. Apesar disso, em números absolutos as dimensões de facto do seu poderio eram inéditas […] Na verdade, o crescimento industrial nos Estados Unidos de 1940 a 1944 – mais de 15 por cento ao ano – foi superior a qualquer outro período anterior ou posterior. O nível de vida e a produtividade per capita eram superiores aos de qualquer outro país. Os Estados Unidos foram o único país entre as grandes potências que, com a guerra, ficaram mais ricos – e, na realidade, muito mais ricos – e não mais pobres" (Kennedy 1991/1987, pp. 533 e segs).

No final da Segunda Guerra Mundial, dois terços das reservas de ouro mundiais estavam guardados em Fort Knox, a casa forte de Washington. E a esta absoluta superioridade monetária correspondia a superioridade industrial: "Em 1945, três quartos do capital investido em todo o mundo e dois terços das capacidades industriais intactas encontravam-se nos Estados Unidos" (Ott/Schäfer 1984, 420). Com esta esmagadora capacidade económica por detrás, emergiu a partir da Segunda Guerra Mundial a "economia de guerra permanente" dos EUA, cuja indústria de armamento, força militar, armamento tecnológico continuamente desenvolvido e presença militar global (hoje em 65 países em todos os continentes) se tornaram rapidamente inalcançáveis para as restantes potências do centro capitalista ocidental.

Só a União Soviética, como contrapotência mundial que congregava os países historicamente atrasados, pôde oferecer resposta durante algum tempo ainda depois de 1945, assim como, inversamente, só os EUA, como primeira potência Ocidental no lugar das potências europeias abatidas, puderam manter em xeque o contra-sistema concorrente de capitalismo de Estado e o seu poder de irradiação para a periferia.

Já no século XIX, o historiador e teórico social francês Alexis de Tocqueville previu correctamente esta constelação, num famoso e sempre citado prognóstico: "Existem hoje sobre a Terra dois grandes povos, que, partindo de situações diferentes, parecem prosseguir os mesmos objectivos: o russo e o anglo-americano. Ambos se tornaram grandes às escondidas e, enquanto o olhar dos homens se voltava para outras direcções, eles surgiram de repente na primeira linha das nações, e o mundo teve conhecimento quase ao mesmo tempo do seu nascimento e da sua grandeza. Todos os outros povos parece terem atingido os limites que lhes foram impostos pela natureza, só existindo para se manterem; pelo contrário, eles crescem, enquanto os outros estagnam ou só muito custosamente continuam; só eles percorrem fácil e rapidamente um caminho cujo fim não pode ainda ser vislumbrado. O Americano luta contra os obstáculos que a natureza lhe impôs; o Russo luta contra os homens. Um luta contra a selva e a barbárie; o outro, contra a civilização equipada com todas as suas armas: assim, as conquistas do povo americano são feitas com o arado dos camponeses e as do Russo com a espada dos soldados. Para atingir os seus fins, o primeiro apoia-se no benefício pessoal e deixa agir a força e a razão do indivíduo, sem o dirigir; o segundo reúne de certo modo num homem toda a força da sociedade. Para um, o principal meio é a liberdade, para o outro é a servidão. Os seus pontos de partida são diferentes, os seus caminhos desiguais; no entanto, ambos parecem chamados por um desígnio secreto da Providência a ter um dia nas suas mãos o destino de metade do mundo” (Tocqueville, 1987/1835, 613).

O que Tocqueville aqui formula na linguagem do século XIX apenas se tornou realidade no século XX: a divisão do mundo entre os EUA e a União Soviética e o paroxismo da luta pela hegemonia mundial no quadro do moderno sistema produtor de mercadorias entre estas duas potências, que, na época da Guerra Fria, foram pertinentemente designadas por "superpotências", em contraponto com as anteriores grandes potências e pré-potências mundiais; ambas, na mesma medida e não por acaso, estados federais multi-étnicos de escala continental, que extravasaram o limitado conceito capitalista europeu de nação em todas as suas variantes.

Até mesmo a estrutura antagónica destas duas potências que, depois de 1945, se expandiu conceptualmente como "conflito de sistemas" Tocqueville apreendeu de maneira aproximadamente correcta, em todo o caso, formulada de modo menos exagerado e sem as meias verdades dos protagonistas desse antagonismo, mais de um século depois. O mundo actual é tão incapaz de compreender o sistema de referência categorial geral da moderna produção de mercadorias, enquanto forma social historicamente distinta (em vez de como ontologia social a-histórica), como o do tempo de Tocqueville. O que já para este aparecia como antagonismo essencial são apenas os dois pólos da socialização capitalista de mercado e Estado; ambos igualmente repressivos, pois ao poder burocrático não se opõe simplesmente a "Liberdade", mas apenas a chamada liberdade do mercado, tornada despotismo através do imperativo da concorrência.

O capitalismo de Estado foi, na realidade, a forma inicial de constituição do modo de produção capitalista; não apenas na Rússia (já desde o czarismo), mas também na Europa Ocidental e Central, foi essa a forma como esse modo de produção se sobrepôs à sociedade agrária do feudalismo. O que dá uma peculiaridade única à potência capitalista EUA, a par do grau de desenvolvimento industrial e da dimensão continental do seu mercado interno, é que esta forma inicial da transformação europeia foi aí desnecessária e o capital pôde desenvolver-se desde logo em formas sistémicas avançadas, totalmente liberto de uma sedimentação histórica de modos de produção e culturas pré-modernas, pois os colonizadores europeus, libertos das estruturas sociais de que partiram, não apenas puderam partir do zero de um novo nível de desenvolvimento, como destruíram as sociedades dos indígenas, fazendo assim do "Novo Mundo", de certo modo, a terra virgem e o campo de experiência único da modernização. Logo que, no século XX, os capitais e o grau de industrialização dos EUA ultrapassaram o nível europeu, esta característica histórico-cultural específica deu um impulso suplementar à sua ascensão a superpotência.

Em comparação, das duas superpotências, os Estados Unidos eram de longe a sociedade mais avançada no campo do moderno sistema produtor de mercadorias. Por isso, não podia haver dúvidas acerca do resultado da luta final pelo domínio capitalista mundial. Tais dúvidas só surgiram porque foi atribuída à União Soviética, enquanto sistema "socialista" supostamente alternativo, uma capacidade de resistência e de desenvolvimento que ela realmente não tinha, precisamente porque a sua qualidade comum de sociedade produtora de mercadorias mediada pelo mercado mundial ficou fora de uma análise crítica. Justamente por causa dessa forma de base comum, a União Soviética nunca foi uma alternativa histórica, mas apenas a contrapotência mundial capitalista dos países historicamente retardatários e, como tal, destinada a ser vencida a prazo.

Esta derrota manifestou-se também e não em menor medida do ponto de vista militar. Nem pela capacidade financeira, nem pelos meios científico-tecnológicos, a União Soviética podia aguentar a permanente corrida aos armamentos. Assim como não foi possível ao contra-sistema de capitalismo de Estado fazer a transição para a terceira revolução industrial da microelectrónica, mantendo no seu conjunto as formas de reprodução social, também o poder militar soviético ficou cada vez mais para trás dos Estados Unidos no que toca ao armamento electrónico com base em sistemas de high tech. Com isto, nos anos 80, o capitalismo de Estado do Leste fracassou economicamente no mercado mundial, com cujos critérios e standards tinha de medir-se como sistema produtor de mercadorias, tendo também ficado militarmente moribundo. O colapso total foi a consequência lógica.

Se a luta policêntrica das antigas potências capitalistas europeias pela hegemonia mundial se transformou, desde meados do século XX, numa luta bipolar, também no final do século XX se constituem uma nova estrutura monocêntrica e um sistema mundial capitalista sob a exclusiva égide dos EUA. Não existe nenhuma potência, com base na sociedade do moderno sistema produtor de mercadorias, capaz de rivalizar pela hegemonia mundial, nem do ponto de vista do poderio militar e tecnológico nem do ponto de vista da dimensão económica e política ou do poder financeiro.

Os EUA são hoje realmente a "única potência mundial" como escreveu o politólogo americano Zbigniew Brezinski (professor de Relações Internacionais em Baltimore e conselheiro do "Centro de Estudos Estratégicos Internacionais"), no seu livro de 1997 com esse título sobre a hegemonia global dos Estados Unidos: "Na última década do século XX, a situação mundial alterou-se profundamente. Pela primeira vez na história, um Estado não euro-asiático tornou-se não apenas o árbitro das relações de poder euro-asiáticas, mas a potência dirigente a nível mundial. Com o fracasso, e depois colapso, da União Soviética, um país do hemisfério ocidental, os Estados Unidos, tornou-se a única e na realidade a primeira potência mundial" (Brezinski 1999, 15).

Esta nova característica da única superpotência sobrevivente não foi determinada apenas pelas especiais qualidades históricas e pela dimensão exterior dos EUA, mas também pelo estádio de desenvolvimento do capitalismo no final do século XX. Só a terceira revolução industrial da microelectrónica, na qual a contrapotência mundial, União Soviética, fracassou por falta de capacidade financeira, tornou possível uma potência mundial na plena acepção do termo, ou seja, com uma possibilidade de intervenção directa global. É certo que as grandes expedições militares continuam a precisar de uma ampla e dispendiosa logística territorial, mas ela é significativamente facilitada pela existência de uma tecnologia de comunicações que cobre o mundo inteiro.

