2. OS FANTASMAS REAIS DA CRISE MUNDIAL

(Capítulo 2 do Livro A GUERRA DE ORDENAMENTO MUNDIAL Robert Kurz, Janeiro 2003)

 

A ideologia democrática capitalista naturalmente não quer admitir que o novo inimigo mundial é o produto da decomposição global do seu próprio sistema. Também por isso falta à definição oficial da situação qualquer análise realista. Antes, na tentativa de identificar o alvo, ergue-se, em caleidoscópio, toda uma panóplia de regimes estranhos, clãs anacrónicos, grupos terroristas, movimentos fundamentalistas, "estados vilãos", etc. Os patifes máximos e inimigos principais, os monstros antidemocráticos e as figuras de magarefe vão-se revezando em sequência rápida, sem que alguma vez se obtenha uma imagem clara do inimigo. Do ponto de vista do sistema mundial capitalista, faltam pura e simplesmente os conceitos necessários.

O que se pode constatar é uma certa gradação nas obscuras imagens do inimigo da democracia mundial e no modo de proceder. No caso do Iraque e do seu ditador Saddam Hussein, por um lado, trata-se de certo modo de um resquício da Guerra Fria e das suas "quentes" guerras por procuração, uma vez que o Iraque, tal como muitos estados do Terceiro Mundo, tinha seguido uma política de oscilação entre os dois blocos de poder, cozinhando à sombra deles o seu próprio caldinho na corrida aos armamentos a nível regional. Por outro lado, este armamento do Iraque também já estava determinado pela nova constelação da crise mundial depois do fim de uma época, na medida em que, ironicamente, fora o próprio Ocidente a fornecer o armamento para a sangrenta Guerra do Golfo dos anos 80 contra o vizinho regime dos mulás do Irão.

Saddam Hussein, inicialmente protegido pela União Soviética nos tempos da Guerra Fria, tinha-se convertido nos anos 80 do século XX (tal como figuras ditatoriais semelhantes da periferia, antes e depois dele) no monstruoso bebé dos próprios democratas mundiais ocidentais, que o tinham apaparicado, a fim de o mandar para uma nova espécie de guerra por procuração contra o "estado vilão" número um da época, o Irão. A muito custo, esta opção voltou a ser revista, e o Ocidente viu-se constrangido a desfazer a tiro e à bomba os sistemas de armamento de segunda categoria e fora de prazo que ele próprio fornecera, o que não abona propriamente a favor da existência de uma concepção coerente entre os guerreiros da ordem mundial.

Para se poder entender melhor o problema propriamente dito, é necessário fazer aquilo que as ideologias ocidentais e democráticas da guerra de ordenamento mundial tentam evitar a todo o custo: nomeadamente, relacionar as definições oscilantes dos "inimigos do mundo" com o verdadeiro processo da crise mundial capitalista, de cuja trajectória tão-só se podem retirar ilações relativamente ao desenvolvimento da imagem do inimigo. Se a encararmos assim, a constelação da guerra contra o Iraque do início dos anos 90 do século passado revela-se como um fenómeno de transição.

 

Os potentados de crise e as novas guerras civis

Se a primeira guerra democrática de ordenamento mundial contra o Iraque ainda pode em parte ser entendida como um problema que sobrou da Guerra Fria depois do fim de uma época, a segunda guerra de ordenamento mundial contra a Jugoslávia residual trazia já com muito mais clareza a marca das consequências da nova crise mundial. Contrariamente a Saddam Hussein, que, antes das sanções, ainda tivera acesso a todas as benesses da riqueza assente no petróleo, o novo papão Milosevic já não era um ditador fossilizado da época da Guerra Fria, mas sim um potentado de crise típico, fruto do colapso da economia nacional jugoslava desbaratada pelo mercado mundial. Nesta medida, a crise jugoslava remete para uma qualidade diferente, superior, da guerra de ordenamento mundial – o que está em causa nos Balcãs já não é o amestramento de uma ditadura das antigas que se tornou disfuncional, mas, sim, a intervenção contra as consequências político-militares de processos de desmoronamento económico.

Mas também o tipo do potentado de crise representado por Milosevic ainda não constitui a última fase na fenomenologia das formas de decomposição político-económica. Nos lugares onde a decadência induzida já alcançou o nível subestatal, a imagem democrática do inimigo fica definitivamente reduzida à irracionalidade. A já quase mítica figura de um Osama bin Laden, por exemplo, dá a entender que a falta de conceitos da moribunda política burguesa anda à procura de imagens e imaginações, para dar uma espécie de rosto que possa ser esbofeteado àquilo que escapa ao seu acervo conceptual. Máfias, bandos de salteadores, guerreiros de Deus, príncipes ocultos do terror: o que se segue ao tipo dos Milosevic, no mundo em fragmentação das inconsequentes guerras de ordenamento mundial, já se situa para lá do conflito político-militar moderno, tal como ainda pôde ser levado a efeito, ao menos em termos formais, no caso do regime iraquiano e no da Jugoslávia residual.

De qualquer modo, porém, os conflitos primordiais que subjazem ao foco de cada distúrbio configuram guerras civis tão ferozes quanto aparentemente atávicas, que, de facto, se direccionam menos para o exterior do que para o interior – designando o "interior" uma economia nacional mais ou menos doente ou já destruída, cujo enquadramento estatal está a romper-se. Mesmo no Iraque, cujo potencial de conflito, em parte, ainda parecia situar-se num outro plano (designadamente no que diz respeito à intentada anexação do Kuwait), tal momento revestiu-se sem dúvida de alguma importância, por exemplo na guerra interna contra a população das zonas curdas. A guerra jugoslava constitui já uma típica guerra civil da concorrência de crise interna, tal como há muito tempo existe na quase totalidade do continente africano e, mais recentemente, também em grandes partes dos países do anterior boom asiático. As imagens do Kosovo e da Bósnia, do Leste da Turquia, do Cáucaso, do Afeganistão, da Indonésia e das Filipinas, do Ruanda, do Uganda ou do Congo assemelham-se umas às outras até ao mais ínfimo pormenor.

Se os Dayaks na ilha de Bornéu organizam cortejos de automóvel, em que se fazem acompanhar das cabeças espetadas dos seus vizinhos imigrados de Madrasta, tal não constitui um indício de regresso a padrões comportamentais atávicos, de restos de mentalidades pré-modernas ou até de maquinações assassinas de antigos caçadores de cabeças, como muitas das interpretações correntes gostariam que fossem; trata-se clara e inequivocamente de actos de desespero de uma competição pela sobrevivência que, não menos clara e inequivocamente, são induzidos em última instância pelo mercado mundial e pelas leis do funcionamento do sistema capitalista mundial. Há um nexo de causa e efeito entre as "reformas estruturais de introdução ou reforço da economia de mercado", que vão sendo impostas pelos conselheiros do Banco Mundial e pelos governos-sombras do FMI, por um lado, e, por outro, os massacres perpetrados à catanada, as violações maciças e os gigantescos fluxos de refugiados, com os quais os media capitalistas excitam o idealismo democrático.

No essencial, é a "continuação da concorrência por outros meios" que dá origem à violência nas regiões de crise e derrocada generalizadas. De certo modo, este novo tipo de reacção não deixa de evidenciar algum parentesco com a velha política capitalista e com a velha lógica de expansão imperial. Também a política burguesa enquanto tal não constitui, afinal, outra coisa senão a "continuação da concorrência por outros meios"; e esta nunca deixou de desembocar na desregulamentação do uso da violência, sob a forma de uma política externa imperial. A violência da concorrência de crise no limiar do século XXI, no entanto, apenas constitui uma cruel caricatura desta relação fundamental burguesa. E o facto de a violência se virar, no essencial, para o interior, e não para o exterior, é mais um sinal de decadência da subjacente pseudocivilização do dinheiro. A relação inverteu-se: já não é o inimigo externo, mas, sim, o inimigo interno a determinar a definição do conflito. Agora a imagem do inimigo interno é construída e desenvolvida até à explosão desmedida, com o mesmo esforço cultural e psíquico outrora usado para definir a imagem do inimigo externo.

Neste contexto, pelos vistos é perfeitamente indiferente se são desenterrados machados de guerra antigos e já meio esquecidos entre determinados segmentos de uma população ou se se inventam imagens do inimigo novinhas em folha. Também não faz diferença se o que domina a concorrência de crise são atribuições étnicas e racistas, religiosas ou outras. Trata-se muitas vezes de eclectismos perfeitamente arbitrários, como, por exemplo, quando, na guerra jugoslava, alguns dos contendores eram definidos pela língua (os "kosovares"), outros através da religião (os "muçulmanos" bósnios) e outros, ainda, por padrões étnicos e culturais ("sérvios", "croatas"). Não tem importância, tão-pouco, se determinados grupos de pessoas são excluídos e expulsos com recurso a meios violentos (como na Bósnia ou no Ruanda), ou se, pelo contrário, a violência de que são alvo serve para manter o respectivo confinamento e sujeição a um determinado aparelho estatal (como no Kosovo ou nas províncias curdas da Turquia).

Todos os trajes ideológicos, se e quando, de algum modo, ainda são envergados, tornaram-se mais que transparentes e esfarrapados, já não passando as capas ideais e metafísicas de meros pretextos. O mesmo se diga também quanto ao recurso consciente a mundividências aparentemente pré-modernas. O chamado "fundamentalismo islâmico", por exemplo, pouco ou nada tem em comum com as culturas islâmicas reais do passado; constitui, pelo contrário, a manifestação típica de um "asselvajamento pós-moderno do patriarcado" (Scholz 2000).

Há muito que se tornaram fluidas as transições entre estruturas mafiosas, seitas, separatismos étnicos, bandos nazis, quadrilhas de salteadores, grupos de guerrilha, etc. E o fenótipo das chacinas é o mesmo em toda a parte: o "jovem" entre os 15 e os 35 anos de idade, degradado em termos morais e culturais e totalmente desprovido de vínculos, como executor da concorrência de crise – um verdadeiro "empresário individual", de telemóvel e ténis Reebok ou Adidas, trazendo, a tiracolo, de modo dengosamente descuidado, a fria pistola-metralhadora como acessório de moda e instrumento assassino, que se regala com o poder físico directo e com o medo da caça humana à sua disposição, porque nada mais lhe resta: "É uma ambiência de High Noon. Os homens envergam fardas extravagantes e variegadas, acompanhadas de chapéus cómicos e óculos escuros da moda. Conforme o respectivo estatuto, trazem pistolas-metralhadoras ou espingardas de assalto Kalashnikov" (Neue Zürcher Zeitung, 26.3.2001). Esta impressão de um "ambiente à faroeste", recolhida na zona-tampão do Sul da Sérvia, aplica-se a todas as regiões em conflito no one world em desagregação do capital. Talvez a maior parte da superfície terrestre já hoje se encontre realmente sujeita a um domínio deste tipo.

