A Guerra de Ordenamento Mundial
O Fim da Soberania e as Metamorfoses do Imperialismo na Era da Globalização
da comunidade democrática
de bombardeiros e
do terror económico
ÍNDICE
INTRODUÇÃO
A crise do sistema mundial e o novo vazio conceptual . . . . . . . . . . . . . .11
AS METAMORFOSES DO IMPERIALISMO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
A Pax Americana: A luta pelo domínio mundial capitalista está decidida 16 · A última potência mundial nos limites históricos do sistema 23 · Do imperialismo nacional territorial ao "imperialismo global ideal" 26 · Do pacifismo “de boas pessoas” nacional ao belicismo intervencionista global 33 · A NATO como prolongamento supranacional do "imperialista global ideal" 36
OS FANTASMAS REAIS DA CRISE MUNDIAL. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
Os potentados de crise e as novas guerras civis 46 · A economia de saque global 48 · Sociedade do risco, coacção objectiva e relações de violência 54 · A lógica da dissociação e a crise da relação entre os sexos 56 · A frieza para com o próprio eu 59 · A economia da autodestruição: A globalização e a "incapacidade de exploração" do capital 63 · A metafísica da modernidade e a pulsão de morte do sujeito sem fronteiras 68
A POLÍCIA MUNDIAL PÓS-MODERNA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
A nova doutrina militar e a nova economia de guerra 75 · O Choque de Civilizações como ideologia de guerra 81 · A ideologia e a lógica dos direitos humanos 85 · Da economia política ao culturalismo pós-moderno 89 · O imperialismo da segurança 103 · O imperialismo do petróleo e do gás: a segurança das reservas estratégicas de matérias-primas
O MÉDIO ORIENTE E A SÍNDROME DO ANTI-SEMITISMO Deutsch . . . 115
A religião de combustão capitalista e os regimes do petróleo 115 · O anti-imperialismo e a ideologia de crise anti-semita 118 · O estado de Israel e o seu estatuto paradoxal no mundo capitalista 126 · O fim dos "movimentos de libertação nacional" e o fantasma da fundação do estado palestiniano 129 · Israel como Alien no mundo capitalista e o novo anti-semitismo árabe 133 · Do sionismo à dominação dos ultras: a crise interna da sociedade israelita 136
O APARTHEID IMPERIAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 156
Um mundo cheio de refugiados 157 · Imperialismo da exclusão: muros e faixas da morte à moda liberal 160 · A ilusão da "reconstrução" 172 · A economia-fantasma do complexo humanitário-industrial 178 · A economia da violência sexual e da miséria 180 · Do Estado-tampão ao zoo étnico 183
O CONSENSO DEMOCRÁTICO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .190
Estrangeiros domésticos como recursos humanos 190 · A caça ao homem no interior e o terror da deportação 193 · O campo de concentração democrático 203 · As zonas racistas 208 · A populaça democrática em acção 213 · EUA: a identidade de base racista e a guerra civil entre guetos 217 · As identidades sintéticas e o neo-radicalismo de direita 222 · Os úteis e os inúteis 225 · A globalização dos "decentes" 231
O IMPÉRIO E OS SEUS TEÓRICOS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 240
O império e os novos bárbaros (Jean Christophe Rufin) 240 · Empire – o mundo da crise como Disneylândia da Multitude (Michael Hardt / Antonio Negri) 255
O FIM DA SOBERANIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 272
A Al-Qaida: uma nova qualidade da violência pós-política 273 · Dois tipos de sacrifícios humanos. Sobre a teologia da indignação democrática 277 · A autodefesa nacional como impossibilidade lógica 280 · O poder totalitário da modernidade: o conceito de soberania 282 · A desterritorialização político-militar 285 · Todos contra todos: a transformação anómica 287 · A derrocada do direito internacional 294 · A aliança com as potências pós-soberanas 297 · A privatização do monopólio da violência 301 · O desgaste moral das instituições e a corrupção do nomos democrático 303 · O fim da soberania e a ilusão jurídica 305 · O capitalismo não funciona sem soberania 314
O ESTADO DE EXCEPÇÃO GLOBAL. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 320
O tribunal fantoche da democracia 320 · O fim da forma do direito moderna e a ideologia da "legitimidade" 324 · Os crimes de guerra democráticos e a desjuridicização democrática 327 · O imperialismo da segurança anómico voltado para o interior 331 · McCarthy manda saudades: a caça às bruxas democrática 333 · Poderá a tortura ser pecado? 336 · A lógica do estado de excepção 337 · Sobre a história do estado de excepção 340 · O estado de excepção permanente 343 · Vida nua e vontade quebrada: o estado de excepção como nomos oculto da modernidade 345 · As casas de terror da economia empresarial: o capitalismo como estado de excepção coagulado 351 · A liquefacção do estado de excepção como liquefacção da soberania 356 · A integração na cidadania destituidora da cidadania e a cidadania de miséria 358 · Judeus e outros "supérfluos": a estrutura da exclusão inclusiva 360
O TRAÇO ANACRÓNICO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 363
