Robert Kurz

  

A HISTÓRIA COMO APORIA

 

Teses preliminares para a discussão em torno da historicidade das relações de fetiche

 

(3ª Série)

 

SINOPSE: 1. A abordagem da teoria da história para além do marxismo tradicional/ 2. A problemática do conceito de história como constructo moderno/ 3. Aporias solúveis e insolúveis/ 4. A crítica radical da modernidade não pode deixar de ter uma teoria da história/ 5. Dissociação e fetiche/ 6. Capitalismo e Religião/ 7. Sobre o conceito de relações de fetiche/ 8. Metafísica, transcendência e transcendentalidade/ 9. Da divisão de épocas ao relativismo da história/ 10. Alinhar com o processo de desmoronamento da filosofia burguesa da história?/ 11. Que significa pensar contra si mesmo?/ 12. A dialéctica da teoria da história em Adorno/ 13. Crítica do conhecimento da teoria da dissociação e crítica do conceito de história/ 14. Teoria negativa da história e programa de desontologização/ 15. Um novo conceito de unidade entre continuidade e descontinuidade/ 16. Conceitos afirmativos da reprodução e conceitos histórico-críticos da reflexão/ 17. Ruptura ontológica e “superavit crítico [kritischer Uberschuss]”/ 18. Insuficiências e conteúdos de ideologia alemã, reaccionários, da hermenêutica da história/ 19. Fossilização ontológica como vingança da dialéctica/ 20. Consequências possíveis: pose neo-existencialista, decisionismo, reformismo neo-verde.

 

 

Nota intercalar: Esta série foi interrompida temporariamente, em parte por circunstâncias externas e em parte pelo trabalho na Exit nº 4 (no prelo). Mas será logicamente continuada e concluída no decurso do corrente ano, ainda que a temática não esteja actualmente no centro das atenções. Gostaria de retomá-la futuramente noutra forma, depois de concluída esta discussão.

 

 

8. Metafísica, transcendência e transcendentalidade

 

Quando falamos de metafísica e de “metafísica real “ torna-se obviamente necessária uma desambiguação, principalmente porque o conceito de metafísica é muitas vezes maltratado e há quem goste de o tagarelar irreflectidamente com ar de importância. Em alguns discursos actuais serve para quase mistificar as relações capitalistas, uma vez que, como determinação que permanece imprecisa, mais obscurece que esclarece o contexto categorial da forma da sociedade. No entanto, com Adorno, não se deve perder de vista que uma desambiguação não se faz com meras “definições”, mas que os conceitos apenas se tornam claros no seu contexto histórico, ou seja, nas “constelações” de que constituem um momento.

 

A metafísica é geralmente considerada como um domínio específico da reflexão conceptual (filosófica). Tal reflexão, no entanto, já está sempre num contexto de reprodução humana, ou seja, das relações sociais e do “processo de metabolismo com a natureza” em diferentes formações históricas. Portanto, quando se fala de metafísica, esta não pode ser tomada por si (numa perspectiva de “história intelectual”) como reflexão filosófica com diferentes pontos de vista, mas deve ser considerada no contexto das respectivas relações de reprodução.

 

Este é um aspecto do materialismo histórico que continua a ser indispensável para a elaboração teórica da crítica da dissociação-valor. Em contraste com o materialismo histórico, no entanto, aqui já não seguimos um esquema base-superestrutura, em que um momento da reprodução, do “processo de metabolismo com a natureza” percebido como “trabalho” se torna o princípio fundamental dominante, a partir do qual todos os outros deverão ser derivados. Isto em si é uma metafísica, como também veremos. A concepção que resulta da teoria crítica da dissociação-valor de uma “história de relações de fetiche” em vez disso parte do princípio de que existem diferentes momentos da reprodução “igualmente originais”, ou seja, para além da respectiva forma do “processo de metabolismo com a natureza” e com ela não absolutamente coincidentes, também existem formas de relações sociais, formas cultural-simbólicas, formas de reflexão e não em último lugar formas de relações de género etc. insusceptíveis de serem reduzidas umas às outras, mas que apenas como um todo constituem uma formação histórica específica. Na medida em que na história até hoje o que houve foi constituições de fetiche na acepção do acima introduzido conceito de matriz a priori, pode falar-se de “metafísicas reais” históricas surgidas em processos contingentes; isto é, incluindo toda a reprodução, e não apenas como reflexão conceptual e filosófica que, pelo contrário, é incorporada na respectiva “metafísica real”. Isso significa que o conceito de metafísica em primeiro lugar representa uma determinação da constituição de fetiche de relações humanas de reprodução e deve ser pensado em conjunto com ela.

 

Neste sentido, a teoria da história da crítica da dissociação-valor transforma o materialismo histórico de uma hipostasiação do “processo de metabolismo com a natureza” (“trabalho”, forças produtivas) na determinação de relações de fetiche de acordo com uma matriz a priori mediada de diferentes maneiras por um meio constituído metafisicamente; e nesta relação de fetiche metafísica está incluído também o respectivo “processo de metabolismo com a natureza”. Trata-se, portanto, não de um “idealismo” que deriva a realidade histórica de princípios puramente espirituais ou de construções do pensamento (como pode parecer em Gerold Wallner) ou de desenvolvimentos da “história intelectual” (também isto é uma metafísica), mas de uma reflexão crítica das relações de reprodução “realmente metafísicas” dos seres humanos, em cujo contexto se situam todas as reflexões (filosóficas ou teológicas). Portanto, temos de distinguir entre “metafísica real” subjacente (inconsciente e a priori) de relações de fetiche e metafísica como reflexão (consciente) “sobre” a “constituição do mundo” assim formada e “nela”. Neste sentido a reflexão da crítica da dissociação-valor é uma reflexão explosiva, na medida em que, juntamente com a constituição de fetiche, também a “metafísica real” de toda a história anterior é radicalmente criticada, com o objectivo de suplantá-las.

 

Dito isto, podemos agora voltar ao conceito filosófico de metafísica. Ele tem origem no arranjo editorial das obras de Aristóteles (Corpus Aristotelicum) feito por Andrónico de Rodes cerca do ano 70 antes da nossa era. Aí foram reunidos certos textos de Aristóteles sob a designação de “depois da física”, o seja, o que vem após ou “atrás” dos trabalhos sobre física (embora o termo “física” não corresponda naturalmente ao entendimento moderno), o que em grego é designado pela palavra “metafísica” (o próprio Aristóteles nunca usou este termo). Visto de fora parece portanto tratar-se de uma mera designação de técnica editorial, o que tem sido frequentemente apontado. Ora não se pode negar que este termo, surgido quase acidentalmente por razões de técnica editorial, se refere a um conteúdo material específico dos escritos de Aristóteles por ele abrangidos. Pode verificar-se aí um conteúdo correspondente à ordenação feita acidentalmente por razões de técnica editorial: não se trata apenas do que nas “obras completas” de Aristóteles foi editado “após” os livros sobre física, mas também de um conteúdo “após”, “atrás “, “acima” ou “além” do mundo da aparência experiencial. Este conteúdo específico foi tratado muito antes de Aristóteles nas reflexões teológicas e filosóficas; pela coincidência acidental do arranjo editorial e do conteúdo dos textos correspondentes de Aristóteles, o conteúdo deste campo de reflexão apresenta-se desde então como “metafísica”. É inútil divagar sobre a formação da palavra; trata-se, sim, da importância do conteúdo por ela designado.