 

A economia de saque global

A loucura que ganha terreno nestas situações é apenas um desenvolvimento ulterior da loucura capitalista perfeitamente normal, sujeita às condições da crise mundial qualitativamente nova. É por isso, também, que este comportamento assassino não deixa de obedecer a uma certa racionalidade económica; só que esta regressa – a bem dizer, não se pode dizer "regressa", visto a passagem histórica pela forma capitalista ser evidentemente irreversível – da regulação e juridicização externas das relações capitalistas e de uma forma de consciência vinculada às mesmas, a relações de violência imediatas, no próprio espaço interior da sociedade. O que aqui está a despontar não são relações imediatas de violência integradas numa cultura, como acontecia nas sociedades agrárias pré-modernas, mas estruturas de violência "desintegradas", que resultam da decomposição da anticivilização do dinheiro, produtora de mercadorias.

É certo que a brutalidade imediata desta violência parece, à primeira vista, arcaica (por oposição à "barbárie civilizada" dos burocratas e criminosos capitalistas de gabinete, até à sua agudização extrema na máquina assassina nazi); no entanto, por detrás oculta-se uma consciência formada pela concorrência económica burguesa e pela individualização a ela associada, mas ao mesmo tempo caída fora das relações jurídicas burguesas.

A ratio económica do irracional que resulta desta "libertação" negativa é, desde logo, a racionalidade violenta de uma economia de saque que, em boa verdade, já constitui a forma predominante das relações capitalistas modernas nas grandes regiões de crise e desmoronamento do mundo. Evidentemente as vertigens sanguinárias, os massacres e as crueldades espontâneas das "guerras civis" proliferando já por todo o mundo (o próprio conceito de "guerra civil" se tornou frágil entretanto, podendo somente conferir uma vaga ideia do cenário real) já não obedecem a qualquer lógica económica. Mas a maior parte dos guerreiros de Deus ou dos bandidos étnicos têm vontade de auto-afirmação, formada por critérios capitalistas, suficiente para cobiçar o dinheiro e os bens associados ao consumo de massas moderno ou "pós-moderno"; ainda que, por outro lado, a referida auto-afirmação de certo modo já não o seja, uma vez que deixou de estar integrada no contexto funcional da reprodução capitalista.

É bom de ver que esta economia de saque deixou de corresponder ao modo de produção da economia empresarial, precisamente porque esta, localmente, ou se encontra em adiantado estado de decomposição, ou já se desmoronou por completo, ou saiu pela calada, e assim a concorrência já não pode concretizar-se na esfera de realização do mercado, mas apenas na esfera de realização da agressão armada. Os pressupostos assemelham-se tal e qual como os guerreiros da barbárie secundária: endividamento externo descontrolado e desaparecimento da identidade da economia nacional; empregados e funcionários públicos já apenas recebem salários esporadicamente, ou não os recebem de todo; abandono e liquidação de infra-estruturas (na medida em que ainda existem), desde a recolha do lixo até ao sistema de saúde; regresso de grandes partes da população a uma primitiva economia de subsistência, etc.

Trata-se de uma "geração perdida", de jovens tão cheios de energia como desorientados que reagem violentamente ao facto de se terem tornado "supérfluos" para o capitalismo, acabando por aderir às milícias desesperadas deste mundo. É óbvio que não se pode saquear o que não tenha sido produzido. Em alguns países, a oferta disponível é, por exemplo, o que resta de uma produção de matérias-primas legais e ilegais (drogas) para o mercado mundial. Deste modo, os talibãs afegãos, supostamente islamistas radicais, nos anos noventa do século XX tornaram-se os maiores traficantes de heroína do mundo, ultrapassando a máfia da droga colombiana.

Naturalmente que tais estruturas de economia de crime e de saque, já quase à escala de uma economia nacional, ultrapassam o potencial da energia destrutiva de jovens desempregados armados. Quem organiza e domina o sistema da economia de saque são "padrinhos". Por um lado, o crime organizado, nas regiões pouco concorrenciais e, por fim, desligadas do mercado mundial regular, já se torna um factor económico secundário decisivo muito antes do manifesto desmoronamento da economia nacional. São os cabecilhas mafiosos e os chefes dos bandos do negócio ilegal de drogas, mulheres e armas que, no contexto das convulsões sociais induzidas pela lei do mercado mundial, rapidamente se vêem promovidos a quase chefes militares, adquirindo um estatuto pseudopolítico, que se torna parte integrante da transição para a economia de saque (na velha terminologia marxista: de certo modo, a sua "superstrutura política"). Assim, por exemplo, o núcleo duro do chamado "exército bósnio", no início da guerra civil com os Sérvios, mais não era que a estrutura de comando da criminalidade local equipada com pistolas-metralhadoras.

Não raramente, no entanto, também se trata, desde logo, de vulgares homens de negócios, comerciantes, directores de fábricas, banqueiros, etc. (que em muitas regiões do mundo são mais ou menos os chefes de clãs patriarcais), para os quais, evidentemente, numa região em colapso, com a alteração do ramo de negócios se altera também o comportamento profissional. Podem, assim, compensar a sua falência no contexto da economia regular tornando-se padrinhos da economia de saque. Se ainda dispuserem de capital suficiente, abrem-se campos de investimento novos, enquanto os velhos do mercado regular se tornam inseguros ou desaparecem por completo.

Anteriormente já era fluida a transição da actividade comercial maior ou menor para a criminalidade, como o comprova o caso do sérvio Zeljoko Raznjatovic, entretanto baleado mortalmente em circunstâncias dúbias, que adquirira uma fama sinistra sob o nome de guerra de "Arkan": "Este [...] senhor da guerra começou por ganhar a vida como taberneiro em Belgrado. No entanto, o seu estabelecimento, situado nas imediações do estádio de futebol de Belgrado, sendo frequentado sobretudo pelas claques do Estrela Vermelha de Belgrado, não dava lucros de monta. Por conseguinte, Raznjatovic, para começar, mudou de métier e foi para o estrangeiro. Após alguns anos, procurado com ordem de captura por assaltos a bancos na Suécia, na República Federal da Alemanha, na Bélgica e na Holanda, e perante a pressão crescente da perseguição que lhe era movida pela Interpol, Raznjatovic retirou-se para a sua Jugoslávia natal, que na altura estava em plena desagregação. Ali soube aproveitar os velhos contactos de taberneiro e, com a ajuda dos antigos clientes habituais, montou a sua ‘Unidade de Tigres’" (Lohoff 1996, p. 165 s.).

É preciso não esquecer os padrinhos da diáspora: vindos da Europa Ocidental ou dos EUA, onde tinham conseguido juntar dinheiro como homens de negócios, regressam agora armados em benfeitores da economia em desmoronamento da sua terra natal, arvorando-se em "cooperantes" do desenvolvimento da economia de mercado. Se não conseguem aproveitar-se dos fundos provenientes, por exemplo, dos créditos do FMI e do Banco Mundial, através de negócios aparentemente normais, muitos deleitam-se com o papel de financiadores desta ou daquela milícia, ou então entram logo em cena eles próprios como generais de tempos livres.

Finalmente é preciso não esquecer os quadros do aparelho de Estado, quase reduzido à insignificância, que tanto mais facilmente assumem o papel de padrinhos da economia de saque, quanto mais já antes se tinham regalado com a corrupção, no âmbito dos processos socioeconómicos de crise que lentamente iam grassando: "Abandonado na desgraça pela sociedade ingrata, o aparelho de Estado à deriva, no entanto, não se limita a desaparecer sem deixar rasto. Se os funcionários públicos já não podem contar com um rendimento digno de registo através do erário fiscal, vêem-se obrigados a assegurar a sua subsistência a partir de outras fontes [...] Despedidos da relação simbiótica ideal com a sociedade, mas continuando providos de direitos de soberania e das possibilidades de imposição inerentes aos mesmos, partes do aparelho do Estado consideram natural passarem a dedicar-se ao saque da sociedade" (Lohoff 1996, p. 163). Esta decadência, aqui referida a partir de um estudo sobre a evolução da Jugoslávia, encontra-se por toda a parte na periferia arrasada pelo mercado mundial, derrubada pela concorrência e em colapso. Entre os saqueadores destacam-se, e não em último lugar, as forças armadas, policiais e de segurança oficiais, há muito indisciplinadas e embrutecidas. O passo de chefe administrativo ou policial para chefe de um bando não será, afinal, assim tão grande.

Os motivos de todos estes padrinhos, assim como os dos seus clientes e dos seus peões armados, são por demais transparentes; quaisquer justificações ideológicas, para eles, não valem um tostão furado. Entretanto até as instituições oficiais supranacionais têm de levar em conta uma interpretação vilmente económica dos "potenciais de perturbação" globais. Um estudo do Banco Mundial, do Verão de 2000, da autoria de Paul Collier, director de investigação do Departamento de Economia do Desenvolvimento, chega à seguinte conclusão: "Os conflitos internos armados por todo o mundo, contrariamente ao que habitualmente se pensa ou ao modo habitual de o público os encarar, raramente têm por base objectivos políticos ou disputas étnicas ou religiosas, mas sim motivações decididamente económicas [...] As motivações políticas [...] na maior parte dos casos são usadas apenas como fachada justificativa e para fins de relações públicas internacionais. Collier alega que as organizações rebeldes têm muitas vezes tantas ou tão poucas motivações ideológicas como a Máfia [...] Como maior factor de risco de conflitos internos armados, o relatório refere uma elevada dependência de exportações de matérias-primas. Diamantes, café e outras matérias-primas são fáceis de saquear, sendo utilizadas como fonte de financiamento por parte de organizações de guerrilha" (Neue Zürcher Zeitung, 17.6.2000).

O jornal suíço pioneiro do liberalismo económico acrescenta ingenuamente: "No caso das desordens na Jugoslávia, contudo, a tese de Collier deverá ter dificuldades em comprovar-se" (ibidem). Na realidade, porém, todos os "distúrbios" e "guerras civis" do início do século XXI constituem, sem qualquer excepção, momentos de uma economia de saque. A ocupação de campos diamantíferos, etc. em África (Angola, Congo) representa apenas um caso específico deste fenómeno global. A maioria dos bandos, milícias, senhores da guerra, príncipes regionais, etc. tem de se contentar com formas mais rudimentares de saque, como destacam todos os relatos vindos da Chechénia, da antiga Jugoslávia, do Afeganistão ou da Somália. Antes de mais, o produto do saque tende a ser procurado junto do adversário oficial, etnorreligioso ou outro, da respectiva guerra civil; não obstante, nenhum dos lados deixa de saquear também a "própria gente".

Em parte trata-se de circuitos secundários do mercado mundial, à semelhança do empresariado de miséria, que entretanto também já se pode observar nos centros, os quais, no entanto, não se finalizam com a troca de mãos das mercadorias (mercadorias ou serviços de miséria) e do dinheiro, mas com o disparo de uma pistola-metralhadora. É verdade que, para poder transformar-se em dinheiro ou mercadoria, o produto do saque tem de regressar ao mercado e, assim, a relações de troca; mas há sempre um lugar em que a troca de mercadorias e dinheiro é interrompida por uma relação de violência imediata.