O materialismo vulgar e a irracionalidade do sistema 365 · Sempre de novo, a Primeira Guerra Mundial 369 · Os condutores em contramão históricos da nova esquerda 373 · O sono epocal da esquerda radical 376 · Da febre petrolífera até ao desvario da alma 383 · A Alemanha enquanto fantasma de uma potência mundial 386 · Sempre de novo, a Segunda Guerra Mundial 389 · O grande jogo aos hitleres 392 · Uma teoria da conspiração para indigentes intelectuais 400 · A globalização da "ideologia alemã" 404 · Após o 11 de Setembro: o último estádio do pensamento anacrónico 406
DA GUERRA DE ORDENAMENTO MUNDIAL
AO AMOQUE NUCLEAR? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 413
O regresso ao paradigma dos "estados vilãos" 414 · A crise dos mercados financeiros e o "sonho do Oleodorado" 419 · A pulsão de morte nuclear do poder 425 · Por um renascimento da crítica social radical 434
Bibliografia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .440
Sobre o autor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44
INTRODUÇÃO
A crise do sistema mundial e o novo vazio conceptual
Num tempo em que o sistema dominante já parece dispensar qualquer tipo de legitimação, tanto quanto ainda vai havendo quem pense de modo reflexivo, esse pensamento parece estranhamente anacrónico. Isto aplica-se não só ao conteúdo real, mas também às categorias em que esse conteúdo se apresenta. Tal como existem cada vez mais contrastes sociais novos e gritantes, os quais, no entanto, já não podem ser explicados recorrendo a modelos sociológicos claros e inequívocos, ou a conceitos de classe, também se podem observar à escala global novos conflitos económicos, lutas culturais e guerras, que já não podem ser descritos com os conceitos tradicionais da política económica, da política interna e externa. Embora o chamado debate da globalização, conduzido desde o início dos anos noventa do século XX (a coincidir aproximadamente com o colapso da União Soviética), se aperceba de uma série de fenómenos novos, estes continuam a ser passados pelo velho crivo categorial, visto não se encontrar à disposição nenhum outro sistema de referência conceptual. Verifica-se assim, por um lado, uma perda de significância da política e um desvanecimento da soberania dos estados, se bem que se teime, por outro, em exprimir essas manifestações empíricas, recorrendo aos conceitos tradicionais da política e das relações entre estados.
Com isso se relaciona o facto de qualquer orientação, na medida em que é, pelo menos, tentada, se voltar quase irremediavelmente para o passado, nomeadamente enquanto esperança e busca de concepções para alguma "recuperação da dimensão política"; e é precisamente por isso que a maneira de ver o novo se revela fenomenologicamente redutora, enquanto o sistema conceptual permanece o mesmo de sempre, sendo defendido desesperadamente. Isso manifesta-se até, e não em último lugar, ao nível das relações internacionais ou entre estados, quando, de um modo tão fanfarrão quanto desajustado, se fala de uma "política interna mundial". Esta frase feita, especialmente em voga e papagueada até à exaustão em círculos verdes e social-democratas, comprova imediatamente que tudo isto não passa de uma projecção de velhos conceitos burgueses no pano de fundo de um desenvolvimento tão novo quanto incompreendido.
Aqui impõe-se o paralelismo com o debate acerca da crise da sociedade do trabalho. Também a este respeito se realça continuamente a novidade das manifestações, ao passo que a categoria do trabalho propriamente dita, enquanto apriorismo tácito, permanece literalmente um tabu, e todas as concepções ou até receitas milagrosas acabam por conduzir à preservação dessa mesma categoria sob uma forma qualquer e quase que a qualquer preço. A analogia dos modos de proceder remete para a conexão intrínseca entre ambos estes complexos: a crise do trabalho mundial e a crise da política mundial representam apenas aspectos diferentes do mesmo processo social mundial.
Enquanto se agitava a Guerra Fria, como conflito sistémico entre duas manifestações ou fases de desenvolvimento não simultâneas do moderno sistema produtor de mercadorias, ela sobrepunha-se a um problema mais basilar que assim passou despercebido. Sob o manto da Guerra Fria foi-se constituindo uma estrutura de crise operante à escala global, que veio à luz sem aviso prévio com o esboroar do capitalismo de Estado, mas que apenas pôde ser percebida numa forma ideologicamente distorcida sobre o pano de fundo da história do pós-guerra.
O que parecia ser a "vitória" do capitalismo ocidental foi-se revelando, ao longo dos anos 90 do século passado, como uma derrocada socioeconómica irreversível, desde já de extensas partes da periferia do mercado mundial. No âmago deste processo de crise encontra-se o dissolver da substância real (produtora de valor real) do trabalho capitalista, por obra da terceira revolução industrial, a crescente "incapacidade de exploração" do capital, devida aos seus próprios padrões tecnológicos de produtividade e, com isso, a dessubstanciação do dinheiro (desacoplamento dos mercados financeiros da economia real). Esta lógica interna da crise, contudo, não se repercute apenas sob a forma de uma ruptura estrutural ao nível das relações mundiais de mercado (globalização do capital), mas também como uma ruptura estrutural ao nível do sistema político mundial (fim da soberania e do direito internacional).