Enquanto as antigas potências europeias tinham de contentar-se com expedições militares pesadas e dificilmente controláveis, baseadas na industrialização clássica, e que hoje parecem antiquadas (como navios de guerra e exércitos de blindados), a máquina militar dos EUA pode na realidade, até certo ponto, afirmar-se como omnipresente e capaz de intervir globalmente – mas apenas no plano da guerra entre exércitos regulares. As grandes expedições militares como as duas guerras de ordenamento mundial que se seguiram à queda do capitalismo de Estado (contra os restos da Jugoslávia e contra o Iraque) são não apenas facilitadas mas ainda complementadas com uma capacidade de ataque até então inexistente. Em vez de grandes operações terrestres ou navais (de resto, não totalmente supérfluas), podem ser desencadeados ataques aéreos muito flexíveis e conduzidos através da microelectrónica.

É verdade que, até certo ponto, já a Alemanha nazi foi vencida, em grande parte, devido à impressionante superioridade aérea dos Aliados desde 1944 e à chuva de bombardeamentos aéreos (destruição das indústrias de guerra e das linhas de abastecimentos, etc.), embora não tenha sido esse o único factor a decidir a guerra. Além disso, as esquadrilhas tinham de manter-se esforçadamente no raio de acção das bases. Se até meados do século XX a travessia do Atlântico era ainda uma aventura, hoje a força aérea americana pode atingir qualquer lugar do mundo a partir do seu território, num tempo sem paralelo. Por outro lado, a observação por satélite, também controlada por meio da microelectrónica, possibilita o exercício de um controlo permanente a partir do espaço, com uma capacidade de resolução muito precisa, de todos os movimentos e operações à superfície de todo o globo como nunca fora possível. Em ligação com a dimensão continental do seu território, com a força dos seus capitais e com o avanço da sua tecnologia de comunicações, o sistema de armamento high tech dos EUA, sem concorrente e em permanente desenvolvimento, criou um tipo qualitativamente novo de hegemonia global no mundo dos estados capitalistas.

Tal superioridade leva facilmente a absolutizar a capacidade de controlo da superpotência americana, elevando a um "mito das armas electrónicas" o alargamento das possibilidades de intervenção baseadas na microelectrónica, apesar de a capacidade de intervenção directa ao nível global não significar o mesmo que controlo absoluto (o que seria uma impossibilidade lógica e prática). Antes de mais, e devemos assentar neste ponto, a hegemonia político-militar dos EUA exerce-se apenas no mundo dos estados nacionais capitalistas e dos respectivos exércitos industriais "fordistas", ou seja, no plano "macro" das relações internacionais capitalistas. Nesta perspectiva, o exército high tech dos EUA tem uma superioridade inalcançável e pode ganhar qualquer grande ou pequena guerra contra qualquer exército de um ou vários estados nacionais do mundo.

 

A última potência mundial nos limites históricos do sistema

A hegemonia da única superpotência restante, os EUA, é esmagadora, em comparação com as outras ditas potências do mundo capitalista, quer seja a União Europeia (UE), o Japão, a Rússia em decadência e também militarmente degradada, ou as pseudopotências regionais, do Irão à Índia, passando pelo Paquistão ou até pela China, supostamente um colosso, cuja gigantesca massa populacional está em relação inversa com o seu poderio económico e político-militar. Com isto se revela uma das tendências fundamentais da evolução do capitalismo mundial, em que as desigualdades, as disparidades e os atrasos irrecuperáveis na capacidade de reprodução do capital se tornam tanto maiores quanto mais irresistivelmente a relação de capital se apresenta irreversivelmente como relação mundial directa, começando em muitos aspectos as fronteiras nacionais a desaparecer.

Ironicamente, os EUA tornaram-se a inultrapassável potência mundial número um no momento em que o modo de produção capitalista, como tal, começou a esgotar-se. Enquanto as antigas potências europeias jogaram os seus trunfos nacionais em épocas determinadas da ascensão do sistema capitalista a sistema global, isto é, no quadro da história burguesa da modernização, a hegemonia dos EUA surgiu já nos limites do capitalismo como forma social de reprodução. Nesta base, os EUA são não apenas a única potência existente nos finais do século XX, mas a última potência mundial. É como nos contos de fadas: no momento em que o sonho se realiza, transforma-se em pesadelo e mentira, porque revela a fragilidade e até o absurdo dos seus pressupostos.

O processo em que ocorreu a contínua ascensão dos EUA a única e última superpotência mundial foi também o processo de desenvolvimento da crise do moderno sistema produtor de mercadorias. Se a segunda revolução industrial, a do chamado "fordismo" (automobilização, milagre económico), no pós-guerra, ainda pôde desencadear uma espécie de "plano de desenvolvimento" mundial, a terceira revolução industrial, a da microelectrónica, agudizou de tal modo o declínio do desenvolvimento ao nível global, que regiões inteiras começaram a ficar sem capacidade de reprodução capitalista.

Simultaneamente, a partir dos anos 80, o processo da crise socioeconómica começou a devorar até os centros do capital. A evaporação da "substância de trabalho" do capitalismo já só pode ser mascarada através da antecipação de rendimentos monetários e lucros futuros que na realidade nunca se verificarão, ou seja, através de um processo que degenera no endividamento global do conjunto dos sujeitos económicos (estados, empresas, particulares) e através de bolhas especulativas nos mercados bolsistas, historicamente sem precedentes. A reciclagem de massas sempre crescentes de "capital fictício" (Marx) no circuito económico fez da separação entre mercados financeiros e economia real a condição fundamental da valorização global do capital. O capital mundial atingiu um grau de simulação que polarizou como nunca a sociedade mundial: num dos pólos repetem-se a pobreza das massas e a miséria, e os processos de colapso económico sucedem-se a curtos intervalos; no outro pólo floresce uma riqueza monetária, tão astronómica quanto sem substância, cuja fragilidade demonstra o carácter precário que o modo de produção capitalista adquiriu.

A hegemonia monocêntrica dos EUA está no centro desta contradição amadurecida do capital mundial. Na verdade, a supremacia político-militar da última superpotência não pode ser anulada (é, nesta medida, "absoluta"), mas, simultaneamente, a política enquanto tal, mesmo na sua forma de política mundial hegemónica, sofre uma perda de importância relativamente aos processos económicos mundiais, que se autonomizaram criticamente de uma maneira qualitativamente nova. Neste aspecto destaca-se, com alguma importância, o facto de o pessoal político, nos EUA como em todas as parte do mundo, ser de baixo nível, comparado com as correspondentes elites das funções económicas. A última potência mundial vê-se confrontada com uma crise tanto interna como externa que abrange o mundo inteiro e que, pela sua própria natureza, não pode ser contida com nenhuma potencialidade político-militar.

As contradições entre o carácter de potência monocêntrica dos EUA e o carácter de crise da terceira revolução industrial, que, mais tarde ou mais cedo, necessariamente conduzirão à prova de fogo, à medida que a crise destrói internamente o modo de produção dominante, tornam-se evidentes de muitos pontos de vista.

As potências políticas só podem existir e desenvolver-se numa base estatal nacional, mesmo quando se trata de estados que, devido à origem dos seus cidadãos, são grandes estados multiétnicos de dimensão continental. Este carácter de Estado nacional, que até mesmo a última superpotência apresenta, está no entanto em contradição com a metamorfose transnacional do capital, devida ao processo de globalização. Ao mesmo tempo que a crise estrutural cria desemprego em massa e grandes sectores de baixos salários, desmantela o Estado social, etc., declina o poder de compra nos mercados internos nacionais e o capital é obrigado a espalhar-se empresarialmente, com uma dinâmica inaudita, pelo mercado mundial, para optimizar a redução de custos global e, por outro lado, atrair poder de compra para si, onde quer que ele ainda exista no mundo.

Esta transnacionalização do capital e a fuga simultânea, decidida ainda mais ao nível transnacional, para o novo capitalismo financeiro simulado minam os fundamentos económicos do estado nacional; e isto é válido para a última superpotência, os EUA. Também o capital americano se submete à metamorfose transnacional, tornando com isso involuntariamente obsoleto o estado-potência mundial.

Por outro lado, os EUA, enquanto estado nacional limitado que são, e apesar do seu estatuto de superpotência, não podem agir directamente como estado mundial, que estivesse em situação de regular o sistema mundial – que se transforma em transnacional – da economia de crise capitalista, como até aqui os estados nacionais regularam as suas economias nacionais. Assim, a última potência mundial vê-se arrastada pelos imperativos e formas de evolução de um processo de crise mundial que há muito não é controlável por meios políticos, e contra o qual o seu invencível exército high tech apenas pode reagir externa e, em última análise, inadequadamente.