No plano do dinheiro trata-se, na maior parte dos casos, de poupanças em divisas (dólares ou marcos alemães) trazidas por trabalhadores migrantes regressados da UE ou da América do Norte, ou enviadas por familiares que aí trabalham; no banco, porém, caso ainda exista, o dinheiro não se encontra em segurança, porque se "evapora", é congelado ou confiscado pelo Governo, tal como, para sua infelicidade, aconteceu aos trabalhadores migrantes jugoslavos, e não só. Assim as divisas foram parar ao pé de meia ou ao colchão dos nossos avós – tornando-se uma presa fácil para os apóstolos da Kalashnikov. No plano das mercadorias trata-se frequentemente de todo o tipo de bens provenientes da ajuda humanitária do Ocidente, destinada às regiões de crise e fome, e que se convertem em bens de saque que alimentam os circuitos secundários.

As regiões em derrocada também servem de placas giratórias para organizações mafiosas que operam à escala global. A Albânia ou o Montenegro, por exemplo, vivem em grande medida do contrabando de drogas, armas e prostitutas forçadas através do mar Adriático, em direcção à UE. No Kosovo, os "combatentes da liberdade" apanham raparigas menores em plena rua; e quando não está à disposição qualquer material de saque humano do grupo populacional "inimigo", também serve a carne da "própria etnia", como o demonstra um relato vindo do Kosovo "libertado": "Depois das 20 horas, a avenida principal de Pristina fica deserta. As mulheres e as raparigas mais jovens ficam em casa [...] Só em Pristina desapareceram, alegadamente, cerca de vinte mulheres albanesas. Ninguém conhece o número exacto [...] Serão as mulheres levadas para Itália e ali obrigadas à prostituição? [...] A violência há muito que deixou de ter por alvo apenas gente pertencente às minorias do Kosovo maioritariamente albanês" (Handelsblatt, 16.12.1999). No Afeganistão, membros de milícias até criaram bordéis com rapazes, cujos elencos eram arbitrariamente escolhidos entre a população. Não existe um bando ou milícia que na sua área não tenha exercido um reino de terror.

Por fim, a economia de saque reproduz-se simplesmente através do desmantelamento das ruínas económicas e do roubo de bens ainda existentes do passado. Assim refere uma notícia sobre a Chechénia: "Os cabos de alumínio não são a única coisa que dá dinheiro. Toda a infra-estrutura, de maquinarias industriais até canos de água, é desmantelada, também o ferro-velho pode ser vendido [...] São arrancadas e furtadas condutas, vedações, equipamentos e outros objectos metálicos [...]" (Avenarius 2000). No caso do saque individual, as vítimas são despojadas do dinheiro, do automóvel, do televisor, da máquina de lavar e de aparelhos electrónicos – por esta ordem. Grande parte dos bens roubados deste tipo volta a aparecer nos mercados de artigos em segunda mão legais e semilegais, que cobrem o continente de lés a lés (no Leste e Sudeste da Europa, das fronteiras ocidental e oriental da Polónia até Istambul).

No nível mais baixo da economia de saque já se trata apenas de alimentos e frutos da primitiva economia de subsistência. As hortas operárias do perímetro urbano de Moscovo são pilhadas do mesmo modo que os campos de hortaliças na Ásia. Uma reportagem sobre os abusos de polícias sérvios contra albaneses que vivem no Sul da Sérvia refere que os membros das forças paramilitares exigiram, de arma em riste, que lhes "fizessem o almoço".

Dos potentados de crise e senhores da guerra locais até estas baixezas do roubo directo de alimentos, formou-se todo um espectro de manifestações e concatenações da economia de saque global, que segue o processo de globalização de crise da economia empresarial do capital, como se de uma sombra se tratasse. De ambos os lados desvanecem-se os tradicionais motivos políticos e ideológicos, visto que a barbárie secundária pós-moderna, resultante da desagregação do moderno sistema produtor de mercadorias, não é menos parte integrante da "economia real" do que o capitalismo transnacional, que está a ultrapassar as suas próprias categorias.

O conceito de "economismo", aqui, está longe de designar um modo defeituoso ou insuficiente de reflexão teórica social, que porventura descure outras áreas da vida, complexos causais e contextos motivacionais – o que tem vindo a tornar-se um argumento barato, para todo o serviço, de ignorantes, tanto de esquerda como de direita e liberais, que apenas aspiram a poder continuar a pensar nas categorias em vigor, e, de tanta suposta multicausalidade e contingência, etc., já não querem perceber o núcleo duro do sistema com uma lógica destruidora do mundo. Pelo contrário, é precisamente esse núcleo duro que é animado por um economismo, não apenas subjectivo ou teórico, mas objectivo e prático, como sua essência estruturante; justamente um "economismo real" de critérios capitalistas intransigentes, que, na sua unidimensionalidade, afastou de si todas as outras "lógicas sectoriais" que usurpou sistematicamente e acabou por esmagar – e que se vai infiltrando em todos os contextos motivacionais a todos os níveis.

Sendo desde sempre uma característica essencial do modo de produção e de vida capitalista, de forma embrionária e latente, este "economismo real" foi-se afirmando, ao longo da história da ascensão e imposição do sistema mundial produtor de mercadorias, cada vez mais claramente, apenas amortecido e supostamente contrariado pelos processos de formação ideológica e política, aparentemente "exteriores à economia", que resultaram da decomposição e transformação dos modos de vida agrários, das lealdades tradicionais, de resquícios pré-modernos etc. No início do século XXI, nos limites do sistema, o reducionismo económico inerente à relação de capital torna-se visível, até na intimidade, de modo tão ofuscante como nunca antes; não só nas pequenas empresas de alta tecnologia da new economy e no seu modo de pensar elevado a modelo para o Ocidente (se é que aqui ainda se pode falar em "pensamento"), mas também e mais ainda nas estruturas e motivações da economia de saque global que, como reverso do capitalismo financeiro fora da realidade, representa, ela própria, uma new economy.

 

Sociedade do risco, coacção objectiva e relações de violência

À consciência burguesa comum talvez possa parecer que o economismo real do sistema produtor de mercadorias, o modo que lhe está associado de perseguir os "interesses" e o instinto de autopreservação específico que lhe é inerente se coadunam mal com as estruturas de violência e risco de uma economia de saque, porque afinal o "risco comercial", neste caso, inclui mesmo a possibilidade da própria eliminação física. Não deve ter sido essa a ideia do sociólogo alemão Ulrich Beck, quando nos anos 80 divulgou o seu fenomenologicamente redutor teorema de uma alegre "sociedade do risco".

Como o modo de produção capitalista representa um sistema de concorrência universal, obviamente implica também, por princípio, a lógica do "risco", e a ameaça de perda não se refere apenas a oscilações conjunturais ou pessoais dos rendimentos, mas sim à pura e simples existência social ou mesmo física. Para a maioria das pessoas que vivem sob o jugo capitalista, o "risco" sempre foi um risco de pobreza e de miséria. E a violenta "continuação da concorrência por outros meios" desde sempre tratou de apresentar periodicamente o imediato risco de morte como última instância.

A ideia do carácter no fundo pacífico dos "negócios", em nome do imperativo de valorização sistémico, nunca foi outra coisa senão uma mentira piedosa dos grandes e pequenos burgueses das zonas de bom tempo, dos que mais ganham, quando a besta da concorrência violenta está apenas adormecida, enquanto puder delegar o trabalho sangrento e sujo nas suas tropas especiais e nas suas criaturas violentas nas zonas menos felizes do planeta. É verdade que Ulrich Beck já há mais de quinze anos se via "sobre o vulcão da civilização" (Beck 1986, p. 23), mas, pelos vistos, da perspectiva de um lugar de camarote, ainda confortável, no seio da sociedade mundial.

Na realidade, a percepção superficial de um novo grau de desenvolvimento da relação de capital, em que os indivíduos abstractos e atomizados, desvinculados de "estruturas de classe" formadas social, cultural e políticamente, se vêem confrontados com um aparelho de risco social anónimo, tecnologicamente autonomizado (que na altura se manifestou na catástrofe nuclear de Chernóbil), não deixava sob alguns aspectos de corresponder à realidade. Mas como a reflexão de Beck se manteve circunscrita ao plano dos fenómenos, ele não retirou daí a consequência de uma crítica radical do capitalismo, renovada a um nível de abstracção superior, antes pelo contrário, esforçou-se por avistar, "para além de muitos riscos e perigos", carradas de "oportunidades" na sua maravilhosa "sociedade do risco", composta por indivíduos abstractos e não-solidários. Sob esta perspectiva, a modernização capitalista deveria prosseguir sob uma forma "reflexiva" e o potencial de risco manter-se controlável por acção de uma chamada subpolítica e política de cidadania, através de uma "capacidade de resistência dos cidadãos generalizada no sentido de cooperação e reacção activas" (Beck 1986, p. 371). Beck invocou deste modo "a configuração e percepção consciente das margens de manobra que a modernidade entretanto colocou ao nosso dispor" (ibidem, p. 372) e afirmou: "Já não há coacções objectivas, se não as deixarmos e fizermos prevalecer" (ibidem).

É impossível entender e interpretar o capitalismo em geral e o desenvolvimento contemporâneo do início do século XXI de modo mais profundamente errado. Beck, que desde essa altura se limitou a esmiuçar a sua fenomenologia das oportunidades de optimista profissional nos suplementos culturais da sociologia, não só limita a sua análise de um modo erróneo ao centro capitalista, recorrendo sobretudo ao exemplo da República Federal Alemã, pressupondo, contrariamente aos factos, a irreversibilidade dos sistemas de segurança do Estado social; e ele não se limita apenas a reduzir o conceito de risco sobretudo a potenciais de perigo tecnológicos. Pelo contrário, já pelo seu modo de raciocínio, passa ao lado da essência da relação de capital, ao representar as "coacções objectivas" no plano das manifestações acessíveis à negociação democrática, "sub-política" etc. e, assim, em princípio como superadas, quando na realidade se desenrolam num plano sem sujeito de processos sistémicos cegos, desde sempre pressupostos aos indivíduos e hoje tornados mais avassaladores que nunca.

O capitalismo é a impiedosa coacção objectiva da lógica objectivada da valorização e da concorrência, e nada mais. As falsas coacções objectivas apenas podem cessar de se impor se a sociedade, num movimento revolucionário, se emancipar da forma de reprodução capitalista, isto é, da coacção da "valorização do valor". O que já qualquer criança sabe, da sua própria amarga experiência, e que qualquer administrador das coacções objectivas do terror económico tem no seu repertório standard, como questão fatídica democrática da "capacidade de concorrência" e da "capacidade de financiamento", os que alardeiam uma "reinvenção da esfera política" (Beck) e os inspiradores académicos de um "novo centro" ou de um New Labour querem ignorá-lo à força, assobiando para o lado.