 

Do que se trata ou o que se considera como “Além” do mundo dos fenómenos experienciais? Aristóteles fala nos escritos editados como “metafísica” de uma “filosofia primeira”, que tem de “ir aos primeiros princípios e causas” (Metafisica, de acordo com a tradução de Hermann Bonitz, Hamburgo, 1995, p. 6), e de facto tendo em vista o “ser em geral”: “Há uma ciência que investiga o ser como ser e o que lhe pertence a si mesmo. Esta ciência não é idêntica a qualquer das ciências individuais; nenhuma das outras ciências trata do ser como ser em geral, pois elas limitam-se a uma parte do existente e estudam as determinações que o perfazem...” (Metafisica, ob. cit., p. 61). A metafísica, portanto, é a ciência das “primeiras causas e princípios” do “ser em geral”, a explicação ou “justificação última” porque é que existe algo em geral, a ciência do que “está subjacente ao mundo” a ciência do “absoluto” que apenas ele constitui o mundo do fenómenos (constituens em contraste com constitutum) e que é supra-temporal. A metafísica, por isso, pode ser dividida em uma “essência do ser em geral” atemporal (ontologia), uma “essência do mundo natural” atemporal (cosmologia filosófica da natureza) e uma “essência do Homem” atemporal (antropologia filosófica), sendo que cosmologia e antropologia estão contidas na ontologia geral, ou seja, elas mesmas são determinadas ontologicamente. Em qualquer dos casos trata-se de “ciência do absoluto” e do constituinte “como última causa”, seja ele um absoluto do “ser em geral”, um absoluto do mundo físico ou um absoluto do mundo humano e da sua historicidade.

 

Esta ciência filosófica da metafísica, como disse, liga-se agora com as relações de reprodução humanas, e de facto em sua existência como relações de fetiche, na medida e enquanto são relações de fetiche na acepção daquela matriz a priori inquestionável, a qual constitui as respectivas relações sendo o respectivo absolutum e assim metafísica real. Nesta medida, cada metafísica conceptual constitui a expressão reflexiva (e, portanto, a afirmação ou justificação) da respectiva metafísica real fetichista. É preciso diferenciar entre metafísica real pré-moderna de “relações de relacionamento com Deus” (para cuja diferenciação interna a nossa crítica do fetiche ainda não está desenvolvida) e metafísica real moderna de relações de dissociação-valor (capitalismo). É claro que a reflexão conceptual da ciência metafísica deve ser correspondentemente diferente nas relações pré-modernas e modernas.

 

No mundo de Aristóteles, tal como no mundo da chamada Idade Média cristã, em cada caso determinado por “relações de relacionamento de Deus” de maneira diferente, a metafísica refere-se em todos os aspectos fundamentalmente a um “primeiro princípio” ou “primeira causa” que deverá estar situado “além” do mundo fisicamente experiencial, sendo portanto determinado como “supra-sensível” ou simplesmente “transcendente”. Por isso a metafísica é frequentemente considerada como a “ciência do supra-sensível “ que enquanto constituinte do mundo não pode ser imanente ao mundo (não fisicamente tangível) e que é visto como Deus ou como mundo dos deuses (em termos cristãos: o “reino de Deus”). Aristóteles determina este absolutum constituinte do mundo como um chamado “motor imóvel”, uma “essência imutável” (Metafísica, ob. cit., p. 127). Ele chega a esta conclusão porque tudo no mundo é movido por causas, não apenas em sentido mecânico, mas também em termos de nascimento e decadência e, portanto, terá de haver uma primeira causa em si imóvel, que é eterna e transcendente: “(Apenas) o espaço à nossa volta do mundo dos sentidos está em constante decadência e surgimento” (ibid., p. 81), e “o primeiro motor é ele próprio imóvel” (ibid., p. 88).

 

O Deus aristotélico é, portanto, um absolutum geral e abstracto para além do mundo : “Como Deus puro ele está completamente auto-relacionado fora do cosmos” (Jörg Disse, Kleine Geschichte der abendländischen Metaphysik [Breve história da metafísica ocidental], Darmstadt, 2001, p. 99). Este modo de ver também foi acolhido na metafísica teológica cristã, embora aí tenha sofrido modificações. Aqui basta-nos em primeiro lugar constatar as noções de “causa primeira” ou “primeiro princípio” e a sua transcendência do mundo experiencial. Essa transcendência é parte integrante da constituição metafísica real das relações pré-modernas de fetiche, e com isso de dominação, enquanto “relações de relacionamento com Deus”. Como já se viu, a reprodução como relação fetichista de dominação está aqui mediada com intermediações pessoais, como “representações de Deus” cuja legitimidade deriva do facto de pessoas com correspondente carga metafísica apresentarem e representarem o “relacionamento com Deus”, ou seja, terem de estabelecer a comunicação com a esfera da transcendência na qual a “ordem do mundo” ou “relação com o mundo” se baseia.

 

Uma vez que a “relação com o mundo” capitalista moderna tornou a transcendência paradoxalmente imanente ao mundo como “sujeito automático”, tentando afastar para a relação de dissociação sexual os momentos da reprodução e das relações sociais que nele não ficam absorvidos, agora o absolutum, o “primeiro princípio” ou “causa primeira” já não surgem como um “Além” dos fenómenos do mundo experiencial, mas como um absolutum ele próprio contido neste mundo e mais precisamente como um absolutum “em processo” imanente (valorização do valor). Este absolutum enquanto valor, como se viu, também é “supra-sensível”, não fisicamente tangível; mas, uma vez que ele se “apresenta” imanente ao mundo na forma do valor de troca das coisas do mundo (os corpos sensíveis das mercadorias exprimem reciprocamente a sua essência supra-sensível, isto é, a forma natural de uma mercadoria torna-se a forma do valor da outra), ele aparece “no” mundo e degrada as coisas do mundo em meras manifestações de si. O dinheiro como expressão universal desta relação torna-se a coisa imediatamente “sensível-suprassensível”, enquanto os momentos da reprodução nele não perceptíveis e delegados na relação de dissociação sexual são determinados como pertencentes a uma mera sensualidade inferior, que não tem a dignidade “superior” do paradoxal absolutum sensível-suprassensível (o qual precisamente com isso a si próprio se desmente como absolutum monista).