Que os EUA apenas são a potência dominante de um sistema mundial sem saída, em si mesmo doente e envenenado, demonstra-se pelo estado em que se encontra a sua própria economia interna, incluindo o estado. No interior dos EUA, a riqueza monetária encontra-se não só polarizada ao máximo, no contexto do mundo ocidental, como o seu brilho assenta essencialmente em fancaria económica. Os EUA são hoje, contrariamente à posição confortável e sem concorrência que tinham no final da Segunda Guerra Mundial, o país do mundo com o maior endividamento, quer interno, quer externo. A sua absoluta superioridade concentrou-se unicamente no poderio militar.

Poderia argumentar-se que o fluxo de capital-dinheiro proveniente de todo o mundo, originado pelo processo de endividamento incrível dos EUA, é precisamente o tributo que o mundo capitalista tem de pagar à sua potência dominante. Não se trata no entanto de um tributo de tipo tradicional, como aqueles a que estavam sujeitos os "povos" ou "nações" vencidos ou conquistados, mas de um fluxo de capital-dinheiro transnacional privado que, como dinheiro-crédito, coloca uma exigência perigosa à economia americana, pois a qualquer momento pode ser retirado (ou "evaporar-se" devido a um crash financeiro), assim derrubando todo o poderio da potência mundial.

Este perigo abrange, e não em último lugar, o próprio aparelho militar high tech, que permanentemente devora somas astronómicas, dependendo por isso da seiva do capital financeiro transnacional. Trata-se de uma forma desviada de financiamento, que deveria assentar num poderio económico nacional efectivo e autónomo, que os EUA perderam há muito. O poderio militar, na sua forma até certo ponto "natural", não tem, por si mesmo, capacidade de sobrevivência, pois também ele, como tudo o mais no mundo capitalista, tem de passar pelo buraco da agulha da “financiabilidade”.

Isto não se aplica apenas às prestações do Estado social ou aos cuidados médicos, mas também aos mísseis de cruzeiro, aos bombardeiros furtivos e aos porta-aviões. De um ponto de vista puramente económico, o Estado social e o aparelho militar não se distinguem, em ambos os casos é necessário um financiamento externo, através de dinheiro que o Estado tem de sugar. E, se há quem possa ser posto de joelhos com mísseis e bombardeiros de longo alcance, não são certamente os mercados financeiros transnacionais. Se a bolha financeira rebentar, a soberania militar mundial dos EUA irá imediatamente ao ar.

O colosso arrogante e militarmente musculado que é a última potência mundial está assente em pés de barro. Não porque um outro colosso possa vir a derrubá-lo, mas apenas porque o modo de produção capitalista, que esteve na base de todas as potências mundiais modernas, começa a atingir o seu limite absoluto. Os EUA já não podem ser derrubados por nenhuma outra potência mundial concorrente, mas serão derrubados pela sua própria lógica, que é a lógica do dinheiro capitalista. A capacidade de controlo global da última potência mundial desaparecerá juntamente com a pseudocivilização do dinheiro.

É por isso que já não pode haver guerras mundiais do tipo das guerras da primeira metade do século XX, surgidas do facto de existirem várias potências da mesma grandeza a disputarem a hegemonia no quadro de um sistema policêntrico. A estrutura bipolar da Guerra Fria bloqueara já a possibilidade deste choque através do "equilíbrio do terror" atómico. A União Soviética não pôde ser derrotada numa guerra mundial, mas teve de ser derrubada pela concorrência económica e esgotada pelo armamento militar.

A hegemonia monocêntrica da última potência mundial deixou de ter concorrência neste plano, e nem sequer existe potencial para uma guerra mundial entre grandes potências de igual valor. Mas a concorrência de crise transnacional não permite a existência de uma "paz mundial capitalista" (o que seria uma contradição nos termos), desencadeando pelo contrário, como sua continuação por outros meios, novas formas de conflitos armados, que já não se situam no plano dos conflitos entre as grandes potências nem podem ser analisados com as respectivas categorias. Nesta nova constelação da crise mundial cumpre-se uma profunda metamorfose qualitativa da acção imperial, que teve o seu início na estrutura bipolar das superpotências da história do pós-guerra.

 

Do imperialismo nacional territorial ao "imperialismo global ideal"

No início do século XXI, os EUA não apenas são a última potência mundial e, por outro lado, a "primeira efectivamente" mundial, como adquiriram um estatuto diferente do de todas as potências imperiais anteriores. O carácter monocêntrico desta potência mundial, que, no limite histórico do modo de produção capitalista, até certo ponto, deve administrar todas as contradições globais, aponta para uma transformação do imperialismo, em que este já não corresponde à sua definição anterior, estando sediado noutro plano de contradição.

No máximo do seu poderio, a posição dos EUA teria mesmo de surgir – do ponto de vista do entendimento válido até meados do século XX – como "pós-imperialista". A violência, a brutalidade e o cinismo das intervenções e da sua legitimação de modo algum se atenuaram, mas o seu conteúdo afastou-se qualitativamente do conceito original de "império" moderno. Aos três estádios de evolução da hegemonia político-militar no mundo moderno – o policêntrico, o bipolar e o monocêntrico – corresponde um processo contínuo de alteração do carácter do imperialismo, que espelha a passagem da fase de ascensão e imposição do sistema mundial capitalista para a fase da sua maturidade de crise.

Na época do antigo imperialismo policêntrico das potências industriais europeias (aproximadamente entre 1870 e 1945), tratava-se sobretudo da repartição territorial do mundo em colónias nacionais e "zonas de influência". Este nacional-imperialismo europeu clássico estava enraizado no princípio territorial do estado nacional burguês, tal como ele se tinha constituído, em oposição ao princípio dinástico ou pessoal da sociedade agrária feudal. A expansão territorial dos estados nacionais capitalistas, já iniciada no começo da Idade Moderna, prossegue em larga escala com base na industrialização; o seu objectivo era o alargamento do controlo territorial. Não era ainda um mercado mundial sem fronteiras que estava na base desta evolução, nem uma globalização transnacional do capital, mas, sim, a formação do processo de acumulação cada vez mais baseada na economia estatal e centrada na nação. A expansão do movimento económico revestiu, assim, a forma de um esforço pela mera constituição de "economias mundiais" parciais e relativas (na pluralidade das nações), controladas pelos "grandes impérios" nacionais.

Assim, o debate acerca da política externa e da política social em todas as grandes potências capitalistas europeias seguia o lema de uma frase centrada na nação do general Friedrich von Bernhardi, da época de Guilherme II: "Poder mundial ou morte" (citado por Gollwitzer 1982/2, 25). Em termos de orientação estratégica desenvolveu-se na Alemanha a chamada "geopolítica", sobretudo com Karl Haushofer (1869-1946), que no "Reich" nacional-socialista ascendeu a chefe dos criadores de slogans estratégicos. Já o título da sua obra, em três volumes, Poder e Terra, mostra o carácter territorial da tendência de expansão imperial então vigente. Num outro texto significativo de Haushofer lê-se, em consonância: "As grandes potências são ‘Estados expansionistas’ [...] vêmo-las, por isso, todas elas surgir com grandes ou pequenos anexos de zonas de influência, que pertencem ao conceito de grande potência, tal como a cauda aos cometas […]" (citado por Gollwitzer, ibid., 562).

Um dos conceitos nucleares desta expansão territorial era o de "grande território", ou seja, um império mundial parcial, dominado de modo nacional-imperial, com base numa coerente economia capitalista de "grande território", que não podia ser mais do que o alargamento de uma grande economia nacional às colónias, zonas dependentes e territórios simplesmente anexados. O sinistro jurista e teórico social reaccionário Carl Schmitt, que há muito se colocara ao serviço dos nazis, escreveu oportunamente, em 1939 (com a 4.ª edição em 1941), um ensaio de teoria jurídica intitulado O estatuto jurídico internacional do grande território e a proibição da intervenção de potências estrangeiras no seu âmbito. Contributo para o conceito de império no direito internacional (citado por Gollwitzer, ibid. p. 562).

Este conceito geopolítico de grande território, frequentemente transformado vitalistamente em "espaço vital", pertencia também, como se sabe, ao vocabulário preferido de Hitler: Povo sem Espaço era o título de um oportuno romance best-seller do popular escritor colonialista Hans Grimm (1926). Depois de o comércio mundial entre as grandes potências no período entre as duas guerras ter caído profundamente, envidaram-se esforços para conseguir uma autarcia nacional no Ultramar, que já desde o início tinham a marca do imperialismo clássico. O objectivo desta política de autarcia, como declarou no começo dos anos 30 do século passado num congresso contra a economia liberal o economista Wilhelm Gerloff, era "a criação de um espaço económico auto-suficiente, do ponto de vista da produção e do consumo, com tanto espaço e tantas riquezas que pudesse suprir todas as necessidades económicas e culturais dos seus membros [...] (Gerloff 1932, 13).