Beck pressupõe indivíduos capazes de decidir livremente, sem compreender (como todos os democratas) que a "coacção objectiva" já se encontra determinada na própria forma apriorística do sujeito do dinheiro e da concorrência. O seu conceito de crise é tão superficial como a sua análise ao circunscrever-se a coloridas manifestações "contingentes" e supostamente susceptíveis de resolução, uma a uma, enquanto a realidade da crise mundial, como autocontradição interna, atinge a própria forma burguesa do sujeito. No contexto do asselvajamento da concorrência de crise global a todos os níveis, também se asselvajam os sujeitos, cuja forma se desintegra, revelando em moldes novos o respectivo núcleo violento.

A violência, o sangue e o medo não se revelam como manifestações vindas do exterior, que vêm juntar-se ao reducionismo económico, mas como suas partes componentes e integrantes. No final do capitalismo, a economia de saque pós-moderna e as suas atrocidades apontam traiçoeiramente para os seus começos e para os seus crimes fundadores; é que, contrariamente às lendas dela legitimadoras, a moderna máquina de fazer dinheiro não nasceu de um pacífico ambiente de comércio e troca, mas, sim, da economia das armas de fogo dos primórdios da modernidade e dos seus despotismos militares. A constituição e imposição da modernidade foram gravadas com terror, massacres e coacção violenta, com pilhagens e trabalhos forçados, não externamente, mas no âmago, como fundamento primordial do trabalho assalariado "livre" e da individualização capitalista, que apenas interiorizaram a relação de coacção.

 

A lógica da dissociação e a crise da relação entre os sexos

A relação social de coacção nascida de tais crimes fundadores sempre constituiu, em simultâneo, uma correspondente relação entre os sexos: Uma vez mais ao arrepio de todas as lendas iluministas, a modernidade produtora de mercadorias não amenizou a opressão da mulher, e muito menos a ultrapassou como pretende, pelo contrário, agudizou-a numa sistemática "relação de dissociação" (Roswitha Scholz), o que se explica pelas suas origens da revolução militar moderna. No seu âmago, o capitalismo não é outra coisa senão a militarização da reprodução social; e não só pela referência externa às exigências económicas da produção de armas de fogo, que caracterizou os seus primórdios, mas também pela formação quase militar de todo o modo de produção, na forma dos "exércitos do trabalho", na forma da concorrência universal, como uma guerra económica permanente de todos contra todos, etc. Todos os momentos da reprodução e da vida que não se enquadram nestas formas são conotados com o "feminino", dissociados, tornados "não-oficiais", definidos como inferiores e excluídos. O sujeito da mercadoria é, portanto, "masculino" pela sua essência, e um sujeito de violência latente ou manifesta, mesmo que parcialmente inclua mulheres. E neste sentido a sociedade capitalista contém o momento da predisposição para a violência até nos poros do quotidiano.

Este âmago violento do capital, que manifestamente caracterizou a história da colonização externa e interna, manteve-se presente até aos dias de hoje e através de todas as formas do regime capitalista. Não é por acaso que as democracias ocidentais contemporâneas dispõem de um arsenal militar e de capacidades destrutivas sem qualquer precedente histórico, enquanto o aparelho capitalista da administração interna de seres humanos, também sem precedentes, está policialmente armado até aos dentes e preparado para reagir instantaneamente com violência a quaisquer "perturbações da ordem interna", ou mesmo a qualquer oposição aos processos de decisão capitalistas.

A relação de violência que obriga as pessoas a uma actividade heterodeterminada e em muitos aspectos irracional, mas que estas ao mesmo tempo já há muito carregam consigo e "são" elas mesmas, na sua forma de sujeito burguesa, até no momento "feminino" dissociado da reprodução, consolidou-se em formas económicas e jurídicas tácitas, mas na sua latência é também perceptível no dia-a-dia, através da violência masculina directa. Nos centros capitalistas apenas se tornou mais velada e (também quanto à relação entre os sexos) se mascarou com a típica caricatura democrática da participação que, em boa verdade, não é senão a coacção ao escárnio de si próprio, uma vez que as decisões reais estão desde sempre pré-programadas pelo cego andamento dos processos do mercado e da concorrência. Nas regiões em derrocada, o carácter violento latente do capitalismo revela-se abertamente, uma vez que já não pode ser camuflado e provisoriamente pacificado pelos meios jurídicos e pelo recurso a políticas sociais. A violência da economia e a economia da violência são apenas as duas faces da mesma moeda.

Mesmo nas formas pós-modernas mais rebuscadas, volta a afirmar-se imediatamente o carácter masculino, patriarcal e violento da economia, por muito domesticado que possa ter parecido aos ingénuos propagandistas pós-modernos da democracia de ambos os sexos. Ainda as (ex-)feministas do "novo centro" estavam a festejar a suposta nova igualdade dos sexos como sinónimo da igualdade capitalista de oportunidades e, em vez disso, já era visível precisamente o referido "asselvajamento do patriarcado" nas estruturas da economia global de saque.

Nas precárias economias secundárias à margem do mercado mundial, que também já começam a proliferar no próprio centro, e que, na periferia, estão estreitamente interligadas com a economia de saque, o carácter dissociador da relação moderna entre os sexos volta também a manifestar-se, onde aparentemente as mulheres se vão tornando cada vez mais socialmente "masculinas", e os homens cada vez mais socialmente "efeminados" pela depravação: "O resultado final desta dissociação não superada, em vias de decomposição e mudança de forma, é e continua a ser visto no essencial como uma preterição da mulher na oposição ao homem, nomeadamente também em época de crise [...] Assim, acontece que hoje as mulheres são responsáveis 'pelo dinheiro e pela (sobre)vida’. O facto de as mulheres agora assumirem funções que tradicionalmente eram reservadas aos homens não se aplica apenas aos ‘países do Terceiro Mundo’, em consequência nomeadamente de vagas migratórias, mas também aos países altamente industrializados. Por exemplo, na Alemanha, as mães solteiras vêem-se muitas vezes obrigadas a desempenhar os papéis de mãe e de pai ao mesmo tempo [...] Entretanto, por muito que o desgaste do patriarcado produtor de mercadorias seja visível, o androcentrismo continua a fazer estragos [...] como ‘fenómeno psicogenético de base’, mesmo em modelos comportamentais, estados emocionais e códigos modificados que vêm de par com uma situação económica alterada" (Scholz 2000, pp. 132s.).

Se, por exemplo, nas regiões em crise e derrocada, são as mulheres quem assegura quase a 100 por cento o funcionamento das diversas organizações de auto-ajuda (cf. Scholz, ibidem, p. 125), tal não é acompanhado de uma valorização "política", mas é apenas expressão da desvalorização e dissolução da política, situação em que a "feminilidade" dissociada tem de tirar as castanhas do lume. O mesmo se aplica à assunção de funções económicas e sociais "masculinas" por mães solteiras, tanto no centro como na periferia: Também neste sentido não existe uma valorização do "feminino" dissociado, mas, sim, uma desvalorização da reprodução socioeconómica no seu todo, a favor da violência masculina imediata. O homem já não é um pater famílias, mas tal situação, em vez de reverter a favor das mulheres, apenas se traduz na sua constituição num sujeito concorrencial monádico e perfeitamente desenraizado que, como sujeito da violência, leva à manifestação do limite absoluto da constituição social moderna. É quase exclusivamente masculino o elenco dos "exércitos" da economia de saque; "vadios" sem qualquer espécie de responsabilidade, frequentemente ainda meio crianças, que, através do cano de uma kalashnikov, reproduzem os códigos mais primordiais do patriarcado produtor de mercadorias, como se de um pesadelo absurdo se tratasse. A criança masculina armada como a derradeira figura de terror misógina da modernidade já é mais que uma ameaça anunciada.

Talvez em nenhum outro ponto a ideologia pós-moderna das "oportunidades" tenha sido tão cruelmente envergonhada como na relação entre os sexos. De facto, a tão invocada individualização no âmbito da "sociedade do risco" global apresenta-se bem diferente às mulheres e aos homens, a não ser que façam carreira no novo capitalismo financeiro e nas suas bizarras formas secundárias. O âmago do sujeito económico da modernidade mostra ser, afinal, um energúmeno masculino, tal como nos primórdios mais remotos dessa mesma forma de sujeito. O economismo real masculino pós-moderno responde à precária "feminização do emprego", ou até ao desmoronamento puro e simples da reprodução capitalista, de um modo anti-emancipatório, com crescente violência contra mulheres e crianças, com violações, assaltos e assassínios.

 

A frieza para com o próprio eu

Certamente que o economismo real de saque não deve ser entendido como contexto motivacional em falsa imediatidade. O que constitui o pano de fundo e a força motriz da economia de saque (masculina) é a motivação do dinheiro e da concorrência, que já não pode ser exercida senão com recurso à violência. Apesar disso, é necessária a "definição do inimigo" não imediatamente económica, mesmo que o conteúdo dessa definição seja aleatório, e a violência de modo nenhum se circunscreva à população definida como inimiga mais ou menos arbitrariamente. A ideologia, qualquer que seja a sua cor, asselvaja-se e abandalha-se do mesmo modo que a concorrência e a sua forma de sujeito, mas não desaparece.

Para mais, não existe apenas uma relação directa entre a proliferação da miséria e o poder dos bandos. A miséria produz o húmus social da violência, mas não se manifesta necessariamente, ela própria, como violenta, ou pelo menos não é a única a fazê-lo. As camadas verdadeiramente lazarentas na maior parte dos casos já nem são capazes de pegar numa arma. Já apenas servem de massa sacrificada ou ficam de todo reduzidas a um exangue estado vegetativo. As milícias recrutam-se, antes de mais, de entre uma juventude masculina que ficou sem perspectivas, proveniente do operariado industrial, que, até há pouco tempo, ainda podia ostentar uma certa fachada de normalidade, ou então da classe média. E há também um grande número de representantes da "juventude dourada", dos que, apesar da crise, ainda gozam de uma situação privilegiada, dos ricos e dos super-ricos, dos que retiram lucros da crise e da globalização.

Pois é, a miséria também assusta aqueles a cujas portas ainda não tocou, na medida em que representa uma ameaça para o próprio futuro. A miséria não produz necessariamente compaixão ou crítica social emancipatória, mas igualmente raiva aos miseráveis e uma degradação dos costumes, precisamente entre aqueles que ainda se encontram na mó de cima no seio da sociedade da miséria. Da "geração perdida" não fazem parte só os jovens desempregados de longa duração e "supérfluos", mas também os jovens não (ou ainda não) directamente afectados são marcados pelo clima de crise social e de asselvajamento em termos morais. Por conseguinte, a maioria das milícias e bandos nas regiões em crise e desmoronamento constitui uma estranha amálgama de desempregados barbarizados e representantes duma "juventude dourada" igualmente barbarizada (cujos pais, não raramente, fazem de padrinhos e subpadrinhos).