 

Assim, por um lado, estamos confrontados com uma enorme diferença para com as “relações de relacionamento com Deus” pré-modernas. Uma vez que a transcendência do absolutum se tornou paradoxalmente imanente ao mundo, a si mesmo se “representando” imediatamente nas coisas do mundo e tendo de se “representar” sempre de novo numa escala cada vez maior num processo aparentemente interminável, as coisas do mundo também já não podem aparecer como várias “substâncias” em si, apenas indiretamente relacionadas com um absolutum do Além (a “substância das substâncias” transcendente, Deus), mas têm de ser directa e imediatamente degradadas na mera “expressão” ou “manifestação” da substância que a si própria se coloca como absoluta do valor e com ele do “trabalho abstracto”. Por outro lado, continua a tratar-se aqui, mesmo que agora de outra maneira, de um absolutum apreendido como atemporal, de um “primeiro princípio” que deve determinar a “ordem do mundo” e que agora enquanto seu paradoxal tornar-se imanente agudiza até ao insuportável os poderes destrutivos da “história de relações de fetiche” (metafísica real).

 

No plano de abstracção do conceito de fetiche ou do conceito de “história de relações de fetiche” é preciso portanto constatar não só a diferença perante as “relações de relacionamento com Deus” pré-modernas, mas também o momento abstracto de comunhão numa “metafísica real” em cada caso diferente e das correspondentemente diferentes reflexões metafísicas (fundamentações últimas num absolutum trans-histórico). No interior da metafísica real / metafísica pode falar-se de uma diferença entre a transcendência pré-moderna (esfera divina supra-sensível do Além) e a transcendentalidade moderna (“transcendência imanente” paradoxal do valor). O conceito de “transcendental” remonta a Kant que com esta expressão descreve a metafísica da razão formal da modernidade em que se expressa a socialização da dissociação-valor. As “relações com o mundo” pré-modernas são determinadas de modo transcendente, as modernas de modo transcendental.

 

Ora, uma vez que na reflexão filosófica moderna a partir do iluminismo não se atingiu o nível de abstracção do conceito de fetiche (que depois de Marx foi em grande parte deixado cair novamente ou nem voltou a ser pensado), pôde surgir a impressão de que a modernidade seria uma época “pós-metafísica”. O conceito de metafísica foi então unilateralmente restringido à transcendência e ao “supra-sensível” das “relações de relacionamento com Deus” pré-modernas, enquanto a relação de valor moderna paradoxalmente “sensível-suprassensível” surgia não como “metafísica em processo” (Jörg Ulrich), mas como suplantação da metafísica em geral enquanto imanência ao mundo, metafísica que além disso foi percebida como mero problema ideal, da história das ideias, enquanto a referência às relações de reprodução realmente metafísicas permaneceu completamente na sombra; por isso também o conceito de fetiche de Marx continua a ser um livro fechado a sete chaves para o pensamento moderno pseudopós-metafísico.

 

Se a metafísica filosófica da modernidade, que pretende não o ser, for agora reconduzida à sua referência social realmente metafísica, é possível decifrá-la, por um lado, como metafísica da abstracção do valor e portanto do “sujeito automático” ontologizado, que aparece como metafísica da “razão” e se apresenta eticamente como metafísica da forma jurídica (classicamente nas “críticas” de Kant), simultaneamente dinamizada para metafísica da história do “progresso” (sistematizada por Hegel, como se viu, como história do desenvolvimento do “espírito do mundo”). Aqui, a ênfase é posta no momento “supra-sensível” da transcendentalidade, enquanto o mundo sensível é degradado em manifestação do absoluto supra-sensível tornado paradoxalmente imanente ao mundo (valor ou valorização do valor, disfarçado de “razão pura”).

 

Por outro lado o marxismo, justamente como “materialismo histórico”, desenvolveu uma metafísica também encapotada, ontologizando por sua vez o “trabalho” abstracto como absolutum e assim o elevando a metafísica do trabalho. “Trabalho”, no entanto, é apenas o lado vivo-sensível abstractificado da mesma metafísica real capitalista (a paradoxal “sensibilidade abstracta”) e, portanto, tão pouco é “pós-metafísico”. A ele corresponde o “materialismo”, como cosmologia da filosofia da natureza; por isso é uma metafísica materialista da mesma constituição sensível-suprassensível em que se reflecte o cruzamento da “supra-sensibilidade” do valor com o mundo dos sentidos por ele atingido, e onde “o trabalho” representa o movimento de mediação como substância em processo abstractificada. Nessa medida, a oposição entre a metafísica da “razão” e do direito genuinamente burguesa (idealismo) e a metafísica do trabalho marxista (materialismo) constitui uma disputa no interior da própria metafísica moderna, no terreno da metafísica real capitalista. São as duas faces da mesma moeda.

 

Isso também se reflecte na ironia da história de que o socialismo real da “modernização atrasada” pretendeu deixar continuar em processo o “trabalho” sem o seu outro do capital, por meio de um suposto comando sobre a forma valor não resolvida, e teve de falhar, enquanto, inversamente, o capitalismo de crise da terceira revolução industrial gostaria de deixar continuar em processo a valorização na forma do “capital fictício” por sua vez sem suficiente “substância de trabalho”, e por isso falhará também. Só a viragem crítica contra a constituição de fetiche em si e, portanto, contra a “história de relações de fetiche” pode romper a metafísica real das relações sociais e materiais e, com ela, a metafísica como sua reprodução ideal.

 

Voltemos agora ao raciocínio de Wallner e Cª. em que a concepção de “história de relações de fetiche” é descartada a favor da absolutização da diferença das formações históricas. Também isto é uma metafísica, pois aqui é a própria diferença desconexa que é tornada um absolutum e ontologizada como antropologia filosófica, pelo que é apropriado falar de uma metafísica da diferença, a qual, pode já antecipar-se aqui, constitui uma característica geral da ideologia pós-moderna (voltarei a isso com mais detalhe nos dois pontos seguintes). Isso também tem consequências para o conceito de metafísica.