Que esta posição não era simplesmente motivada por rivalidades ideológicas, decorre da estratégia político-económica e das manobras políticas dos nazis. Werner Daitz, um dos principais dirigentes económicos do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP), formulou a tendência autárcica do nacional-imperialismo expressamente contra "o pensamento judaico-materialista dos economistas liberais", cuja "ideia do dinheiro contrária ao povo" conduziu a economia alemã para a "economia mundial", ou seja, para "o comércio livre e a divisão internacional do trabalho", em seu prejuízo na guerra mundial e na crise económica mundial. Daitz traça o programa autárcico dos nazis visando um império nacional autónomo contra aquela orientação económica liberal para o mercado mundial: "A descoberta de novos espaços livres e o seu povoamento (colonização) [...] só significarão um fortalecimento do crescimento e da força vital da economia pátria se não ficarem de fora da sua disciplina e do seu poder [...] cada povo deve disciplinar a sua liderança económica de modo a que as últimas reservas em alimentos e matérias-primas estejam sempre dentro dos seus muros" (Daitz 1938 I, 64 e segs.).

É neste sentido autárcico que ele define também o "grande espaço económico" europeu a formar pelo Reich nazi sob controlo alemão: "A Europa continental só poderá afirmar-se nas outras partes do mundo como uma unidade económica e cultural se puder viver apenas dos recursos dos seus povos e do seu território em caso de necessidade. Por isso, a Europa continental tem de ser uma unidade política, de Gibraltar aos Urais e do cabo Norte até à ilha de Chipre. Só neste espaço é que poderão existir todas as capacidades em produtos agrícolas e riquezas minerais capazes de permitir aos seus povos, mediante cooperação, e com a ajuda de uma tecnologia avançada, viver dos seus próprios recursos" (Daitz 1938 II, 45 e segs.).

Não se tratava de modo algum de um objectivo longínquo ou de um sonho dos estrategas nazis, mas, no momento da argumentação de Daitz, era já uma política económica e externa determinada e efectiva, que, no essencial, foi aprovada e apoiada pela direcção dos monopólios alemães no seu próprio interesse, como a historiografia acerca deste período esclarece: "A decisão de Hitler, de atingir uma auto-suficiência de 100 por cento no espaço de quatro anos e sem olhar a custos nos sectores dos combustíveis, da produção de ferro e da produção de borracha sintética (buna), foi bem acolhida pelos principais líderes económicos, não só pelos lucros que daí poderiam advir, como devido às dificuldades em reorganizar o mercado mundial a curto prazo. A indústria do ferro, do carvão e do aço, habituada ao proteccionismo estatal desde 1879, desejava alargar a sua hegemonia continental, pois no plano mundial não era concorrencial, e tinha como ambição política, à semelhança dos planos de paz dos pangermânicos na Primeira Guerra Mundial, a criação de um grande espaço económico dominado pelos Alemães no centro da Europa" (Martin 1989, 203).

A política de auto-suficiência dos nazis, portanto, apenas prosseguiu a tendência nacional-imperialista já iniciada antes da Primeira Guerra Mundial. Mas o Reich alemão não optou por esta lógica apenas devido à evolução especialmente nacionalista seguida desde a época imperial. Um pensamento autárcico, virado para a criação de um "amplo espaço económico" de tipo nacional-imperial, encontra-se quer no período anterior à guerra quer no período entre as guerras em todos os países do centro capitalista, muito embora seguramente no campo anglo-saxónico não seja tão vincado como no regime nazi.

Lenine caracterizou o esforço nacional-imperialista, de acordo com a situação real e o discurso imperial dominante, no seu famoso ensaio O Imperialismo como Estádio Supremo do Capitalismo (1917), sobretudo como uma política de anexação territorial: "Vemos agora que começa uma gigantesca ‘corrida’ à conquista colonial e que se agudiza em alto grau a luta pela divisão territorial do mundo [...] A corrida de todos os estados capitalistas às colónias em finais do século XIX, em especial, desde os anos 80, é um facto bem conhecido de todos na história da diplomacia e da política externa [...] O que é característico do imperialismo é o esforço de anexação não apenas de territórios agrícolas, mas também de territórios industriais altamente desenvolvidos (a cobiça alemã pela Bélgica, a francesa pela Lorena), pois, por um lado, a repartição da Terra obriga a que, em cada nova repartição, se deite a mão a todo o bocado de terra cobiçado, e, por outro, a concorrência imperialista entre algumas grandes potências na sua luta pela hegemonia, ou seja, pela conquista de territórios, não é tão importante directamente em si, servindo sobretudo para enfraquecer os concorrentes e para consolidar a própria hegemonia..." (Lenine, 1979/1917, 82s., 97).

Ainda que a análise de Lenine parta de um conceito redutor de capital, limitado pela visão do marxismo do movimento operário, que implica uma falsa oposição entre o capitalismo concorrencial e o chamado capitalismo monopolista, a sua caracterização do imperialismo como política nacional policêntica de anexação corresponde bem às formas reais do desenvolvimento capitalista mundial de então. Essa época, que terminou em 1945, não foi contudo o "último e supremo estádio do capitalismo", que Lenine, condicionado pelo seu tempo, não via sob o aspecto de uma crise categorial das formas económicas, mas sobretudo como a queda da constelação até então em vigor do capitalismo mundial.

Enquanto os EUA se desenvolveram ainda à sombra das potências europeias policêntricas, em luta pela hegemonia mundial, no século XIX e no princípio do século XX, seguiram, no entanto, a lógica de uma potência imperial nacional em expansão. Já em 1823 o presidente americano da altura, James Monroe, formulou a doutrina que tem o seu nome, de acordo com a qual os EUA não tolerariam qualquer intervenção europeia em solo americano. A Doutrina Monroe, que tinha como pano de fundo a luta pela independência da América Latina contra a Espanha e que levou os EUA se autonomeassem como "potência protectora" da parte sul do continente, tornou-se até um precedente: não foi por acaso que Carl Schmitt a referiu no seu ensaio O Estatuto Jurídico do Grande Território e a Proibição de Intervenção. Também a política nacional imperial de anexação directa não era alheia aos EUA: em 1848, após a guerra em que derrotaram o México, deitaram a mão ao Texas, ao Novo México e à Califórnia, bem como às jazidas de ouro aí localizadas; em 1898, na sequência da guerra contra a Espanha, anexaram as Filipinas, que só em 1946 (depois da ocupação japonesa na Segunda Guerra Mundial) alcançaram a independência nacional.

Já na época do "milagre económico" e da Guerra Fria, em que os EUA ascenderam a única potência dirigente do capitalismo ocidental, a situação se alterou radicalmente. Com a cobertura da Pax Americana, o estatuto de potência mundial sofreu, conjuntamente com o desenvolvimento do capital mundial, uma metamorfose decisiva, a partir da qual a antiga política expansionista dos impérios nacionais começou a ficar obsoleta. Como primeira potência mundial em sentido literal, os EUA já não podiam ser uma "potência de expansão territorial", o que significou para os estados nacionais europeus, agora dependentes, a descida de mais um degrau, como potências abatidas ao activo. Esta metamorfose fundamental foi determinada sobretudo por dois momentos, um político-militar, outro económico.

Por um lado, a Guerra Fria com a contrapotência mundial da "modernização atrasada" já não foi, desde o início, conduzida ao estilo de um controlo territorial com base na economia nacional sobre um "império mundial" particular, mas apenas como orientação estratégica de longo prazo numa escala imediatamente global. "Polícia mundial" com a auto-atribuída missão de liquidar o contra-império do capitalismo de Estado e "Império do Mal" (Reagan), o imperialismo americano teve de tornar-se de certo modo num "imperialismo global ideal", ou seja, de operar num "metaplano", para além da simples expansão nacional.

Não se tratava de uma nova constelação no interior da antiga lógica dos conflitos, mas do carácter transitório do próprio conflito. A própria expressão "polícia mundial", inicialmente usada com sentido crítico, remete involuntariamente para o facto de se tratar de uma opção por um monopólio de controlo global com apoio militar, em vez do crescimento para o exterior, como alargamento do próprio território.

Neste plano, já não era decisiva uma visão orientada para um "grande território" imperial e a respectiva "economia de grande território", mas a segurança global do modo de produção capitalista. Os EUA tornaram-se assim a "potência protectora" do capital a nível mundial, apenas sendo aceite a forma ocidental privada e concorrencial e sendo as variantes de capitalismo de Estado do Leste e do Sul consideradas como princípio perturbador hostil.

A pressão era no sentido de destruir a Cortina de Ferro e de "abrir" o mundo inteiro ao movimento do capital privado (qualquer que fosse a sua nacionalidade), ou seja, de produzir um sistema capitalista mundial unitário. Neste sentido, os EUA fundaram a NATO em 1949, cujo âmbito organizativo servia para envolver directamente os estados nacionais europeus, entretanto transformados em potências de segundo ou terceiro grau, nas operações estratégicas dos EUA enquanto "potência protectora" do capitalismo mundial, utilizando-os como "porta-aviões" das forças armadas americanas.