Quando a reprodução social já não funciona como um todo, quando a quantidade de pobreza, miséria e desespero ultrapassa um certo limiar, já não pode haver qualquer imaculada ilha de decência. O fluido do medo e do ódio atravessa sem qualquer esforço todas as cercas de alta segurança, por detrás das quais se entrincheirou a obscenidade da riqueza de crise. O acoplamento de minorias "de sucesso" à globalização, mesmo até nas regiões arruinadas, não constitui qualquer espaço social que possa manter-se mental e psiquicamente como extraterritorial. Ao fim e ao cabo, a sociedade é sempre indivisível. O negócio e a violência, que nunca andaram de costas completamente voltadas, começam a fundir-se – e esta fusão do núcleo da razão capitalista alastra num abrir e fechar de olhos às zonas do mundo onde reina a suposta normalidade e legalidade.

No contexto da crise mundial, a concorrência transforma-se em concorrência de aniquilação económica e, assim, em concorrência pela vida no seio da sociedade, e degenera na imediata concorrência da força "masculinista". Se o risco da própria morte violenta se torna o pão de cada dia, agora na área micro do mundo do dia-a-dia como outrora nas trincheiras das guerras mundiais, tal não contradiz necessariamente o "interesse egoísta" e as cobiças de consumo de mercadorias. O que aqui se revela é a literalmente assassina autocontradição do sujeito da concorrência, na medida em que a contradição interna da lógica capitalista – agudizada pela crise – se reproduz nos próprios indivíduos; e sobretudo nos masculinos, devido à sua socialização. O beco sem saída da forma capitalista dilacera as motivações, os pensamentos e os sentimentos em contradições antagónicas, inconciliáveis e impossíveis de viver. A sede de sucesso, de consumo, etc. sob esta forma é contrariada pela total aridez e esterilidade mental do imperativo económico, cujos conteúdos se apresentam cada vez mais disparatados e, ao mesmo tempo, cada vez mais destrutivos.

No clima sufocante destas contradições levadas ao rubro, a consciência concorrencial facilmente degenera num estado que aponta para além do conceito do mero "risco" ou "interesse": A indiferença perante todos os outros converte-se na indiferença para com o próprio eu. Os primeiros indícios desta nova qualidade da frieza social como "frieza para consigo próprio" já se manifestaram nas grandes crises recorrentes da primeira metade do século XX, mesmo que essas experiências tenham parecido transitórias. Hannah Arendt, no seu famoso livro As Origens do Totalitarismo constatou que o tempo entre as duas guerras mundiais se caracterizou por uma "atmosfera de decomposição generalizada", em que, a seu ver, teria nascido uma cultura da "perda de si próprio" (Arendt 1985/1951). E já nesses dias os principais afectados eram homens e, sobretudo, homens muito jovens.

Segundo Arendt, era muito mais que a mera perda da segurança profissional e material que fazia com que esses indivíduos estivessem no seu íntimo dispostos a sacrificar-se cegamente: "No entanto, mesmo esta amargura egocêntrica que, encarada sob o ponto de vista da psicologia individual, se tornou a imagem de marca de toda uma geração, não era algo que eles tivessem em comum, embora todas as diferenças individuais acabassem por se fundir num ressentimento generalizado; o egocentrismo não permitia que surgissem interesses comuns e, por isso, era muito frequentemente acompanhado de uma característica debilitação do instinto de autopreservação. A abnegação, não como bondade, mas como sensação de que a própria pessoa não tem importância, de que o próprio eu pode, a qualquer momento, ser substituído por outro, tornou-se um abrangente fenómeno de massas, bem capaz de levar o indivíduo a arriscar a própria vida, mas sem a mínima semelhança com o que se costuma entender por idealismo. Essa gente [...] já tinha perdido muito mais que a cadeia da miséria e da exploração quando o interesse por si própria lhe foi extorquido [...] Perante esta negação do mundo, os monges cristãos podiam considerar-se apegados ao mundo, quase que transbordando de interesse por assuntos terrenos. Desde o início do século XIX, muitos historiadores e homens de Estado importantes vaticinaram a chegada de uma época de massas [...] Todas essas profecias se realizaram agora de facto, mas, como costuma acontecer com as profecias na maior parte dos casos, de um modo que afinal não fora previsto pelos profetas. O que eles não previram ou, mesmo prevendo, não avaliaram acertadamente no que diz respeito às suas consequências verdadeiras, foi este fenómeno de uma perda radical de si mesmo, essa indiferença cínica ou aborrecida com que as massas encararam a sua própria morte ou outras catástrofes pessoais, e a sua surpreendente predisposição para aderir às ideias mais abstractas, essa obsessão por organizar a sua vida segundo conceitos destituídos de qualquer sentido, se isso lhes permitisse fugir ao quotidiano e ao bom senso, que acima de tudo desprezavam [...] A falta de uma verdadeira capacidade de discernimento anda aqui de mãos dadas com a estranha abnegação moderna, e ambas encontram uma correspondência por demais óbvia na atracção das massas por um mundo fictício..." (Arendt 1986/1951, pp. 510s., 539).

Tal como acontece em relação a numerosos outros momentos da sua análise do totalitarismo, Hannah Arendt não repara que aqui descreve muito mais que um determinado desenvolvimento histórico do totalitarismo político após a Primeira Guerra Mundial, a "catástrofe primordial" burguesa do século XX. O momento totalitário residiu no interior do moderno sistema produtor de mercadorias desde o início; constitui o seu âmago, que é um âmago violento: a submissão total do homem em carne e osso, de corpo e alma, com armas e bagagens, ao abstracto princípio da valorização do capital, em si absolutamente sem conteúdo, e do qual o Estado moderno (o princípio da soberania) é uma mera expressão secundária. Porque os imperativos desta lógica irracional transformaram a sociedade num deserto natural secundário da luta pela sobrevivência, a auto-afirmação abstracta dos indivíduos apenas aparentemente se constituiu como princípio supremo dos indivíduos (na sua forma moderna, como sujeitos estruturalmente "masculinos"). Pelo contrário, por trás espreita a não menos abstracta abnegação de si próprio; melhor dizendo: a auto-afirmação e a abnegação, na sua total separação de qualquer comunhão social, são no fundo idênticas, e esta identidade também se manifesta em termos práticos nas grandes catástrofes sociais do capitalismo.

Elementos disso mesmo já se encontram nos primórdios da história da subjectividade moderna burguesa e masculina, no início da chamada modernidade, nos bandos de saqueadores da Guerra dos Trinta Anos e nos protagonistas dessas inúmeras guerras civis que formaram o sistema social moderno. A abnegação e a perda de si mesmas das massas na época de transição do totalitarismo político manifestou, a um alto nível de desenvolvimento, o mesmo âmago da subjectividade moderna que se revelou na segunda metade do século XX, nesse economismo real do sistema mundial em vias de se tornar aquilo que sempre foi, isto é, o totalitarismo económico.

Tal como todas as qualidades gerais do totalitarismo, que Hannah Arendt referiu como supostamente limitadas (segundo o seu entendimento) à forma política de imposição ou de disfarce do regime totalitário, podem ser reencontradas sob uma forma muito mais apurada no totalitarismo económico da relação do capital que se globaliza, o mesmo se aplica também, e não em último lugar, a essa cultura da abnegação, da perdição e do esquecimento de si mesmo, a essa perda total da capacidade de discernimento. Esta perda total de si mesmos dos indivíduos abstractos, implícita no imperativo económico total, expande-se no final do século XX, no seio da nova crise mundial no limite interno absoluto da relação de capital, com uma veemência e amplitude nunca antes vistas. O que no passado era apenas um estado temporário torna-se o estado normal e permanente; o próprio quotidiano "civil" se torna no estado de total perda de si mesmos dos seres humanos.

Que pessoas terão sido mais drásticamente "espoliadas do interesse por si mesmas", e mais constrangidas a sentir que "a pessoa em si não tem importância" e que todos os indivíduos podem ser substituídos a qualquer momento por indiferentes máscaras de carácter do movimento global de valorização, do que as massas "supérfluas" da terceira revolução industrial, como máscaras de carácter económicas do capital financeiro globalizado? E isso novamente atinge, em primeiro lugar, a imagem própria masculina, mesmo que este estado de perdição, em determinadas áreas da economia, não atinja menos as mulheres empíricas. Trata-se de uma perda de si que caracteriza os bandos de arruaceiros, saqueadores e violadores, do mesmo modo que os exploradores de si mesmos da new economy, ou os trabalhadores em frente ao monitor do investment banking.

 

A economia da autodestruição: A globalização e a "incapacidade de exploração" do capital

Hans Magnus Enzensberger tentou, de acordo com o pensamento de Hannah Arendt, descrever o denominador comum da abnegação que caracteriza as guerras civis da nova época de crise, tanto as generalizadas a todo um território como as "moleculares": "O que salta à vista repetidamente é, por um lado, o carácter autista dos autores de actos de violência e, por outro, a sua incapacidade de distinguir entre destruição e autodestruição. Nas guerras civis contemporâneas, desapareceu qualquer espécie de legitimação [...] A única conclusão possível é que a automutilação colectiva não constitui um efeito colateral aceite como inevitável, mas, sim, o objectivo propriamente dito. Os combatentes sabem muito bem que apenas podem perder, que não há vitória possível. Fazem o que podem para agravar ao máximo a sua situação. Não querem transformar em ‘escumalha’ apenas os outros, querem também fazer o mesmo a si próprios. Um funcionário da segurança social diz sobre as banlieues de Paris: ‘Já destruíram tudo, as caixas do correio, as portas, as escadarias. Vandalizaram e saquearam a policlínica, onde os seus irmãos mais novos recebiam tratamento gratuito. Não reconhecem qualquer espécie de regras. Reduzem a escombros consultórios de médicos e dentistas e destroem as próprias escolas. Se lhes fizerem um campo de futebol, eles cortam as traves às balizas’. As imagens das guerras civis, tanto moleculares como macroscópicas, assemelham-se umas às outras até ao mais ínfimo pormenor. Uma testemunha ocular relata o que viu em Mogadíscio. A pessoa em questão pôde assistir à destruição de um hospital por um grupo de homens armados. Não se tratava de uma acção militar. Ninguém ameaçava os homens; não se ouviam tiros na cidade. O hospital já estava gravemente danificado e equipado apenas com os apetrechos essenciais. Os arruaceiros procederam com uma violência meticulosa. Rasgaram os colchões às camas, partiram frascos com plasma sanguíneo e medicamentos; em seguida, os homens armados, nos seus camuflados imundos, atiraram-se aos poucos aparelhos existentes. Apenas se deram por satisfeitos depois de terem inutilizado o único aparelho de raios X, o esterilizador e a máquina do oxigénio. Qualquer desses zombies sabia que o fim dos confrontos não estava à vista; todos sabiam que as suas vidas continuavam a depender da existência de um médico que os tratasse, mas, pelos vistos, eles desejavam era mesmo a aniquilação da menor hipótese de sobrevivência. Tal poderia ser designado por reductio ad insanitatem [redução à insanidade]. No amoque colectivo, a categoria futuro desapareceu. Já só existe o presente. As consequências deixaram de existir. O elemento regulador da autoconservação foi desactivado" (Enzensberger 1993, p. 20, 31 ss.).