 

No artigo Die Leute der Geschichte [As gentes da história] Wallner, movido pelo zelo de hipostasiar a diferença e negar qualquer momento abrangente na história, classificou a metafísica como que de passagem de modo ainda completamente tradicional e à maneira bem iluminista, ou seja, como essencialmente pré-moderna, ao contrário da modernidade (implicitamente determinada como “pós-metafísica”). Assim Wallner, no lugar já citado sobre a constituição religiosa da pré-modernidade, critica qualquer classificação como metafísica da continuidade na verdade falsa e redutora do capitalismo “como religião”, pois tais erros de classificação questionariam “se compra e venda não seriam actos de culto, o direito, uma metafísica e o ganhar dinheiro, uma idolatria...” (EXIT! 3, p. 56). Aqui a metafísica ainda aparece numa série com “actos de culto”, “idolatria “, etc. que, ao pretender-se que caracterize também a figura do direito moderno, é atribuída à constituição moderna do ponto de vista de Wallner erroneamente, quando pertenceria apenas à constituição religiosa pré-moderna. Esta argumentação de Wallner visando negar qualquer continuidade torna-se porém problemática no que diz respeito à determinação da modernidade como metafísica real sui generis, que assim teria de ser realmente descartada, com o que também o conceito marxiano de fetiche não seria mais sustentável.

 

Para evitarem esse problema e poderem continuar a comportar-se “como críticos” Wallner & Cª. agora simplesmente viraram o bico ao prego e de repente reservaram exactamente ao contrário a metafísica já apenas para a modernidade capitalista, devendo as constituições religiosas pré-modernas voltar a figurar absurdamente como “não metafísicas”. O que aponta mais uma vez para a arbitrariedade e livre escolha de um pensamento que quer a todo o custo a absolutização da diferença, em que agora a relação é posta de pernas para o ar com uma cambalhota.

 

Jörg Ulrich, no seu texto já citado várias vezes de discussão crítica com Wallner („Der” Mensch und die Leute und die Religion und der Kapitalismus und so weiter [“O” ser humano e as gentes e a religião e o capitalismo e por aí fora]), inicialmente rejeitou esta inversão do conceito. Ulrich concorda que não se pode ficar por uma crítica ela própria ainda iluminista, que apenas acusa o capitalismo de suplantar “incompletamente” a metafísica: “Se se pretendesse realmente acusar a modernidade apenas de ‘não ter suplantado suficientemente’ a metafísica, então continuaríamos ainda a mover-nos dentro da consciência que ela tem de si mesma, uma vez que a acusação consistiria em o positivismo, que afirma ter suplantado completamente a metafísica, não o ter feito no fundo suficientemente, de modo que a metafísica, por assim dizer, voltou a entrar pela porta das traseiras. Mas a constatação de que no positivismo encontra expressão uma metafísica que ele não reconhece como tal não supõe de modo nenhum que ele a tenha suplantado apenas incompletamente, mas sim que não a suplantou nada. A metafísica já é sempre a metafísica toda, e a sua suplantação, se de algum modo for possível, apenas pode ser a suplantação de toda a metafísica” (Ulrich, ibid.).

 

Aqui, o problema ainda é muito bem colocado no contexto da suplantação da metafísica, que aponta para a continuidade de pré-modernidade e modernidade, tendo em consideração as constituições realmente metafísicas em cada caso diferentes e as correspondentes formas de reflexão. O argumento de Wallner revela-se como um passe de mágica, uma vez que a sua crítica à fixação no pensamento iluminista se refere apenas à alegada “incompletude” da suplantação da metafísica, mas não ao momento da continuidade de constituições afinal metafísicas. Aqui seria preciso determinar a relação entre diferença e semelhança, e precisamente no plano de abstracção de uma “história das relações de fetiche” que inclui perfeitamente a diferença entre as determinações metafísicas pré-modernas e modernas. É o que Ulrich também deixa inequivocamente claro: “Ora a moderna suplantação da ‘antiga metafísica’... não é incompleta... mas simplesmente uma suplantação metafísica da metafísica e, portanto, não apenas ruptura, mas também continuidade” (ibid.).

 

Em seu diálogo com Claus Peter Ortlieb (que será publicado na EXIT! 4) Ulrich, porém, já lançou borda fora este ponto de vista e também a este respeito se acomoda novamente à “absolutização da diferença” como um modo de ver suposto completamente novo com “outros olhos”. Então de repente ele põe-se a divagar em conformidade, sem identificar o contexto de fundamentação: “Talvez As gentes da história pré-modernas não tivessem ou não conhecessem qualquer metafísica no sentido em que nós hoje a imaginamos, de modo que a metafísica como forma de dominação do geral sobre o particular teria de ser entendida também de novo como questão especificamente moderna”(Claus Peter Ortlieb / Jörg Ulrich, Die metaphysischen Abgründe der modernen Naturwissenschaft. Ein Dialog [Os abismos metafísicos das ciências naturais modernas. Um diálogo]). Na realidade, porém, trata-se de uma diferença no interior da “dominação do geral sobre o particular”, pois nas constituições pré-modernas a dominação como transcendência absoluta daquele “geral” (Deus, motor imóvel) era indireta, enquanto na modernidade como parodoxal “imanência do transcendente” (transcendentalidade) tornou-se directa.

 

Ulrich tenta agora agarrar a absolutização da diferença, “assumida” contra a própria convicção, como oposição entre “metafísica” (supostamente apenas moderna), por um lado, e “teologia” (pré-moderna), por outro, caso em que Aristóteles figura apenas na “teologia” “em vez de” na “metafísica” suposta puramente moderna. Mas, de modo nenhum por acaso nem arbitrariamente, a teologia não é tratada como expressão particular da metafísica ou como estando em ligação com ela. A este respeito a lição de Adorno sobre Metafísica de 1965 pode ser elucidativa. Aí ele vira-se de facto contra a tentativa usual de “meter a teologia e a metafísica... no mesmo saco” (Theodor W. Adorno, Metafísica, Lições 1965, Frankfurt / Main 1998, p. 16), mas ao mesmo tempo faz notar a sua comunhão, dizendo “que a metafísica também tem algo ver com a teologia, justamente na maneira como ela procura elevar-se acima da imanência, acima do mundo da experiência” (ibid., p.17). Tanto quanto podemos agora diferenciar entre metafísica no sentido filosófico e teologia como metafísica, é o mesmo problema da transcendência (ou, na era moderna, da transcendentalidade) em versão ou modo de exposição meramente diferente; na reflexão filosófica, em oposição à teológica, trata-se de “... que a metafísica é a tentativa de determinar a partir de puro pensamento o absoluto ou as estruturas constitutivas do ser; portanto, não dogmaticamente, não a partir da revelação, e não como algo positivo que me é dado simplesmente, nomeadamente através da revelação ou da revelação veiculada pela tradição..., mas sim... pelo conceito” (ibid., p. 18).