Mas como este estatuto de potência mundial implicava um carácter "imperialista global ideal" e este já não podia identificar-se imediatamente com um interesse expansionista nacional imperialista, a contradição entre os EUA, como Estado nacional, e os EUA, como potência mundial de um novo tipo, tornou-se perceptível através de crescentes perdas por atrito. É verdade que os EUA, por hábito, sempre utilizaram até hoje inocentemente o conceito de "interesse nacional" para designar a sua actividade de "polícia mundial", servindo-se de facto da sua posição de potência mundial, do papel do dólar como moeda mundial, etc., naturalmente também no seu próprio interesse, sempre que possível. Apesar disso, os prejuízos sofridos no decurso da Guerra Fria pela potência mundial que, no fim da Segunda Guerra Mundial, atingira o estatuto de absoluta superpotência económica, tais como a redução da sua quota nacional no mercado mundial, a queda relativa da produtividade industrial e, finalmente, o enorme endividamento interno e externo, devem-se em grande parte ao peso do "consumo" político-militar de "potência mundial", improdutivo do ponto de vista capitalista.

Esta situação tem sido repetidamente descrita e lastimada, ultimamente por Paul Kennedy, que traça analogias com as anteriores hegemonias da história da modernização desde o século XVI (Kennedy, 1991/1987). O papel de "polícia mundial" ou de "imperialista global ideal" permanece assim controverso, no debate sobre a política externa e social dos EUA; mas foi o desenvolvimento mundial do capitalismo que condenou os EUA a assumirem esse papel.

Por outro lado, a antiga política de anexação territorial nacional imperialista tornou-se obsoleta, não só em virtude da constelação da política externa mundial durante a Guerra Fria, com a sua estrutura bipolar, mas também devido ao processo económico intrínseco ao modo de produção capitalista – para o que a unificação política do capital privado ao nível mundial constitui o quadro fundamental em larga medida criado pela superpotência EUA. Pois só sob o tecto da Pax Americana se tornou real em grande escala a nova característica estrutural do capital enquanto exportação de capital, apontada por Lenine e Rudolf Hilferding.

Lenine viu a exportação de capital (em oposição à simples exportação de mercadorias) ainda no contexto da antiga constelação das potências expansionistas centradas na economia nacional. Mas, neste nível de desenvolvimento, a exportação de capital ainda não podia ter nenhum papel relevante. Na verdade, até 1913, o comércio mundial desenvolveu-se continuamente sob o domínio das economias nacionais, permanecendo os investimentos estrangeiros (sobretudo em capital fixo) limitados quase totalmente às colónias ou zonas de influência, portanto ao respectivo espaço imperial nacional. Na luta policêntrica das grandes potências europeias pela hegemonia capitalista, outra coisa não seria possível.

No quadro da Pax Americana, após a Segunda Guerra Mundial, pelo contrário, não só o sistema mundial foi subsumido no conceito bipolar do "sistema de conflitos" entre capitalismo privado e capitalismo de Estado, mas, ao mesmo tempo, o hemisfério ocidental já foi dirigido monocentricamente. Sob a batuta política deste monocentrismo é que foi possível criar as condições para um rápido crescimento da exportação de capital: designadamente, a possibilidade de exportar capital numa medida nunca vista no âmbito dos próprios países capitalistas industriais desenvolvidos, ou seja, de abrir grandes empresas de produção em antigos "países inimigos". Neste aspecto, a Pax Americana não significou senão que as grandes empresas multinacionais surgidas neste contexto começaram gradualmente a autonomizar-se do contexto da economia nacional. Tornaram-se assim visíveis os primeiros contornos da estrutura de crise de uma nova contradição entre capital, por um lado, e economia nacional ou estalidade nacional, por outro.

 

Do pacifismo “de boas pessoas” nacional ao belicismo intervencionista global

No processo de globalização da economia empresarial, a ideologia do imperialismo americano tornado "imperialista global ideal" sofreu uma metamorfose especial que a transformou, em consonância com o estatuto dos EUA, em ideologia global do capitalismo privado ocidental. Nos EUA existiu sempre, contra a antiga política imperial de anexação, uma oposição "de boas pessoas", que se alimentava das ilusões democráticas sobre o carácter do capitalismo e se reclamava do ideal burguês (uma "paz perpétua" kantiana entre nações comerciantes) contra a realidade do capitalismo de então (guerras de rapina nacional-imperialistas). Este pacifismo originalmente anti-imperialista revelou-se no pós-guerra progressivamente como uma nova legitimação do renovado papel de "polícia mundial" dos EUA.

Se tal ideologia era, na anterior constelação, essencialmente "isolacionista", isto é, dirigida contra as intervenções externas dos EUA, na nova constelação, com os EUA como única superpotência ocidental, ela pôde de repente passar a funcionar como legitimação das intervenções. Pois agora já não se trata, em primeira linha, da expansão do "grande território" definido pelo imperialismo nacional americano, mas da manutenção e expansão global do "princípio" do capital privado e do liberalismo económico e do seu quadro de legitimação democrática. O ideal burguês podia neste sentido ser chamado a dar cobertura à realidade capitalista cada vez mais insatisfatória, porque já não se tratava de evidentes interesses nacionais de rapina, mas da suposta manutenção e implantação da "paz mundial democrática" contra os chamados "inimigos da paz não democráticos"; definidos primeiro, na estrutura bipolar das superpotências, como o "império do mal" totalitário do Leste e seus vassalos.

O novo papel de potência mundial dos EUA podia portanto ser assumido com um empenhamento quase religioso: a superpotência ocidental transforma-se em propagandista global e até em missionário do modo de produção e do modo de vida capitalista concorrencial, inclusive dos seus componentes culturais (american way of life). Neste sentido, o Presidente Truman, logo em 1947, pôs de lado a doutrina Monroe, limitada à perspectiva nacional imperialista, e, com a "doutrina Truman", prometeu a ajuda dos EUA aos "Povos Livres ameaçados na sua Liberdade", o que implicava o intervencionismo num metaplano do sistema mundial, para além do simples interesse nacional expansionista.

Truman não operou num espaço ideologicamente vazio. Ele apenas prosseguiu o espírito da ideologia da "comunidade dos Povos", enraizada no antigo idealismo americano originalmente anti-intervencionista, tal como formulada pelo presidente americano Woodrow Wilson (1856-1924) no seu programa de catorze pontos, de 1918, antecipação da posterior liderança doutrinal americana.

Nesta construção idealista, correspondente à harmoniosa visão do mundo das tradicionais classes médias democráticas, a concorrência brutal e a luta pela sobrevivência no mercado mundial foram solenemente redefinidas como colaboração pacífica entre estados animados de boa vontade e legitimados pela "soberania popular"; uma interpretação cada vez mais falseadora da realidade mundial do capitalismo, que apadrinhou quer a criação da chamada Sociedade das Nações (1920), sugerida por Wilson, quer a sua renovação no final da Segunda Guerra Mundial como Organização das Nações Unidas (ONU).

Que a União Soviética, como contrapotência mundial da "modernização atrasada", se tenha deixado inscrever numas Nações Unidas indiscutivelmente dominadas pelos países ocidentais sob a liderança dos EUA, foi apenas a consequência lógica, no plano político, do facto económico de que o capitalismo de Estado, como sistema produtor de mercadorias, participava pela sua própria natureza no mercado mundial e tinha de se adaptar aos seus critérios. Com o colapso da contrapotência mundial em 1989 e a ascensão dos EUA a última potência mundial, o seu papel de "imperialista global ideal" de um sistema capitalista mundial, doravante unificado, alterou-se mais uma vez.

Apesar de todos os desmentidos, de todas as idealizações e falsas esperanças, a crise mundial progressiva e a globalização do capital a ela ligada constituem o pano de fundo que explica a razão por que a Pax Americana, agora efectivamente universal, não produz um mundo pacificado. Muito longe de se tornar supérflua para a dominação capitalista universal, a importância dos EUA como polícia mundial, pelo contrário, aumentou, como demonstram as duas guerras de ordenamento mundial dos anos 90 do século XX. Não se trata agora já de combater uma suposta contrapotência claramente definida, mas de conseguir manter, a bem ou a mal, o sistema capitalista unificado, embora ele não possa já ser reproduzido, a nível global, pela grande maioria da humanidade. Por outras palavras, a própria luta do "polícia mundial" e dos seus xerifes ajudantes europeus contra a crise das categorias capitalistas tem forçosamente de assumir o carácter de uma batalha contra fantasmas ou, já quase ao estilo de Dom Quixote, contra moinhos de vento.

Nesta refrega globalizada contra os demónios da crise capitalista mundial, desvanece-se, ainda mais do que nos tempos da Guerra Fria, o paradigma dos velhos "estados expansionistas" dos impérios nacionais. Esta metamorfose em curso tem também um momento político-militar e um momento económico. Muito mais fortemente do que no caso do estrangulamento do sistema capitalista de Estado, a "geopolítica" centrada em qualquer estado nacional tornou-se irrelevante e contraproducente na luta sem esperança por uma "pacificação" do processo de crise mundial do capitalismo. O mundo foi supranacionalmente unificado pelo capital, mas por baixo da fina camada de verniz do sistema mundial comum grassa a crise, que conduz, hoje aqui, amanhã acolá, a erupções catastróficas. Quer política quer militarmente, já só está na ordem do dia uma estratégia de "intervenção flexível" a nível mundial, através de uma diplomacia ambulante de crise, de "forças móveis de intervenção" e de ataques aéreos selectivos.