A descrição está certa, os factos são analisados com argúcia, e nem sequer falta a chamada de atenção para a caracterização sexual dos criminosos. Mas, tal como acontece, embora diferentemente, em Hannah Arendt, também Enzensberger não vai ao fundo do problema. É evidente o esforço para delimitar de algum modo a fenomenologia do horror da perda de si mesmo e da autodestruição como algo de estranho e exterior, para, assim, a excluir do próprio mundo do dia-a-dia, para não ter nada a ver pessoalmente com o assunto. Mesmo assim, Enzensberger não deixa de referir (ainda que o faça, antes de mais, como se de algo de acessório se tratasse) a conexão social exterior entre a globalização capitalista, as novas guerras civis e os protagonistas dos desacatos: "Sem dúvida que o mercado mundial, desde que deixou de ser uma visão de futuro para se tornar uma realidade global, produz cada ano que passa menos vencedores e mais perdedores, e não só no Segundo e no Terceiro Mundo, mas também nos países centrais do capitalismo. Se por lá países, e até continentes inteiros, acabam por se ver excluídos das relações de troca internacionais, aqui são partes crescentes da população que deixam de ser capazes de participar na competição das qualificações, que se agrava a olhos vistos" (Enzensberger, ibidem, p. 39).

É certo que este realismo dos factos, à primeira vista, distingue-se agradavelmente do falso optimismo profissional da retórica oficial das "oportunidades", representada pela economia política académica ou pelos spin doctors do New Labour e do "novo centro". Mas Enzensberger vira o reconhecimento dos factos negativos num volte-face afirmativo; o potencial socialmente destrutivo da globalização capitalista converte-se milagrosamente numa miserável apologética do Ocidente: "As consequências políticas previstas pelos teóricos marxistas, no entanto, não se verificaram. Comprova-se, assim, a falsidade das suas teses. A luta de classes internacional não se verifica [...] Os derrotados, longe de se unirem sob um estandarte comum, trabalham para a sua autodestruição, e o capital retira-se, sempre que pode, dos cenários de guerra. Neste sentido é necessário pôr um travão à arreigada convicção de que as relações de exploração podem ser reduzidas a um mero problema de distribuição, como se se tratasse da divisão justa ou injusta de um determinado bolo [...] Recorre-se (a este lugar-comum) afirmando-se, sobretudo que ‘nós’ vivemos à custa do Terceiro Mundo; supostamente, somos ricos, porque nós, isto é, os países industrializados, os exploramos. Quem bate no peito desta maneira deve ter uma relação perturbada com os factos. Basta referir um único indicador: a quota-parte de África nas exportações mundiais é de, aproximadamente, 1,3 por cento, a da América Latina anda à volta dos 4,3 por cento. Economistas que se ocuparam da questão acham que se as regiões mais pobres desaparecessem do mapa, a população dos países mais ricos nem sequer disso se aperceberia [...] As teorias que explicam a pobreza dos pobres baseadas apenas em factores externos, não só dão alimento barato à indignação moral, como ainda têm outra vantagem: ilibam os governantes do mundo pobre, imputando ao Ocidente a responsabilidade exclusiva pela miséria [...] Dos africanos que já se aperceberam deste truque ouvimos, entretanto, que só existe uma coisa pior que ser explorado pelas multinacionais, a saber, não ser explorado por elas [...]" (Enzensberger, ibidem, pp. 40s.).

Enzensberger tenta fugir à questão, projectando a problemática do novo capitalismo de crise universal, do limite interno absoluto do modo de produção e de vida capitalista tornado planetário, sobre a passada linha ascendente do capitalismo, sobre a história da sua imposição com as suas lutas internas. O conflito central neste sentido foi de facto a chamada luta de classes que, no entanto, pela sua essência e natureza, não foi outra coisa senão a "luta pelo reconhecimento" do trabalho assalariado nas formas jurídicas e políticas do capital (incluindo a relação capitalista entre os sexos) e, em segundo lugar, a luta económica pela distribuição de "quotas-partes", no interior do movimento de valorização do capital.

Em ambos os casos tratava-se de lutas de sujeitos constituídos à maneira capitalista, no interior das formas do sistema produtor de mercadorias, que não eram minimamente postas em causa. Por outras palavras: tratava-se de uma confrontação social "imanente" que, precisamente graças ao contínuo movimento de ascensão e expansão da forma capitalista, pôde desenvolver-se na "jaula de ferro" (Max Weber) dessa forma, sem ir para além dela; ou seja, não era precisamente (ainda) uma "imanência" que, devido à própria dinâmica de crise interna do sistema mundial, tivesse sido empurrada para além dos limites do mesmo, e obrigada a rebentar essa tal "jaula de ferro" da forma (e, com isso, da própria forma do sujeito).

O facto de a "luta de classes", que se mantém no âmbito da imanência, já não poder ocorrer no novo terreno de crise torna-se, para Enzensberger, o argumento para passar ao lado do problema da forma das relações sociais e da forma do sujeito, em vez de aí reconhecer o limite, a crise e a insustentabilidade dessa mesma forma. Pois porque já não pode a "luta de classes" ocorrer no interior das categorias burguesas, porque é que em especial os derrotados masculinos (e não apenas os derrotados notórios!) já trabalham apenas na sua autodestruição? Precisamente porque já não ocorre nenhum desenvolvimento sustentável no interior das formas categoriais da modernidade produtora de mercadorias, porque já não se pode ter uma perspectiva civilizatória, ainda que ilusória. Mas o que significa, afinal, o facto de partes cada vez maiores da população mundial já não serem sequer exploradas, tornando-se "supérfluas", e de continentes inteiros desaparecerem quase de todo do mapa da economia do capital? Não será outra coisa senão que a forma capitalista, a forma social da modernidade, ou seja, o próprio sistema produtor de mercadorias torna-se incapaz de se reproduzir para a maioria global (e em última instância para todos); impondo-se a crítica e a suplantação da jaula da forma em que a defunta "luta de classes" ainda se podia mover.

Enzensberger, porém, faz do facto de as pessoas "já nem sequer serem exploradas" um argumento absurdo a favor do capitalismo, ou do centro ocidental do capitalismo. O facto de já não se tratar realmente de um mero problema de distribuição no interior da forma da riqueza produzida no capitalismo torna-se para ele a justificação dessa forma, o que evidentemente não quer dizer outra coisa senão que ele a encara como uma condição ontológica incontornável da existência humana em geral, em vez de uma formação histórica limitada no tempo. No entanto, a pobreza dos pobres apenas não pode ser reduzida a "factores externos" (esse foi o paradigma erróneo e redutor dos movimentos de libertação nacional meramente anticoloniais do passado) na medida em que o capitalismo se transformou, de uma relação colonial entre o centro e a periferia, num sistema mundial imediato negativamente universal, que deixou de ter um "exterior".

Nas condições da terceira revolução industrial, que tornou esta imediatidade do mercado mundial uma realidade, as forças produtivas e os meios de produção da maior parte do mundo são paralisados por falta de rentabilidade em termos de economia empresarial, mas sem que as pessoas sejam dispensadas também da forma capitalista (que há muito constitui também a sua forma interior de sujeito), sendo que essa forma de sujeito também sempre sofre a carga da moderna relação entre os sexos, ou seja, é sexualmente modificada.

Onde não são pura e simplesmente dispensados, os meios de produção (não em último lugar, as terras agrícolas férteis) sofrem uma reorientação forçada para o mercado mundial universal, o que significa, por exemplo, no âmbito do agribusiness, a produção pouco exigente em termos de mão-de-obra de produtos de alta tecnologia, de bens de luxo como ramos de flores ou alimentos seleccionados para os centros ocidentais, sendo a população local expulsa das suas terras e privada dos seus recursos vitais, que não (ou já não) podem ser representados na forma do valor económico, sem poder ser integrada na produção para o mercado mundial no novo patamar das forças produtivas, nem sequer de modo meramente repressivo como "mão-de-obra".

É um facto que os fluxos de mercadorias e de dinheiro, em que se representam a produção agrária marginalizada ou situações pontuais de aproveitamento assalariado barato, são de uma dimensão negligenciavelmente reduzida face à totalidade do produto global e, em especial, face ao volume do capital financeiro vazio de conteúdo; mas é precisamente nesta dimensão relativamente microscópica da criação de riqueza "válida" a nível mundial que desaparece a vida de enormes massas populacionais de "supérfluos". A riqueza (ela própria apenas abstracta e destrutiva) dos países centrais do Ocidente não depende da massa de ramos de flores baratos, provenientes da Colômbia ou da África Central, que são levados por via aérea para as metrópoles; mas é por essa meia dúzia de ramos de flores que populações inteiras são sacrificadas socialmente, precisamente porque a existência no âmbito do mercado mundial está ferreamente estabelecida como a única forma de existência possível.

A argumentação de Enzensberger é transparentemente apologética, e não deverá haver quem o saiba fazer melhor que ele. Pelos vistos, ele opta por converter em cinismo uma impotência sem perspectivas. Da problemática historicamente concreta, ele escuda-se assim em supostas inevitabilidades antropológicas, num existencialismo e num nilismo a-históricos: "Nesta situação, velhas questões antropológicas colocam-se de uma forma nova" (ibidem, p. 11). No seguimento disto, a propósito da forma qualitativamente nova de aniquilação de indefesos, o discurso torna-se desgraçadamente autista e fala de uma "acumulação de energia da juventude, induzida pelos níveis de testosterona" (ibidem, p. 22). Deste modo, a relação entre a forma moderna do sujeito e a relação moderna entre os sexos, no limite da crise global, não é criticamente tematizada, mas ideologicamente antropologizada, para não ter de se enfrentar essa mesma crise. Como "verdadeiros culpados" perfilam-se então os bárbaros "governantes do mundo pobre" (ibidem, p. 41) etc. O Ocidente, o centro da forma universal da relação de capital que destrói o mundo, deve declarar-se não responsável pelo seu próprio sistema mundial, não devendo o público ocidental ser mais incomodado com as "motivações incompreensíveis" (ibidem, p. 78) das loucas facções assassinas desta ou daquela região exótica.

O eurocentrismo positivo da competência universal ocidental em nome do universalismo abstracto, que era sinónimo da possibilidade de exploração capitalista do mundo, converte-se em Enzensberger num eurocentrismo negativo da ignorância, que se esforça por exteriorizar e recalcar as catástrofes no interior do sistema mundial, precisamente porque este mundo se torna inexplorável com os meios capitalistas. O adeus às "fantasias de omnipotência moral" (ibidem, p. 86) converte-se assim na velha sabedoria anquilosada de uma política de campanário: "No entanto, toda a gente sabe que, antes de mais nada, tem de se ocupar dos seus filhos, dos seus vizinhos, de tudo o que imediatamente o rodeia" (ibidem, p. 87). Tal constitui apenas a versão invertida da política ocidental de intervenção militar, mas não uma crítica das relações a ela subjacentes. Assim, Enzensberger pôde ser acusado por um filósofo intervencionista como André Glucksmann de "fugir à responsabilidade", consistindo a "responsabilidade", para Glucksmann, em bombardear as zonas de crise incontroláveis.