 

Ora é perfeitamente claro que a reflexão aristotélica do “motor imóvel” é puramente conceptual e nessa medida metafísica filosófica, portanto de modo nenhum teológica, ou seja, não argumenta a partir da tradição canónica nem a partir da revelação, nem mesmo em forma mítica, e certamente não em ligação com um culto religioso. Ulrich confunde o conceito, porque já não consegue distinguir que a reflexão aristotélica, por um lado, acontece de facto numa constituição real religiosa histórica de “relações de relacionamento com Deus”, não assumindo, por outro lado, nenhuma forma teológica. Isso aponta para que já na antiguidade a metafísica filosófica e a teologia se separam, mas no próprio terreno da constituição religiosa das relações de reprodução. Há assim uma tensão, que coincide com a linha de reflexão do antigo “cepticismo”: cepticismo contra o dogma teológico ou a tradição, mas não contra a constituição de fetiche religiosa como tal, que é sempre explicitamente reconhecida. Inversamente esta tensão é feita valer do lado da teologia; Adorno fala de “violentas reacções mais antigas da teologia contra a metafísica” (ibid., p. 18), ou seja, contra a reflexão conceptual filosófica desligada da tradição ou da revelação na base da constituição religiosa. Mas Adorno também ressalta que “finalmente a metafísica e a teologia entenderam-se” (ibid., p. 19), em parte já na antiguidade, mas especialmente na Idade Média cristã a partir dos Padres da Igreja. Tudo isso aconteceu ainda no terreno das constituições religiosas. É pensamento unidimensional e não-dialético considerar que toda a reflexão conceptual nas constituições reais religiosas em virtude da sua constituição tem de ser “apenas teológica” e que toda a filosofia pré-moderna é subsumida na “teologia”. A separação absoluta feita por Ulrich entre metafísica e teologia, atribuindo-as mecanicamente à modernidade, num caso, e às relações pré-modernas, no outro, é completamente arbitrária e contrária aos factos. Todo o problema fica com isso apenas obscurecido.

 

Ora qual será o significado de atribuir deste modo não-conceptual a metafísica apenas à transcendentalidade moderna, enquanto se considera que a reflexão na pré-modernidade deve ser “só teológica”? Reservando também exclusivamente para a modernidade a “metafísica real” que vigora na constituição reprodutiva, vai dar exactamente na absolutização da diferença. Constituição metafísica real e metafísica como reflexão conceptual “apenas na modernidade”, na pré-modernidade, pelo contrário, uma constituição que sendo religiosa não pode ser “metafísica real” e cuja reflexão deve ser “apenas teológica”. Quando Wallner no seu artigo atribui inadvertidamente na passagem citada o conceito de metafísica à constituição religiosa pré-moderna, ele já mostra ao mesmo tempo a que consequências absurdas conduz a arbitrária inversão em cambalhota da relação entre a constituição pré-moderna e a moderna.

 

É o que se vê quando ele reflecte sobre o estado ou o lugar da “esfera de Deus” no suposto entendimento pré-moderno, que apenas teria sido distorcido pela visão moderna: “Assim o elemento religioso – mediado pelas ideias de deuses, espíritos, demónios, fadas, anjos e que tais – nesta visão moderna é posto fora do mundo material e levado para outro lugar (por exemplo, para o céu), que simultaneamente é qualificado como invenção – da religião (!) – tal como os seres que o habitam. Isto pode ser baseado no facto de as incontáveis histórias da criação, entre si semelhantes no conteúdo até à identidade, sugerirem, como parte integrante da visão religiosa do mundo que Deus como criador do mundo material deve estar situado fora deste, portanto que aquilo que move o mundo e o mantém deve estar numa dimensão exterior ao mundo. Só que apesar da criação do mundo pelos deuses – a sociabilidade religiosamente constituída viu isso de forma diferente. O mundo inteiro, incluindo os deuses, era hermeticamente fechado e, portanto, espacialmente determinável. Sabia-se onde estavam localizadas as entradas para o mundo inferior e as mitologias da antiguidade até às lendas recentes do período cristão conheciam os sítios. Tão-pouco era segredo onde os deuses moravam, até mesmo o paraíso ainda estava assinalado nos mapas do mundo do século XIII. Assim, vemos como as chamados ideias do além estavam perfeitamente no aquém...” (Wallner, p. 28).

 

Deste modo Wallner nega com toda a seriedade a transcendência pré-moderna da “esfera de Deus”. Transcendência deve existir apenas na forma da transcendentalidade moderna (daí que supostamente também a metafísica deve existir apenas na modernidade, do que Wallner inicialmente ainda não estava consciente ser consequência da sua própria afirmação, como se viu). O “Além” é suposto ser uma invenção projectiva da modernidade relativamente às “relações com o mundo” pré-modernas, enquanto de facto nas constituições religiosas não haveria nada do Além; o céu e o inferno (mundo inferior) teriam sido concebidos completamente “do lado de cá”. Deus ou os deuses não estariam localizados fora do “mundo material”, mas completamente imanentes ao mundo. Nas discussões sobre o novo texto de auto-apresentação da associação EXIT!, ao tratar-se do conceito de relações de fetiche, Petra Haarmann corroborou essa “original” declaração: As formações religiosas, segundo Haarmann, seriam “constituídas não de modo metafísico, mas realista “; tudo, incluindo “a esfera de Deus”, seria concebido “de modo estritamente material” nessas formações. Mesmo no cristianismo como religião de salvação os “contactos mentais” com a eternidade (seja lá isso o que for) teriam sido “limitados à imanência e à intramundanidade”.

 

Já na última afirmação está contido um erro grosseiro de relação lógica. Pois se, como Haarmann disse, para as pessoas pré-modernas na constituição religiosa uma “transcendência no sentido de ir além de si mesmo em pensamento” teria sido considerada “impossível, blasfema, sacrílega” etc. então ela confunde a capacidade de reflexão, os mandamentos e proibições de pensar, com o carácter da própria constituição. Se a reflexão que transcende é considerada impossibilidade pecaminosa, então, pelo contrário, pressupõe-se a transcendência absoluta da “esfera de Deus”. Isso já mostra que Haarmann, Wallner e Ulrich não entenderam a natureza da constituição de fetiche, mas para eles o pensamento consciente “sobre” e “na” constituição (neste caso religiosa) se confunde com o carácter da constituição como tal, a qual no entanto não é algo nascido da cabeça de quem pensa, no sentido de uma reflexão consciente. O medo do sagrado, a unidade da “ordem do mundo” nas “relações de relacionamentos com Deus” está dentro da constituição real religiosa, que assenta na “estrita” transcendência (no Além) do fundamento do mundo e só assim é possível.