A isto corresponde simultaneamente a metamorfose do capital na economia de crise, numa globalização directa da economia empresarial, para além da mera exportação de capital. Onde a grande maioria da "mão-de-obra" se tornou supérflua do ponto de vista capitalista, a "apropriação" de territórios e dos seus povos já não constitui, nem por sonhos, uma opção para a acumulação; as anexações territoriais perderam definitivamente o sentido na lógica capitalista, e só poderiam constituir um peso, em vez de um ganho. Ao mesmo tempo que a reprodução do capital em termos de economia empresarial entra em conflito com os estados nacionais, o capital financeiro e real transnacional, espalhado por todo o globo (naturalmente com densidade extremamente diversa), já não permite a formulação de uma estratégia de expansão capitalista nacionalmente centrada.

Em consonância com esta nova situação mundial, a ideologia intervencionista ocidental de freedom and democracy (originalmente enraizada no pacifismo "de boas pessoas" dos EUA) desenvolvida durante a Guerra Fria foi do dia para a noite transformada na paradoxal "guerra de manutenção da paz" da NATO sob a liderança dos EUA. É assim que o actual discurso hegemónico liberal interpreta as reacções do Ocidente à crise global causada pelo seu próprio terrorismo económico "objectivo", com o repertório fraseológico da mesma filosofia charlatã democrática que já dominara a época precedente.

Na Europa, em poucos anos, o pacifismo idealista do movimento pacifista "de boas pessoas" foi substituído consequentemente por um belicismo intervencionista de orientação global. Com isso, as "boas pessoas" da esquerda europeia apenas repetem aquela mudança e metamorfose seguida pelos seus primos americanos, desenvolvida desde os tempos do presidente Wilson. A contradição ideológica interna do capitalismo, entre políticos intervencionistas do interesse nacional-imperial e idealistas anti-intervencionistas, desmorona-se definitivamente na crise mundial: a impiedosa manutenção do sistema, a afirmação do capitalismo a qualquer preço e o fraseado democrático-idealista tornam-se imediatamente idênticos no "pensamento de polícia mundial", contra os monstros da crise aparentemente surgidos dos abismos da história.

As expedições punitivas conduzidas pelo Ocidente contra a periferia capitalista, mergulhada no caos a partir do salto histórico de 1989, são apresentadas, de acordo com este espírito, como acções legítimas da "comunidade internacional", da "comunidade democrática dos povos", etc. O consenso mundial democrático omite sistemática e mentirosamente o facto de a maravilhosa economia de mercado mundial ser ela própria o regaço que, conjuntamente com a crise e o colapso da reprodução socioeconómica, abriga aquele "belicismo" contra o qual então a amistosa humanidade dominante, impregnada de idealismo e com bombardeamentos extensivos, impõe a economia de mercado mundial. A falsidade desta legitimação revela-se, desde logo, pelo facto de ser acompanhada dum histérico espírito de cruzada, estimulado pelos media capitalistas democráticos em uníssono, como se estivessem todos sob as ordens dum censor omnipotente.

 

A NATO como prolongamento supranacional do "imperialista global ideal"

A NATO constitui o enquadramento político-militar da Pax Americana e da globalização de crise do capital iniciada nesta época. Neste campo de referência, ela tinha de se distinguir fundamentalmente, à partida, das constelações de alianças imperiais anteriores. Nem podia tratar-se de uma relação, apenas exterior, entre uma potência hegemónica e os respectivos vassalos no sentido imperial tradicional, nem de uma aliança entre potências imperialistas nacionais mais ou menos em pé de igualdade. Pelo contrário, o contraditório estatuto duplo dos EUA, como estado-nação ou economia nacional, por um lado, e como "capitalista global ideal", por outro, exigia aos estados europeus do centro capitalista tornados secundários uma metamorfose análoga, com um carácter similarmente contraditório: por um lado, tal como os EUA, não podem deixar de ser estados-nações; por outro, têm de se integrar na nova estrutura de um pretenso controlo a nível global, sem poderem tornar-se imediatamente parte integrante dos EUA.

Deste modo contraditório, a NATO transformou-se, para além da função meramente militar, na instância política comum de todo o Ocidente, a fim de integrar os estados europeus do centro capitalista no sistema hegemónico do novo "capitalista global ideal", por assim dizer embutindo-os neste sistema, ou seja, fazendo com que, de "potências" de apenas segunda ordem do velho tipo se transformassem, eles próprios, em partes integrantes de um "imperialismo global ideal". A alternativa já não consiste em escolher entre um estatuto independente como velha potência imperialista nacional e um estatuto de vassalo perante a superpotência EUA, mas entre um estatuto de maior ou menor peso no seio da NATO, como prolongamento político e legitimador da hegemonia mundial de novo tipo dos EUA.

Deste modo, por um lado a NATO comprova ser de facto uma estrutura supranacional de um pretenso controlo capitalista global, face a um mundo tomado de assalto por uma globalização da economia empresarial e uma simultânea desagregação de crise. Por outro lado, ela nem sequer pode ser imaginada sem o aparelho de administração de violência de alta tecnologia dos EUA, que continua centrado em e controlado por um estado-nação, e cuja falta de paralelo mantém de pé a hegemonia dos EUA no seio da contraditória obra-prima integral do imperialismo mundial. Numa ordem bárbara, em última instância, quem manda acaba sempre por ser aquele que for capaz de brandir a moca maior. E, no âmbito dos critérios capitalistas e da tecnologia capitalista, a Europa nunca mais poderá ter a maior moca.

O raciocínio burguês europeu pensa no assunto de uma forma lapidar e sóbria, por exemplo no [diário económico] Handelsblatt: "Uma identidade europeia em termos de segurança é em princípio desejável, mas não é realizável de momento. Os programas de armamento que para tal seriam necessários não podem ser financiados [...] A recente intervenção no Kosovo revelou uma vez mais até que ponto os Europeus são inferiores aos EUA quando se trata de projectar poder militar para além das próprias fronteiras nacionais. Quase 80 por cento de todas as missões de combate e 90 por cento das bombas e dos mísseis utilizados foram-no por conta dos EUA. Até à sua própria porta, os europeus não conseguiram dar mais que um contributo marginal para a derrota de uma potência militar de terceira ordem [...] Enquanto os EUA continuarem a ser um parceiro de segurança fiável, não deve ser prosseguida qualquer política armamentista europeia que prejudique a consolidação orçamental" (Wolf 1999).

Com efeito, os estados europeus do centro capitalista não têm capacidade de intervenção militar em maior escala, nem este ou aquele por si, nem todos em conjunto. Para tal faltam pura e simplesmente os meios militares, como sejam frotas de bombardeiros estratégicos, porta-aviões e arsenais de mísseis; e não apenas em termos quantitativos, mas igualmente no plano tecnológico. Se hoje a Alemanha, por exemplo, se encontra a este respeito aproximadamente ao nível de um polícia de aldeia global, a Grã-Bretanha e a França, apesar das suas experiências com guerras pós-coloniais e das pretensões militares daí decorrentes até ao presente, não se encontram em situação muito melhor. Na absurda guerra das Malvinas, os Britânicos conseguiram impor-se à marinha argentina por uma unha negra; e as diversas mini-intervenções francesas em África mal merecem o epíteto de militares. A imprensa francesa escarneceu acerca do desastre do porta-aviões "Charles de Gaulle", que sofreu uma avaria, mal tinha entrado em serviço, tendo de ser rebocado a muito custo pelo seu predecessor já abatido à carga, o "Clemenceau".

Se levarmos em linha de conta que no seio da UE entre 60 e 70 por cento de todos os meios despendidos com o desenvolvimento e aprovisionamento militar são da responsabilidade da Grã-Bretanha e da França, já se vislumbra a estreita margem europeia para um programa armamentista e intervencionista. Não admira que a planeada força militar da UE seja logo à partida designada por "tropa de papel".

Uma alteração fundamental da relação de forças militar, ainda que fosse pretendida, é de facto utópica, mesmo sob o ponto de vista financeiro. Seria a ruína económica, se a UE quisesse, num tour de force em termos de política armamentista (para o qual, para mais, nunca conseguiria estar suficientemente unificada), igualar o poderio militar dos EUA. Em lado algum se vislumbram quaisquer factores que demonstrem como seria possível a inversão de sentido dos fluxos globais de capital para isso necessários; e, se tal ainda assim fosse conseguido, a economia mundial seria desestabilizada ainda mais, e o já frágil edifício do capitalismo financeiro global desmoronar-se-ia.

Nem sequer os opinion makers políticos mais influentes têm quaisquer ilusões sobre a possibilidade de a relação de forças actual poder vir a ser alterada: "Não existe qualquer sinal de uma alteração fundamental dos pesos relativos [...] A base económica da Europa para eventualmente desafiar os EUA e seus planos de ordenamento mundial [...] não se tem alargado, tendo antes ficado mais diminuta [...] Na área militar, a discrepância transatlântica é ainda mais visível. Assim, os estados europeus da NATO despenderam com o aprovisionamento militar, nos últimos cinco anos, apenas aproximadamente metade do que foi despendido pelos EUA no mesmo período. No âmbito da investigação e do desenvolvimento, o fosso ainda se alargou" (Wolf 2001). Mas trata-se de considerações meramente hipotéticas, visto que, para além de tudo isto, já nem sequer existe qualquer motivo económico e "materialista" para estratégias de anexação e "influência" territorial no âmbito de um grande conflito intracapitalista.