Sob este aspecto, aquilo que é apregoado, sob o rótulo da globalização, como uma mudança à escala mundial, positiva e detentora de um grande potencial para o futuro, há muito que pode ser decifrado como o processo de desagregação do modo de produção e de vida dominante, o qual se bifurca num capitalismo minoritário global em contracção, por um lado, e nos seus produtos de barbarização, por outro. Neste contexto, a contradição estrutural imanente à relação de capital entre o Estado e o mercado, ou entre a política e a economia, não pode ser sustentada por mais tempo, tanto ao nível dos estados nacionais como ao nível do sistema mundial. O que, em termos de política interna, se manifesta como processo de erosão da soberania do Estado, manifesta-se em termos de política externa como desmoronamento das relações internacionais.
A ambos estes níveis se vai tornando difícil a resolução da contradição. Embora os estados nacionais continuem a existir enquanto invólucros formais e enquanto aparelhos (que actuam, no âmbito da administração de crise, de um modo crescentemente repressivo), eles encontram-se destituídos de bases coerentes em termos de economia nacional. Os capitais transnacionais e os respectivos mercados, inversamente, embora consigam estender-se para além do tradicional sistema de referência nacional e internacional, destroem, por isso mesmo, cada vez mais as suas próprias condições de enquadramento. Surgem, assim, novas e incontroláveis formas de transição, em que culminam as irremediáveis contradições intrínsecas ao capital mundial.
Não é apenas uma preguiça mental generalizada que impede o desenvolvimento de uma nova conceptualidade que corresponda aos fenómenos novos. É que, no que diz respeito aos conceitos em causa, que são a economia nacional, o estado nacional, a política nacional interna e externa ou uma política nacional de interesses e de "influência" (imperialismo) daí decorrente, não se trata de expressões de uma determinada fase evolutiva transitória, mas, à semelhança do conceito de trabalho, de categorias fundamentais do próprio sistema social moderno em todas as suas variações. Os novos fenómenos são fenómenos de crise de um tipo inédito, uma vez que já não conduzem a um estado evolutivo superior da socialização burguesa, mediada pela produção de mercadorias, constituindo antes a sua própria crise categorial.
Por tudo isso, o desenvolvimento também já não pode ser determinado sob o ponto de vista da ordem mundial vigente, podendo sê-lo unicamente do ponto de vista da respectiva autodestruição. Para ser mais exacto: já não existe qualquer "desenvolvimento" positivo e sustentável nesta base social. Isso significa que a análise tem de considerar, juntamente com o desmoronamento das relações sociais subjacentes, o desmoronamento dos conceitos em que esta ordem se apresenta. E, deste ponto de vista, estão obsoletos não apenas os conceitos do sistema mundial económico, mas também os conceitos do sistema mundial político.
Os devastadores ataques terroristas, contra os EUA, em 11 de Setembro de 2001 tornaram claro, literalmente num abrir e fechar de olhos, o que já muito antes se conseguia adivinhar: a interligação social à escala mundial, não conseguida por intermédio de acordos conscientes e da autodeterminação humana, mas através das cegas leis da concorrência e dos mercados financeiros produz não só novos tipos de crises estruturais, mas igualmente novos potenciais subjectivos de ódio e destruição, em que se manifesta a decomposição da "subjectividade política" burguesa. Do sono da razão nascem monstros, batendo a "mão invisível" de um economismo totalitário desenfreado tão sem dó nem piedade como a outra "mão invisível", a de uma cega raiva "pós-ideológica" e "pós-política", cujo balbuciar pseudo-religioso involuntariamente comprova que qualquer legitimação racionalista da chamada "modernização" se esgotou definitivamente.
A ratio da sociedade mundial, baseada na valorização infinita enquanto automovimento do capital monetário, é, ela própria, esse sono da razão. No entanto, esta racionalidade moderna de um fim em si irracional degenerada em "pragmatismo", ou seja, já incapaz de reflexão e auto-reflexão crítica, não pode, nem quer, ver os seus limites e, assim, prossegue obstinadamente no business as usual, tentando definir os seus próprios demónios como um "problema de segurança" estranho e exterior. Supõe-se que a imparável desagregação da economia é detida com meios económicos, enquanto se pretende travar com meios políticos a igualmente imparável desagregação da política. Os senhores mundiais do capital já não compreendem o seu próprio mundo.
Para se poder chegar a compreender o que parece incompreensível é necessário adoptar, bem contrariamente à ideologia pragmática das elites funcionais em exercício, que, hoje, em boa verdade, já apenas executam a pretensão totalitária da economia sobre o mundo, uma posição, muito pouco em voga, de distância e crítica radical. Somente a partir desta posição é que se torna possível reconhecer, como tais, os processos de decomposição e de autodestruição do sistema mundial, analisar todas estas correlações na sua dimensão histórica e, ao mesmo tempo, documentá-las como o limite da dinâmica capitalista que actualmente se nos apresenta.
Original alemão: http://www.exit-online.org/