De um modo ou de outro, não parece estar na ordem do dia uma crítica alargada, que vise a forma do sistema moderno e da sua subjectividade, mas, como Enzensberger pensa, a "triagem", a selecção de emergência como "posição forçada" (ibidem, 88 s.), sujeita às condições existenciais ontológicas inalteráveis do sistema produtor de mercadorias. "O que deverá ser de Angola terá de ser decidido, em primeira linha, pelos Angolanos" (ibidem, p. 90) – como se a globalização não tornasse os bandos assassinos angolanos "vizinhos" tão imediatos como os bandos assassinos juvenis alemães em "Hoyerswerda e Rostock, Mölln e Solingen" (ibidem, p. 90). O "interior" universal não se deixa externalizar e particularizar.

 

A metafísica da modernidade e a pulsão de morte do sujeito sem fronteiras

Põe-se evidentemente a questão de como pode Enzensberger cair de uma análise que não deixa de ser lúcida numa ignorância assim propositada e numa coexistência pacífica com a não resolução de "situações forçadas". Afinal, a alternativa à intervenção militar ocidental contra os processos de barbarização, induzidos pela própria relação de capital global, não é a retirada, sem perspectivas, para a suposta competência de resolução no próprio quintal, mas justamente o alargamento da crítica social, que já só pode ser formulada no contexto global, às formas tornadas insustentáveis do moderno sistema produtor de mercadorias e da sua subjectividade (estruturalmente "masculina"). O paradigma da luta de classes, imanente à forma, deverá ser substituído pelo paradigma de uma crítica do contexto formal comum, transversal às classes, de uma moderna socialidade negativa, baseada na monetarização e na concorrência anónimas, assim como na relação de dissociação sexual.

Qual é então a origem da relutância, e não só de Enzensberger, em adoptar essa crítica da forma? A razão deverá estar no facto de tal crítica de maior alcance e categorial da modernidade ter de abandonar todo o terreno conhecido. Toda a crítica social anterior, e não só a do movimento operário em sentido mais estrito, no âmbito do movimento de ascensão e expansão do capitalismo, referia-se positivamente ao sistema de ideias do iluminismo burguês do século XVIII e, portanto, à constituição do sujeito burguês. Este sujeito, desde sempre pensado como primariamente masculino, era suposto actuar de modo emancipatório precisamente por via da sua forma, fosse qual fosse a capa ideológica. Não só a chamada nova esquerda herdou este mundo imaginário do velho movimento operário, como também, e em especial, a inteligentsia alemã do pós-guerra o invocou, contra a fatalidade da história alemã. Iluminismo, sujeito, política, democracia: foi isso que foram Marx e os profetas.

Tanto mais custa hoje chegar à conclusão de que a história alemã e o nacional-socialismo foram parte integrante da história do capitalismo mundial, que no interior dessa forma já não existe qualquer alternativa que possa ser conotada positivamente, e que o que está no centro da miséria mundial da actualidade é a própria forma do sujeito burguês moderno, que se tornou absolutamente disfuncional e sem solução possível. Agora, nos limites do iluminismo burguês e da reprodução na forma de mercadoria, a metafísica real da modernidade revela-se na sua maneira mais repugnante. Depois de o sujeito burguês esclarecido se ter despojado das suas vestes, torna-se evidente que sob essas vestes não se oculta NADA: que o âmago desse sujeito é um vazio; que se trata de uma forma "em si", sem qualquer conteúdo. O que Enzensberger quer tornar exótico é a sua própria essência social, como sujeito do iluminismo burguês (e evidentemente masculino). Quando pensa estar a descrever o exotismo do "incompreensível", retrata a metafísica da própria modernidade ocidental: "O que confere à guerra civil da actualidade uma nova e assombrosa qualidade é o facto de ser conduzida sem qualquer empenho, de literalmente não se tratar de nada" (ibidem, p. 35). Mas precisamente este horror não é o alheio, o exterior, pelo contrário, o que nele vem à luz é apenas o mais íntimo eu do sujeito da mercadoria, do dinheiro e da concorrência, a essência do cidadão democrático. O nada de que se trata é o vazio absoluto do "sujeito automático" (Marx) da modernidade, que se autovaloriza.

É que a forma do valor que se exprime no dinheiro, que, como abstracção real metafísica objectivada, domina a existência moderna como um deus secularizado e reificado, e da qual a metafísica da cidadania democrática mais não é do que o reverso, não tem "em si" qualquer conteúdo sensível ou social; está neste mundo como força negativa, mas não é deste mundo. É o vazio metafísico o que se oculta por detrás das lutas de interesses aparentemente tão racionais e da aparente vontade de auto-afirmação dos indivíduos abstractos. Gente como Beck e Enzensberger prefere não tomar nota desta cabeça de Górgona do vazio desligado do mundo no centro da modernidade. Mas é precisamente esta monstruosidade metafísica que surge saída detrás da máscara do alegremente individualizado "gestor de si mesmo" da pós-modernidade.

Num clima mundial de concorrência de aniquilação mútua, de ameaça permanente da existência social e, ao mesmo tempo, duma precária riqueza monetária especulativa que a qualquer momento se pode dissolver no ar, viceja uma vontade de aniquilação difusa, que actua para além de "situações de risco" externas, e que é tão abstracta e vazia de conteúdo como a forma social que constitui a base do processo de valorização do capital. A forma "valor" e, assim sendo, a forma "sujeito" (dinheiro e Estado) pela sua essência metafísica é em si auto-suficiente e, ainda assim, tem de se "exteriorizar" no mundo real; mas fá-lo apenas para invariavelmente regressar a si própria. Esta expressão metafísica do movimento de valorização aparentemente banal (e, sob o aspecto sensível e social, de facto horrivelmente banal) constitui o verdadeiro tema de toda a filosofia do Iluminismo, o que é muito nítido em Kant e em especial em Hegel, que retratou exacta e afirmativamente a forma dialéctica do movimento deste "processo de exteriorização" de um vazio metafísico no mundo real.

Nesta auto-suficiência, todavia com necessário movimento de exteriorização, e, em última instância, auto-referencialidade da vazia forma metafísica chamada "valor" e "sujeito", está ancorado um potencial de destruição do mundo, uma vez que a contradição entre o vazio metafísico e a "obrigatoriedade da representação" do valor no mundo sensível só pode ser resolvida no nada e, portanto, na aniquilação. O vazio de conteúdo do valor, do dinheiro e do Estado tem de se exteriorizar em todas as coisas deste mundo sem excepção, para poder representar-se como real: da escova de dentes até à mais subtil emoção, do objecto utilitário mais simples à reflexão filosófica ou à transformação de paisagens e continentes inteiros. Vida e morte, toda a existência humana e toda a existência da natureza servem unicamente esta capacidade de auto-representação, à maneira de Proteu, do vazio social metafísico de capital e Estado.

Neste interminável movimento de fim em si metafísico (as finalidades dos desejos dos indivíduos em concorrência estão incluídas neste processo hierarquicamente superior de auto-reflexão do "sujeito automático"), as coisas deste mundo e o desejar dos indivíduos não são reconhecidos pela sua qualidade intrínseca, antes pelo contrário, esta é-lhes retirada, para os transformar em meras "gelatinas" (Marx) do vazio metafísico, assim os assimilando à forma do valor sempre igual a si própria (sob uma perspectiva superficial: "economificá-los", ou seja, torná-los o mero e indiferente material do movimento de valorização).

Tal dá origem a um duplo potencial destrutivo: um "comum", por assim dizer quotidiano, tal como sempre resulta do processo de reprodução do capital, e outro por assim dizer final, quando o "processo de exteriorização" esbarra nos limites absolutos. A metafísica real do moderno sistema produtor de mercadorias destrói o mundo parcialmente, como "efeito colateral" da sua exteriorização "bem sucedida"; e torna-se uma vontade absoluta de destruir o mundo, mal deixa de conseguir retratar-se a si própria nas coisas do mundo. Poder-se-ia falar, assim, de uma pulsão de morte da humanidade moderna constituída à maneira capitalista, que também tem uma origem sexualmente especificada. No centro da filosofia do Iluminismo está a respectiva expressão ideal, a adoração da abstracção vazia de "uma forma enquanto tal" (Kant).

Esta lógica de aniquilação pode manifestar-se de modo banal no andamento perfeitamente normal dos negócios, por exemplo, na destruição das condições naturais da vida pela externalização de "custos" da economia empresarial, no abastecimento deficiente de grupos populacionais inteiros em alimentos e ajuda médica por falta de "capacidade de financiamento", na desnecessária morte em massa de lactentes e crianças pequenas nas regiões globais da pobreza, etc.

Mas a mesma lógica de aniquilação também pode manifestar-se imediatamente como explosão de violência e, nesse acto, provocar essa dissolução da consciência de si, que pôde ser observada não só nas frentes de batalha das guerras capitalistas, mas também nos grandes surtos de crise do século XX. Hoje esse desfazer do eu parece tornar-se o princípio que preside ao mundo. A vontade de aniquilação final do sujeito metafisicamente constituído dirige-se por fim contra esse próprio sujeito, na medida em que ele é deste mundo, ou seja, sensivelmente existente. E não é de modo algum por acaso que, nesta orgia da autodestruição, a essência "masculina" de tal sujeito volta a irromper bem obviamente à superfície.

Naturalmente que não é o vazio metafísico real do valor, da forma social do movimento do capital, que actua imediatamente "no" sujeito, mas esta actuação de crise, esta transição para a violência sem limites ocorre através da transmissão de formas de socialização e de mecanismos psíquicos. Neste contexto, precisamente a tão festejada individualização pós-moderna que, em boa verdade, é apenas a forma mais exacerbada da subjectividade abstracta (separada) do ser humano constituído de maneira capitalista, até ao grau do abandono total, revela-se como a forma de transição para a absoluta perda do eu, em que os mecanismos psíquicos da pulsão de morte se desenvolvem até à manifestação imediata, como o sociólogo e psicólogo prisional Götz Eisenberg descreve de modo eloquente: "Os conflitos sociais são reprivatizados e vão-se adensando num espaço anímico interior, que é inadequado à absorção de tais energias. Ele é demasiado estreito. A infelicidade encarcerada não pode parar, procura uma saída [...] Por detrás das imagens de humilhações sofridas actualmente emergem imagens do passado da própria vida, obtidas na infância, mas só agora reveladas. Funcionando como amplificador, experiências de ofensas e rejeições muito antigas juntam-se às humilhações actuais e apenas assim conferem a estas o seu peso [...] A energia emocional recolhida no interior difunde-se, recompõe-se noutro lugar, desloca-se e forma novas ligas [...] O mundo interior transforma-se num caleidoscópio de fragmentos que se entrecruzam, criando imagens cada vez mais grotescas e assustadoras. Parcelas psicóticas da personalidade, que todos transportamos dentro de nós enquanto seres apenas ‘parcialmente socializados’ (Mitscherlich), passam para primeiro plano, ganhando assim uma espécie de hegemonia psíquica. Vai-se adensando um ódio arcaico a objectos que nos perseguem dentro e fora de nós, a percepção vai-se turvando, o mundo vai escurecendo até que, por fim, tudo se torna um objecto ‘maléfico e persecutório’. Agora, a calma e o domínio de si próprio já só funcionam com muito esforço; estão a chocar algo. Fantasias paranóicas começam a preencher a totalidade do campo visual interior. Agora já só falta um último impulso e a mecânica da desgraça entra em acção" (Eisenberg 2002, p. 24 s.).