Tal não significa que não existam tentativas europeias de se perfilar perante a última potência mundial que são os EUA, embora, em caso de dúvida, estas partam mais da França do que da Alemanha. Mas tais atitudes não passam de disputas de competências e de guerras de capelas no seio da ordem estabelecida do "imperialismo global ideal", sob a hegemonia incontroversa dos EUA, não configurando a afirmação de uma pretensão imperial autónoma. Também cada vez mais voltam à liça as contradições económicas e sobretudo comerciais entre a UE e os EUA, mas sem que alguma vez seja seriamente posta em causa a cobertura global comum da Pax Americana.

John C. Kornblum, até 2001 embaixador dos EUA na Alemanha, dá, numa palavra, expressão tanto à inevitabilidade capitalista da aliança incarnada na NATO como ao problema da mesma: "O medo de que os Europeus e os Americanos se dividam em campos mutuamente concorrentes carece de qualquer justificação. Os laços que unem a Europa com os Estados Unidos são tão fortes que uma ruptura é inimaginável [...] O que é tão especial na situação presente? Muito poucas vezes um governo americano recém-eleito assumiu funções num tempo tão volátil. E foram igualmente raras as vezes que os Europeus e os Americanos sentiram uma tão idêntica perplexidade [como] perante esta confusão planetária" (Kornblum 2001). O "tempo volátil" e a "confusão planetária", uma formulação em termos conceptuais tão inócua como piegas da derrocada do moderno sistema produtor de mercadorias com base nas suas próprias contradições internas, faz da NATO, após o fim da Guerra Fria, ainda mais, a instância do capitalismo global, cuja razão obriga todos os conflitos internos e todas as teimas a passar para segundo plano.

Isso também se aplica a pontos polémicos, como o novo bombardeamento injustificado do Iraque pelos EUA, sob a nova liderança do presidente ultraconservador Bush, os planos de Washington para uma "defesa nacional anti-míssel" (NMD) ou, inversamente, o projecto de uma política europeia comum de segurança e defesa (PECSD). Neste contexto, cada vez que se fala em "arrufos" na relação entre os EUA e a UE, tal conceito, que não passa de uma pequena diferença, aponta mais para a necessidade objectiva de uma política hegemónica imperial global do que para uma ruptura dessa coesão.

Todas as especulações de que semelhantes "desavenças" mútuas poderiam constituir o início de uma alteração profunda na constelação mundial capitalista carecem de qualquer fundamento: "Com estas reflexões orientadas pela política quotidiana, os cépticos não vêem com clareza [...] o significado fundamental de factores estruturais que actuam a médio e longo prazo e que abonam inequivocamente a favor da continuidade da parceria transatlântica. Embora continue a haver arrufos, estes não conduzirão a conflitos duradouros ou mesmo a uma rivalidade geopolítica" (Wolf 2001).

Embora as desavenças, os chamados arrufos, as tentativas de ganhar protagonismo e as mostras de um poder discricionário remetam para a continuação da existência da forma do estado-nação com a sua lógica própria, insuperável para a relação de capital, e com isso simultaneamente para as contradições inerentes à estrutura do "imperialismo global ideal", este assumiu no entanto, irreversivelmente, a forma supranacional da NATO. Esta inevitabilidade da NATO, como força de intervenção ocidental global sob a liderança dos EUA, também corresponde aos interesses capitalistas dominantes, que, no âmbito da crise e da globalização, afinal também se tornaram directamente transnacionais. Assim "a integração global dos mercados dá mais força àqueles que retiram proveito da globalização e que por isso estão interessados na cooperação entre estados. Isto aplica-se sobretudo às grandes empresas transnacionais, assim como aos investidores de capital financeiro" (Wolf 2001). Se traduzirmos a fórmula eufemística da "cooperação entre estados" na da "guerra de ordenamento mundial imperial global", assim indicamos o pano de fundo real dos interesses capitalistas hoje dominantes. Se as contradições no plano do sistema mundial se agravarem dramaticamente, há que contar muito mais com acções unilaterais de um governo dos EUA a entrar em pânico do que com um desafio europeu aos EUA.

O contexto imperial global e o contexto económico da globalização também se aplicam estritamente à própria indústria do armamento que, tal como todos os restantes capitais, se tem integrado a toda a velocidade em estruturas transnacionais. As fábricas de material bélico, outrora dotadas de uma orientação estritamente nacional e intimamente associadas ao respectivo aparelho de Estado nacional e às suas pretensões de controlo e de expansão territorial, tornaram-se em grande parte global players dotados de larga diversificação económico-industrial, com ramificações tanto nos EUA como na UE (e em parte no espaço asiático). No sector do armamento existem, por isso, tal como em todas as outras áreas, participações transatlânticas cruzadas, "alianças estratégicas", fusões e aquisições, estando a indústria de armamento dos EUA a dominar claramente o panorama.

Assim, por exemplo, por razões económicas todas as agulhas foram apontadas no sentido de a grande empresa de armamento espanhola Santa Bárbara Blindados (SBB), no âmbito da sua privatização, não ser controlada por uma empresa de armamento europeia, mas sim pelo gigante de armamento americano General Dynamics, que, através desta aquisição, poderá também obter uma participação na fábrica de tanques de Munique Krauss-Maffei Wegmann (KMW); SBB constrói sob licença o tanque Leopard da KMW. Inversamente, a grande empresa europeia de material aeronáutico e espacial EADS (a casa-mãe da Airbus) quer vir a construir aviões militares nos EUA juntamente com um parceiro dos EUA (Lockheed Martin ou Northrop), a fim de conseguir aceder a lucrativas encomendas do Pentágono. Entretanto a EADS já colabora com a Boeing na defesa anti-míssil. Também está decidida a tomada do controlo dos estaleiros navais militares alemães HDW, através de uma participação maioritária do investidor financeiro dos EUA One Equity Partners (OEP), o que é interpretado como uma aquisição encapotada pelo gigante de armamento americano General Dynamics. A HDW constrói e vende, desde o Outono de 2002, submarinos juntamente com a empresa de armamento americana Northrop-Grumman. Embora existam reservas por parte da Comissão Europeia, segundo um lobista alemão de armamento, mais cedo ou mais tarde, toda a indústria de armamento europeia dependerá do mercado de aprovisionamento dos EUA e terá de se adaptar à situação através do estabelecimento de participações transnacionais: "Sem a América, nada é possível" ([semanário económico] Wirtschaftswoche 40/2001).

Ao arrepio de todos os "arrufos" e tentativas de obstrução das classes políticas nacionais, a transnacionalização da indústria de armamento entre os centros capitalistas ocidentais progredirá; já existem projectos de um mercado de aprovisionamento electrónico transnacional para as grandes empresas de armamento e aeronáuticas.

Afinal já não há qualquer motivo essencial para que as empresas de armamento se cinjam ao plano nacional, ou mesmo ao da UE; os debates e as reservas a este propósito já não são de carácter estratégico nem, por isso, de primeira ordem, mas desenrolam-se ao nível das disputas secundárias de competências. A NATO constitui uma força de intervenção imperial global e um plano capitalista global de ordenamento mundial não só no que diz respeito às bases económicas gerais do capitalismo de crise globalizado, mas também directamente em termos da tecnologia e da economia do armamento.

O conceito de "imperialista global ideal", elaborado por analogia com a formulação de Marx, segundo a qual o Estado nacional constitui o "capitalista global ideal", evidentemente, tal como este último, não remete porventura para um exercício de influência meramente "imaterial"; trata-se, sim, de um aparelho abrangente de violência de alta tecnologia e de intervenção política em todo o mundo que intenta estabelecer um enquadramento para a acção capitalista com validade universal e, neste sentido, tem de erguer uma pretensão de controlo igualmente universal. No entanto o "imperialista global ideal" mundializado encontra-se muito mais limitado no plano político-militar do que outrora o foi o "capitalista global ideal" no seio do estado-nação: ele não reúne os capitais da sua área de poder num enquadramento ordenador também económico, mas tem inversamente de obedecer à concorrência desenfreada dos capitais que rebenta qualquer quadro ordenador e sobre a qual só já pode reagir superficialmente e sem uma capacidade de intervenção político-económica autónoma.

A NATO, tal como os EUA, não constitui um "estado mundial" que possa tomar conta das velhas funções do estado-nação a um nível superior, supranacional. Ela mais não é do que o "imperialista global ideal" (alargado), ou seja, uma pura instância de violência e de pressão política, e não a instância de uma regulação mais abrangente. Assim sendo, a NATO não pode resolver a contradição do capitalismo de crise global, podendo apenas, na sua própria estrutura contraditória como organismo supranacional sob a hegemonia do estado-nação da "última potência mundial", exprimi-la em mostras periódicas de violência.