 

As construções de Wallner sobre a suposta “localização” física e geográfica de Deus, do céu, do inferno / mundo inferior etc. são simplesmente ridículas. Os contos populares sobre as “entradas para o mundo inferior” (ou, se quisermos, para o lugar dos deuses no Olimpo) não constituem qualquer prova da imanência ao mundo da constituição, não passando de ideias “populares” da transcendência que no entanto vigora. Tais “entradas” poderiam quando muito ser apresentadas como “portas” para outra dimensão, do Além. Wallner comete o anacronismo de atribuir a essas ideias um entendimento moderno de localização terrestre. Se assim tivesse sido “realmente”, então deveria ter havido um animado turismo para o Além e as pessoas teriam podido encontrar-se com os deuses para um copo de néctar e um snack de ambrosia. O mesmo anacronismo surge quando Wallner supõe que os cartógrafos medievais teriam imaginado que se pode rumar ao paraíso tal como para a costa do Norte de África. Toda a conversa sobre possibilidade de localização terrena, imanência ao mundo e “materialidade estrita” evidencia uma gritante falta de compreensão da “relação com o mundo” pré-moderna nas suas representações simbólicas. Por maioria de razão seria um anacronismo se Wallner quisesse, por exemplo, interpretar os deuses planetários da Mesopotâmia como “imanentes no mundo”, porque com isso já estaria a supor um universo físico newtoniano.

 

Wallner confunde penosamente as ideias e representações “naturais” de transcendência com a ausência desta última. O facto de o Além ser concebido como quase natural, por exemplo no antigo Egipto e na Mesopotâmia ou na antiga religião popular, não muda o seu carácter estritamente transcendente. Isso já decorre do facto de o Além (geralmente dividido de modo dualista em céu e inferno / mundo inferior etc.) ser o não-lugar, para onde vão os mortos que nunca mais regressam; ou, se regressam, então é como espíritos, demónios etc. que já não são deste mundo, mas representam uma perigosa irrupção da transcendência. Há também relatos de “viagens ao Além” xamânicas e religiosas, físicas ou não-físicas, e também com isso não está de acordo o postulado de Haarmann da absoluta impossibilidade de “ir além de si em pensamento”; mas esse ir além é numa transcendência justamente insusceptível de localização terrena (e, por conseguinte, um fenómeno excepcional tão sacrílego, ou, pelo menos, tão perigoso como também lendário).

 

E os mortos também não vão para o Além como corpos terrestres, mas sim como “almas” estritamente não-materiais. Por isso a ideia “natural” de transcendência, geralmente acompanhada de uma imagem antropomórfica dos deuses, já na antiguidade foi objecto de crítica e zombaria. Basta aqui uma referência à Metafísica de Aristóteles, onde se diz: “Ora poetas como Hesíodo e todos os outros teólogos limitaram-se a pensar o que lhes parecia plausível, mas sem nenhum respeito por nós. Porque, fazendo dos deuses princípios e fazendo surgir tudo dos deuses, eles explicam em seguida que quem não provou néctar e ambrosia se tornou mortal. Aparentemente essas palavras eram compreensíveis para eles próprios, é claro, mas o que eles disseram sobre a própria aplicação destas causas está para lá da nossa capacidade de entendimento. Porque se os deuses tomam o néctar e a ambrosia por prazer, então eles não são por si a causa do ser; mas se os tomam para manter o ser, como podem eles ser eternos, se ainda precisam de alimento? Por isso não vale a pena tomar a sério o saber mítico” (ibid., p. 53).

 

O “motor imóvel” de Aristóteles é de todo estritamente imaterial e exterior ao mundo, sendo por ele também designado explicitamente como “separado” (Metafísica, p. 126, p. 232 sg., p. 258 sg.) de qualquer materialidade. Se o desenvolvimento dentro da constituição religiosa em geral passa por aí, tão pouco se pode dizer numa visão grosseira que a concepção de transcendência quase natural, mas não deste mundo, se transforma na reflexão numa concepção estritamente imaterial, “supra-sensível”, sob pena de não poder ser mantida a transcendência necessária para a matriz a priori da constituição real. Por isso todo o pensamento nas constituições religiosas tende para uma divisão em uma existência material, sensível, corporal no mundo, por um lado, e em um Além “supra-sensível”, incorpóreo, exterior ao mundo e simultaneamente constitutivo do mundo, por outro. Isto levou à conhecida hostilidade do pensamento relativamente ao corpo e ao mundo nas constituições religiosas, desde os Upanishads até à teologia cristã, aparecendo o corpo como o “túmulo da alma” (soma = sema); e, na verdade, com um cunho mais ou menos radical (da forma mais extremista, como é sabido, na gnose, que sonhava com a aniquilação física do mundo).

 

A transcendência também é exacerbada pelo desenvolvimento da cosmologia ou cosmogénese metafísica pré-moderna. Não está correcta a afirmação improvisada de Wallner de que as “incontáveis” (também isto não é verdade) histórias da criação foram feitas “semelhantes até à identidade” entre si, e que sugeririam “falsamente” a transcendência dos deuses criadores (ele não achou necessário dar as razões pelas quais essa interpretação deve estar errada). Por exemplo, nos mitos da criação do antigo Egipto e da antiga Mesopotâmia (e noutros), que nos foram transmitidos pouco claros e dificilmente compreensíveis, não se trata de uma creatio ex nihilo, mas já existe sempre antes do criador ou independente dele uma substância do mundo, uma sopa primordial ou água primordial etc. e, em seguida, o mundo criado surge curiosamente por masturbação ou por cuspo dos deuses (um simbolismo natural que provavelmente Wallner tomaria de novo comicamente à letra e como prova de uma inerência ao mundo “estritamente material”. A ter sido “realmente” assim, segundo Wallner, os deuses estariam obviamente já sempre “por cima”). Na verdade esta constelação certamente que não muda nada na transcendência do divino.

 

No monoteísmo do Antigo Testamento, desenvolvido na teologia cristã, aparece então muito antes da modernidade uma transição para a creatio ex nihilo que impõe logicamente que a instância de criação estritamente extramundana não seja imanente no mundo. Isso aponta agora para a tendência para estabilizar a constituição religiosa real pela exacerbação do conceito de transcendência. Quando se diz na religião cristã de salvação que “o mundo está em Deus”, esta frase não é, como Wallner & Cª. aparentemente dizem, simplesmente reversível com a afirmação de que “Deus está no mundo” ou idêntica com ela. O mundo é uma emanação de Deus, e nesse caso está “em Deus”; mas isso pressupõe que há uma diferença fundamental entre o mundo e Deus (como inequivocamente em Tomás de Aquino); caso contrário, não poderia haver nenhum fundamento do mundo em Deus, nem a correspondente “relação com o mundo”, nem qualquer constituição religiosa real, mas apenas uma auto-criação permanente do mundo idêntico a Deus, ad infinitum. Deus pode naturalmente actuar e mesmo “aparecer” no mundo, afinal é o “seu” mundo. Mas, para que isso possa ser assim, tem de haver uma clara distinção entre Deus e o mundo, caso contrário não seria o “seu” mundo, mas ele estaria simplesmente “no” mundo, como a terra, os homens, os animais, as pedras, etc. ou seria simplesmente idêntico ao mundo como um todo.