A abstracção desta vontade de aniquilação reflecte a dupla autocontradição da relação de capital: Por um lado, ela visa a aniquilação dos "outros", aparentemente com a finalidade da autopreservação a qualquer preço, por outro lado, é também uma vontade de auto-aniquilação, que executa a falta de sentido da própria existência na economia de mercado. Por outras palavras: a fronteira entre o assassínio e o suicídio vai-se esbatendo. Trata-se, bem para lá do "risco" da concorrência, de uma fúria de aniquilação tão ilimitada que a distinção entre o próprio eu e o dos outros começa a desaparecer, o que, por seu lado, pode ser retratado como um mecanismo psíquico: "Para escapar à própria catástrofe narcisista e afastar insuportáveis sentimentos de medo, impotência e desamparo, o próprio interior é virado para fora, encenando-se de modo assassino e suicida. Pode acontecer que a preservação do valor próprio e da integridade da personalidade constitua uma motivação do comportamento humano com mais peso do que a protecção da própria sobrevivência menorizada. Antes que tensões internas rebentem o eu, o criminoso rebenta partes do mundo exterior numa espécie de defesa preventiva [...] A fúria destruidora da criancinha que se sente abandonada, desrespeitada e desesperada e gostaria de partir tudo em seu redor está limitada pela sua falta de força física; agora a mesma raiva explosiva habita o corpo de um adulto, que pode ter acesso a armas, automóveis ou mesmo aviões" (Eisenberg, ibidem, pp. 25s.).

O eu abstracto do sujeito do dinheiro dissolve-se na concorrência de crise final, trazendo à luz o essencial daquilo que desde sempre espreita no seu interior, que é o vazio da sua existência idêntico à autodestruição. Nos cada vez mais frequentes colapsos das relações socioeconómicas, induzidas como são pelo mercado mundial da globalização, no processo de decomposição de sociedades inteiras, já não é possível uma autodefinição dos indivíduos, enquanto estes continuarem a mover-se no interior da forma social dominante (o que até à data fazem de modo espontâneo). O palavreado democrático só pode aumentar e atiçar a raiva, porque ele próprio mais não é que uma expressão hipócrita e beata da mesma lógica de aniquilação virada contra o ser humano e contra a natureza.

As manifestações de perdição e aniquilação de si mesmo, tais como Enzensberger as descreve na juventude masculina, tornaram-se hoje em dia universais, sob vários aspectos. Por um lado, não são apenas os autores de actos imediatos de aniquilação e auto-aniquilação (mais frequentes de ano para ano) que representam esta perdição de si mesmos. Os autores evidentes de actos de violência constituem apenas a ponta do icebergue, a manifestação óbvia de um estado da sociedade que é muito mais generalizado. A cada assassino suicida correspondem milhares e milhões com sentimentos semelhantes, mas que (ainda) não passaram aos actos, jogando antes com eles na sua imaginação, ou descarregando-os com produtos mediáticos a condizer (o simples facto de tais produtos, os chamados vídeos de grande violência e numerosas outras formas de glorificação mediática da violência, poderem ser fabricados em termos de lucrativa produção em massa é um sinal claro de quão profundamente este problema afecta a sociedade).

Em segundo lugar, acontece que não são apenas os vencidos declarados, como os das banlieues ou de Mogadíscio, que se matam uns aos outros, ou que cortam conscientemente o fio que os prende à vida. A guerra civil molecular desenrola-se também, e com particular incidência, entre a juventude isolada na pseudonormalidade dos que auferem salários acima da média, dos vencedores da crise e dos fanáticos da decência, cuja condição mental de sem-abrigo e de perda de si mesmos nada fica a dever à dos assassinos juvenis dos bairros degradados. O culto do assassínio e da violação, encarados como modalidade desportiva, tal como o culto do suicídio encenado, também grassa nos bairros de vivendas abastadas do Rio de Janeiro, de Nova Iorque ou de Tóquio. O já proverbial amoque com auto-execução subsequente nas high schools dos EUA é um fruto da imaginação dos rebentos das classes médias endinheiradas. E também os bombistas suicidas palestinianos ou do Sri Lanka são em regra provenientes de "boas famílias".

Finalmente, cabe esclarecer que não se trata da erupção de camadas mais antigas de uma cultura pré-moderna, que, sob a capa da modernidade capitalista e da universalidade global, se evidenciaria nos "excluídos", por exemplo, sob a forma do islamismo que prolifera no mundo muçulmano. Embora o sistema único, universal, global e metafísico real do capital tenha um colorido cultural diferente nas várias regiões do mundo, de acordo com os padrões de tradições ancestrais, concepções religiosas, comportamentos sociais e estéticos etc., esse colorido, essa diferença cultural, não constitui o essencial, o âmago profundo, não passando a constituição capitalista e a integração no mercado mundial de uma espécie de verniz meramente exterior. A situação é precisamente a inversa. Após séculos de história de ajustamento ao capitalismo e após a imposição da relação de capital como relação mundial imediata, a mesma e única forma universal de sujeito que "encarna" o vazio metafísico do valor idêntico em toda a parte é que constitui o eu interior dos indivíduos, como essência totalmente incolor e mesmo sem quaisquer qualidades, ao passo que a diferença cultural já apenas representa uma capa exterior, quase que folclórica.

É também por isso que as "bombas vivas" (Enzensberger, ibidem, p. 36) errando pelo mundo do capital globalizado são os produtos mais genuínos desse mesmo mundo: sujeitos idênticos da mesma metafísica real, em que se tornou manifesta a pulsão de morte própria desta socialização negativa. Os perpetradores dos amoques nas high schools dos EUA e os bombistas suicidas islâmicos estão mais unidos pela sua forma de sujeito e, daí, pelos seus actos, do que separados pelos seus diferentes panos de fundo culturais.

O que é evidente nos autores dos amoques também se aplica aos bombistas suicidas, que aparentemente são mais influenciados por motivos ideológicos: Também entre eles, à semelhança do que Hannah Arendt já identificara na geração perdida do tempo entre as duas guerras mundiais, a predisposição para sacrificarem a própria vida não tem "a mínima semelhança com o que costumamos entender por idealismo". Os motivos religiosos que, não por acaso, substituíram as ideologias modernas propriamente ditas, são expressão dessa universal perdição de si mesmo, que desemboca na "predilecção apaixonada por organizar a sua vida segundo conceitos destituídos de qualquer sentido", acabando por deitá-la fora como um lenço de papel usado.

A loucura religiosa que grassa em todo o mundo e que também no Ocidente deu origem a um sem-número de seitas (incluindo mesmo "seitas suicidas" declaradas) já não possui qualquer tipo de coerência; ela compõe-se sincreticamente de todo o tipo de elementos religiosos desgarrados e enriquece-se com produtos da decomposição de ideologias passadas, desde o culto de Hitler até à "missa negra". O absurdo culto do mal corresponde à pulsão de morte no centro vazio da razão iluminista, que é dispensado.

Esse processo já se tinha iniciado na era das guerras mundiais, tendo sido apenas interrompido pelo último surto de desenvolvimento fordista após 1945. Com efeito, o nazismo pode ser considerado uma espécie de precursor ou protótipo da venenosa mixórdia de ideias que hoje circula por todo o mundo, em receitas variadas. Também os nazis misturaram a sua patológica "mundividência" a partir de motivos pseudo-religiosos desconexos, mitos arcaicos sintéticos, ideologias modernas e produtos colaterais do pensamento das ciências da natureza associado à ascensão do capitalismo. Também os nazis se caracterizaram pelo culto da "masculinidade" violenta especificamente moderna e respectivos códigos. E também já para os nazis o que estava em causa não eram, ou pelo menos não eram apenas, os interesses imperiais mas, igualmente, uma fúria de aniquilação com todos os contornos de um fim em si, que culminou numa orgia de auto-aniquilação e auto-sacrifício.

Hoje, contudo, o mesmo contexto motivacional já não se apresenta nacional e especificamente alemão, mas global e universal; a vertigem assassina já não se organiza como um "Reich" nacional e imperial, mas, sim, no contexto do "imperialismo global ideal" e na dispersão molecular por todo o globo terrestre.

A enfatização exacerbada de actos culturais exteriores, tanto nas seitas ocidentais como entre os islamistas, remete para o mesmo vazio de conteúdo. Se as religiões antigas sempre tiveram o pano de fundo reprodutivo de civilizações agrárias, já não se pode constatar nada do género para as ideias zombies desta nova "geração perdida", agora global, que não pode ter qualquer futuro na sua constituição capitalista. Por outro lado, o "pano de fundo dos interesses" das anteriores ideologias modernas, provenientes da história da ascensão do capitalismo, já não consegue fundamentar qualquer coerência ideal: O próprio "interesse" se asselvaja e decompõe, e com ele a ideologia, que igualmente é despojada de qualquer conteúdo coerente.

A avidez pelo sucesso no mercado entre os rebentos dos minoritários ganhadores da globalização e a avidez de economia de saque por "mercadorias ocidentais" nas regiões em derrocada transformam-se imediatamente na absoluta e total falta de qualquer interesse do sujeito de amoque e suicídio, masculino e juvenil. O McDonald’s e a jihad [guerra santa] constituem de facto as duas faces da mesma moeda, ainda muito mais horríveis do que Benjamin Barber as representou no seu livro "Coca-Cola e Guerra Santa" (Barber 1996). A "sede de morte" não é um motivo especificamente islâmico mas, sim, o universal grito de desespero da humanidade, que se auto-executa na sua forma do mundo capitalista. E os autores são, a 90 ou quase a 100 por cento, homens concorrendo com violência, no final não menos que no início desta estranha "civilização".

(Capítulo 2 do Livro A GUERRA DE ORDENAMENTO MUNDIAL Robert Kurz, Janeiro 2003)

A crise do sistema mundial e o novel vazio conceptual - Introdução - (R. Kurz; Janeiro de 2003) Español

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