À primeira vista este "imperialismo global ideal" monocêntrico do início do século XXI poderia recordar o conceito quase esquecido de um chamado "ultra-imperialismo", que o velho ideólogo-mor dos sociais-democratas alemães Karl Kautsky tinha criado no início do século XX, no âmbito do debate sobre o imperialismo com Rosa Luxemburg e Lenine. Mas a analogia é apenas muito superficial. Kautsky escreveu em 1914 no Neue Zeit: "Não se verifica qualquer necessidade económica de continuar a corrida aos armamentos depois da guerra mundial, nem mesmo do ponto de vista da própria classe capitalista, mas, quando muito, do ponto de vista de alguns interesses armamentistas. Inversamente, a economia capitalista é a primeira a ser fortemente ameaçada pelas contradições entre os respectivos estados. Qualquer capitalista perspicaz hoje tem de dirigir aos seus consócios o seguinte apelo: Capitalistas de todos os países, uni-vos! [...] Como é evidente, se a política actual do imperialismo fosse imprescindível ao prosseguimento do modo de produção capitalista, os factores acabados de enunciar não conseguiriam causar uma impressão duradoura nas classes governantes, não as levando a imprimir uma outra direcção às suas tendências imperialistas. No entanto, isso é possível se o imperialismo, o esforço de cada grande estado capitalista no sentido de expandir o seu próprio império colonial em detrimento dos outros impérios de tipo semelhante, constituir apenas um entre diversos meios de promover a expansão do capitalismo [...] A concorrência furiosa entre empresas gigantescas, bancos gigantescos e bilionários criou a ideia de cartel das grandes potências financeiras que engoliram as pequenas. Do mesmo modo, também agora pode resultar da guerra mundial das grandes potências imperialistas uma união entre as mais fortes que porá termo à corrida aos armamentos. Portanto, não se pode excluir, do ponto de vista puramente económico, que o capitalismo ainda conheça uma nova fase, uma transferência da política de cartel para a política externa, uma fase do ultra-imperialismo, contra o qual evidentemente teríamos de lutar com a mesma energia que contra o imperialismo, mas cujos perigos seriam de índole diferente da corrida aos armamentos e da ameaça à paz mundial" (Kautsky 1914, 920 s.).

Vê-se bem que a argumentação de Kautsky andava longe da realidade do seu tempo (e assim continuaria ao longo de décadas), porque a época da expansão nacional imperial na altura ainda não se esgotara. Mas, se o olharmos mais de perto, Kautsky também não é um bom profeta de um futuro ainda longínquo. Embora tenha visto com muito acerto (sem a elaboração de um conceito das formas sociais capitalistas abrangentes, tal como Lenine) a possibilidade abstracta de uma outra constelação imperial global, contudo não o fez sob o aspecto de uma desagregação social mundial nos limites intrínsecos ao modo de produção capitalista, mas apenas como "outros meios de promover a expansão do capitalismo". É que a posição de Kautsky encontra-se inteiramente determinada pelo discurso social-democrata da viragem do século XIX para o século XX, que oficialmente pusera de parte a teoria da crise e do colapso, apostando numa capacidade de desenvolvimento ulterior do capitalismo, a ser coroada pelo movimento operário com uma transição pacífica e parlamentar para o socialismo de Estado.

Tal como em Lenine, também em Kautsky o tema não é a crise e a crítica (na altura "impensáveis") das formas sociais transversais às classes, mas a "vontade de classe" apenas sociologicamente fundamentada e politicamente manifestada de “exploração”, por um lado, e da respectiva suplantação, por outro. Contrariamente a Lenine, porém, ele não desenvolve esta análise redutora no campo dos factos históricos efectivos, ou seja, da real concorrência entre potências expansionistas imperialistas nacionais, mas como uma fantasmagoria vergonhosamente oportunista. Não resta dúvida de que é necessário um misto de ilusionismo e auto-engano para se postular, mesmo no meio do troar dos canhões que anunciava o início da guerra mundial industrial, uma aliança pacífica do imperialismo global ou do ultra-imperialismo para a "exploração do mundo" comum após a guerra mundial, como se a realidade desta última nem sequer existisse ou já tivesse passado à história (uma atitude até hoje típica do raciocínio democrático reformista a propósito de questões "perigosas").

No entanto é precisamente por isso que a "visão ao estilo de Nostradamus" de Kautsky, de um democrático fala-barato de sofá, muito menos se aplica ao "imperialismo global ideal" hoje real da NATO. É que, primeiro, o que está em causa já não é uma calma "exploração comum" de regiões do mundo ainda não acessíveis ao capitalismo, mas sim o problema de uma crise mundial em contínua progressão e que se define precisamente pelo facto de o capitalismo do centro, no nível alcançado pelo seu próprio standard de produtividade e rentabilidade, se ir tornando cada vez mais "incapaz de explorar", e de o mercado mundial ir deixando atrás de si crescentes zonas de "terra queimada" em termos económicos, já inaptas para serem exploradas pelo capitalismo.

E, em segundo lugar, a NATO constitui também uma aliança pouco ou nada pacífica do imperialismo global, precisamente porque ela está totalmente concentrada em malhar nas consequências político-militares e barbarizantes da crise sem solução possível. Assim sendo, embora corresponda à realidade que oitenta anos depois das teses de Kautsky já não existe qualquer conflito entre imperialismos semelhante ao da Primeira Guerra Mundial, o contraditório carácter supranacional da NATO baseia-se em desenvolvimentos em tudo diferentes dos que Kautsky tivera em mente; e assim, lá está, não se trata de uma era de paz capitalista que possa ser transformada pela via parlamentar, mas de uma bárbara guerra de ordenamento mundial sem qualquer perspectiva civilizatória. A analogia entre o constructo de Kautsky do "ultra-imperialismo" e o real "imperialismo global ideal" da NATO é perfeitamente superficial e inverídica.

Mas o que faz crer que no século XXI não venhamos a assistir a uma reedição das anteriores lutas de influência territorial imperialistas nacionais pela hegemonia mundial não são apenas os factos económicos e político-militares no contexto da Pax Americana e da globalização. Também o desenvolvimento cultural e ideológico não comporta os mínimos sinais de que as velhas potências da época das guerras mundiais venham em breve a preparar-se para iniciarem o terceiro round, não passando a NATO de apenas uma manifestação transitória circunscrita à época da Guerra Fria.

É que, numa constelação de conflito político mundial, as sociedades envolvidas têm de ser formadas e preparadas não só nos planos político, económico e militar, mas também a nível cultural e ideológico. Basta vermos o enorme esforço e alcance histórico com que foram criadas e cultivadas as imagens dos respectivos inimigos, tanto na época das guerras mundiais, entre 1870 e 1945, como na constelação bipolar do pós-guerra entre 1945 e 1989. A "pérfida Albion", a França como "inimigo hereditário" e, inversamente, os "hunos" alemães, etc., ou posteriormente o "totalitário império do mal" no Leste, não foram apenas objecto de um culto e de uma coloração propagandistas, mas também artísticos e culturais, tanto no plano nacional como popular, que conseguiram chegar até aos pormenores da vida quotidiana. Para tal foram aproveitados todos os registos mediáticos, da polémica académica ao livro infantil, da conservação do património à poesia lírica patriótica. Hoje em dia é impossível falar de uma tal construção sistemática de novas e mútuas imagens do inimigo no interior do campo imperialista. Até o tradicional antiamericanismo europeu não apenas se tornou marginal, mas ele próprio já está "americanizado".

Isto de modo algum significa que padrões culturais e ideológicos nacionalistas, anti-semitas, racistas, etc. não regressem, ou que o recurso aos mesmos não se torne mais frequente nos processos de crise da globalização. Mas, contrariamente à época das guerras mundiais, tais padrões não se encaixam no contexto de uma formação imperialista nacional, para a luta de morte entre as grandes potências capitalistas em torno de "grandes espaços geoestratégicos". Já a imagem do inimigo do "império do mal" soviético tinha sido formada num patamar diferente; ela já não reflectia a concorrência mútua entre os estados imperialistas nacionais do centro ocidental do capitalismo industrial, mas sim a concorrência do centro como um todo com os retardatários históricos da periferia e o respectivo "contra-sistema", que não deixava de se manter enquadrado no paradigma capitalista.

Depois do colapso da União Soviética e do fim da Guerra Fria não regressam as anteriores imagens do inimigo, mas vai-se criando uma nova imagem do inimigo, substancialmente mais difusa, já não determinada em primeira linha por alguma concorrência prolongada como política imperial no seio do modo de produção capitalista (o que apenas se aplicava ao processo de ascensão histórica do mesmo), mas, e imediatamente, pelas manifestações de desagregação que pontuam a crise mundial capitalista: trata-se de exteriorizar e personificar ideologicamente estas últimas, a fim de manter obnubilado o carácter das manifestações da crise, e encobrir as respectivas causas.

(Capítulo I do Livro A GUERRA DE ORDENAMENTO MUNDIAL, Robert Kurz, Janeiro 2003)

A crise do sistema mundial e o novel vazio conceptual - Introdução - (R. Kurz; Janeiro de 2003) Español

Original alemão: http://www.exit-online.org/

http://obeco-online.org/