 

A identidade de Deus com o mundo é geralmente conhecida como panteísmo ou “ateísmo envergonhado” (monismo). Wallner & Cª. querem impingir a todas as constituições pré-modernas uma constelação igual ou semelhante. Na realidade esta concepção monista apareceu apenas perifericamente nos tempos antigos (como no diálogo de Cícero Sobre a natureza dos deuses), mas de modo completamente inconsistente e em parte apoiada pela tendência dos “cépticos”, tendo sido substituída pela constituição cristã completamente oposta. Os momentos panteístas na filosofia medieval, como no misticismo e no averroísmo, foram perseguidos como heréticos. Não admira, pois um rompimento monista da transcendência nesse sentido teria deslegitimado toda a estrutura de poder da constituição real religiosa até às últimas consequências. Eske Bockelmann no seu livro Im Takt des Geldes [Ao compasso do dinheiro] mostrou, de resto, como no misticismo tardio já se revelam afloramentos da abstracção real moderna e da sua lógica funcional.

 

O primeiro panteísta consistentemente monista na história da filosofia e da religião também foi então Baruch Espinosa (1632-1677), cuja reflexão coincide exactamente com a “data de Bockelmann” da transformação concluída em grande parte inconscientemente (reflexiva apenas indiretamente) para a moderna abstracção real e lógica funcional do dinheiro. Se, portanto, a “descoberta da imanência” se situa em Espinosa (mesmo na própria interpretação ideológica de Antonio Negri), então trata-se da transição para a moderna e paradoxal “transcendência imanente” ou transcendentalidade; com efeitos de longo alcance para o iluminismo e para a metafísica materialista (como é o caso justamente também de Negri).

 

Ora que terá a ver com a “materialidade estrita” pré-moderna. (também com referência a Bockelmann) aquilo que é invocado por Wallner & Cª? Tal refere-se simplesmente às coisas imanentes ao mundo como respectivas “substâncias” próprias. Certamente o leite era leite, um rabo era um rabo, e não “expressão” imanente ao mundo de alguma outra coisa, ou seja, não era a mera manifestação da abstracção transcendental do valor. Mas isso não significa que leite e rabo não estivessem subordinados a um geral e abstracto. Só que este geral e abstracto era estritamente transcendente, leite e rabo estavam igualmente “em Deus”, mas apenas enquanto este é sua transcendência ou “superioridade ao mundo”, sendo eles substâncias próprias no mundo. O rabo estava em Deus, mas nem por isso Deus estava no rabo sem mais. A abstracção nominal por isso mesmo não era uma abstracção real. Isto mudou com o aparecimento do patriarcado moderno produtor de mercadorias. O transcendência “supra-sensível” da metafísica real da constituição religiosa pré-moderna, no entanto, era precisamente o pressuposto para que pudesse haver uma “materialidade estrita” de substâncias imanentes ao mundo. Contudo essa materialidade substancial imanente ao mundo não existia só por si, mas estava sujeita ao sistema de representação pessoal senhorial das “relações de relacionamento com Deus” metafísicas.

 

Encontramos constelações muito semelhantes de imanência e transcendência, do mundo e de Deus, por exemplo na Índia antiga, se não nos limitarmos eurocentricamente à história ocidental. Por exemplo, Heinrich Zimmer diz na sua obra de referência sobre a metafísica indiana do Bramanismo: “Não constituía para a divindade nenhuma ruptura com o seu Além o facto de ela temporariamente desempenhar um papel activo no campo de manifestação da natureza sempre em acção. De acordo com a mitologia indiana, a descida consiste apenas no envio de uma minúscula partícula (amsha) da substância supramundana da divindade infinitamente acima do mundo (!)...” (Heinrich Zimmer, Philosofie und Religion Indiens [Filosofia e religião da Índia], Frankfurt/Main 1973, primeira edição inglesa 1951, p. 349). Da mesma forma nos Bhaktas do tantrismo : “Eles dizem que o mundo é uma manifestação do poder e glória de Deus. Deus criou tudo isto: o céu, as estrelas, a lua, o sol, as montanhas, os mares, os homens, os animais. Todos eles constituem a sua glória. Ele está em nós, nos nossos corações. Mas também está lá fora” (ibid, p. 500). Mais uma vez, o mundo está “em Deus”, como sua emanação e influenciado pela sua “descida”; mas isso pressupõe justamente que ele está “também fora”, é transcendente, está fora do mundo. Só assim as diferentes substâncias no mundo podem ser tratadas como “estritamente materiais”, como existentes cada uma por si já “em Deus”, estando subordinadas às suas representações pessoais. É uma metafísica diferente, mas “é uma” metafísica.

 

A tarefa da teoria crítica da dissociação-valor consiste em demonstrar e destruir o carácter de metafísica real da modernidade, contra a falsa evidência de uma constituição “pós-metafísica” diferente das relações pré-modernas. Isso exige uma teoria da história que evidencie a diferença entre a metafísica real pré-moderna e a moderna, incluindo as respectivas reflexões teológicas e filosóficas (metafísicas). Wallner & Cª. colocam o problema de pernas para o ar e fazem simplesmente confusão conceptual e falsificação da história; eles distorcem toda a história da religião e da filosofia na sua mania ideológica de absolutização da diferença, invertendo simplesmente o problema da relação entre modernidade e pré-modernidade; e na realidade de modo totalmente contrário aos factos. A afirmação de uma estrita imanência ao mundo das constituições pré-modernas não é o resultado de uma investigação imparcial, mas o postulado improvisado ao qual deve ser subordinado manifestamente a posteriori e de modo arbitrário material aparentemente a condizer, para satisfazer a vontade apriorística ou a necessidade de promover uma política de demarcação do conceito de “história de relações de fetiche”. É como mudar o nome dos Himalaias para Pacífico, devendo o Pacífico a partir de agora chamar-se Himalaias e exigindo-se ao mundo que se desfaça em reverência perante tal originalidade. Quem doravante ainda usar os nomes antigos pensa de modo “tradicional”. Infelizmente, no caso desta reinterpretação e deslocação conceptual, trata-se apenas de um grosseiro abuso teórico e histórico. Como já relativamente à relação histórica geral entre capitalismo e religião, também agora relativamente ao conceito de metafísica e ao problema da transcendência que lhe estão associados Ulrich não abriu qualquer “terceiro olho”. A musa do pensamento unilateralizado e absolutizado da diferença revela-se como a “mãe de todas as confusões”; o seu efeito “inspirador” é mais parecido com o da aguardente de batata destilada espontaneamente, cujo consumo não traz clarividência, mas pode obrigar a chamar o cão-guia.

 

Mas o absurdo tem método. Pois a inversão do problema da metafísica não só leva a total confusão conceptual, mas também implica uma possível reversão da intenção crítica. Nomeadamente, se a constituição religiosa já não representa qualquer relação de fetiche, devendo ser considerada “puramente imanente ao mundo”, “estritamente material” etc. (e a modernidade como tendo apenas “projectado a sua própria miséria metafísica na pré-modernidade”, como Haarmann afirmou), então ela também já não cai sob a crítica meta-histórica no contexto da nossa actual crítica radical do capitalismo, mas torna-se já quase uma projecção positiva; poder-se-ia obter algo dela. Ela ameaça tornar-se num “ainda não” em termos de utopia retrógrada; pois é considerada deste ponto de vista como ainda não acometida pelos males da metafísica real que só são atribuídos à modernidade. Mas a diferente constituição metafísica real das sociedades pré-modernas causou à sua maneira própria brutais coerções, fricções, relações de poder, guerras, miséria e assim por diante, justamente porque de maneira nenhuma assentava numa “materialidade estrita” no sentido de reprodução autodeterminada em conjunto, mas sim numa determinação metafísica da transcendência.

 

O atrevimento de criticar o capitalismo porque ele também seria uma religião é de muito curto alcance e permanece preso no pensamento iluminista. Mas a reversão do problema da metafísica por Haarmann, Ulrich e Wallner também implica a este respeito uma simples inversão: a saber, o atrevimento de criticá-lo agora porventura ao contrário, por ele já não ser uma religião, cuja constituição teria sido de modo tão maravilhoso “estritamente material” e supostamente dando às coisas do mundo o que lhes é devido, quando na verdade estas foram aí simplesmente submetidas a uma determinação metafísica diferente. Ulrich e Haarmann demarcam-se profilaticamente desta interpretação óbvia de modo puramente superficial, afirmando que não devem “ser invocados ‘os bons velhos tempos’ à maneira contra-iluminista” (Haarmann nos seus textos do workshop sobre o conceito de paz entretanto publicados na homepage do grupo saído da Exit!) e que é preciso “precaver-se… contra a idealização ingénua das relações pré-modernas” (Ulrich, no mesmo local, no comentário a um discurso do Papa). Mas tais declarações não passam de formulações álibi, que de modo nenhum são abrangidas pelo desenvolvimento imanente da argumentação, revelando apenas que foi aqui sentida uma incerteza a que é preciso dar cobertura.

 

O que já se viu em Wallner, ao esconder o carácter das relações de fetiche (mesmo pré-modernas) como relações de dominação, torna-se aqui ainda mais claro: o constructo da metafísica da diferença de uma imanência ao mundo pré-moderna “estritamente material” constitui um declínio do potencial crítico da reflexão da teoria da dissociação-valor que se pretende transplantar para um sistema de referência diferente, na verdade incompatível. A rejeição do conceito de “história de relações de fetiche” é apenas um veículo para a ruptura fundamental com a elaboração teórica da crítica da dissociação-valor em geral.

 

 

9. Da divisão de épocas ao relativismo da história

 

Chegamos agora ao último ponto da suposta “avaliação” de Wallner, ou seja, a divisão de épocas. A partir da determinação redutora e francamente errada como se viu do conceito de fetiche feita por Wallner, segue-se para ele uma divisão em idade mágica, idade religiosa e idade moderna ou “materialista”. Esta divisão de épocas, imputada ao conceito de “história de relações de fetiche”, não saiu da cabeça do próprio Wallner; veio do antropólogo J. G. Frazer (1854-1941), que a formulou na sua famosa obra Der Goldene Zweig [O ramo de ouro; original: The Golden Bough] (1928). Está a acontecer aqui com Wallner o mesmo que com o autor da Krisis residual Ernst Lohoff que notoriamente omite as suas referências. Embora o trabalho de Frazer trate material bastante interessante obtido a partir de pesquisa de campo, a sua grelha de interpretação segue um evolucionismo superficial na linha positivista de Comte e Spencer (um esquema semelhante de evolução encontra-se de resto em Freud em Totem und Tabu [Totem e tabu] e também pode ser atribuído como tal ao pensamento positivista da evolução). Althusser chamou oportunamente e com razão a este evolucionismo “hegelianismo para pobres”. Wallner ainda enriquece este constructo com alguns pedaços de materialismo histórico vulgarizado, por exemplo sobre a suposta importância da “sedentarização” para a passagem à “fase religiosa” (Exit 3, p. 36 e sg.)

 

Trata-se no seu conjunto de uma classificação esquemática de base positivista, de uma espécie de zoologia evolucionista da história, com que Wallner se limita a caracterizar os seus próprios preconceitos (talvez também baseados na biologia evolucionista). Tal como aconteceu com o conceito de dissociação, por ele apresentado de modo completamente deturpado e enquadrado num esquema histórico, ele executa em seguida uma reviravolta, “refutando” então os seus próprios preconceitos e acreditando ter assim atingido o conceito de “história de relações fetiche”. Mas é duvidoso que ele tenha verdadeiramente abandonado o evolucionismo positivista e esquematicamente classificador e que este não esteja antes de volta num entendimento supostamente “mais avançado”. De qualquer modo, definitivamente, a “divisão de épocas” de Wallner não tem nada a ver com o conceito de “história de relações de fetiche”. Esta abordagem representa uma abstracção necessária da teoria da história que deve passar primeiro através do material histórico e não pode assumir quaisquer hipóteses arbitrárias apressadas independentemente dele, nem certamente uma divisão de épocas abrangente à maneira das teorias positivistas da evolução ou do “materialismo histórico”. Até agora apenas foram trabalhados alguns conceitos básicos e se começou a elaborar uma diferenciação histórica entre constituição (religiosa) pré-moderna e constituição moderna como metafísicas reais diferentes. Wallner “refuta” (e mesmo assim sem razões suficientes) mais uma vez apenas a sua própria suposição que ninguém tinha formulado senão ele.

 

Da mesma forma leviana contorna Wallner o problema das transições de uma formação histórica para outra e em especial o processo de constituição efectiva da própria modernidade. Assim ele supõe para a anterior constituição feudal-cristã uma dinâmica própria e de crise quase-económica, como analogia imaginada com o capitalismo. Pressupõe assim implicitamente uma socialização moderna de modo anacrónico, pois só nesta se pode chegar a uma dinâmica de crise “economicamente” mediada. Nas sociedades pré-modernas Wallner postula neste sentido um suposto “alimento” dos orçamentos familiares (da antiguidade e da Idade Média) por meio da expansão militar e da cobrança de tributos em espécie. Estas constituições reais anteriores assentariam portanto numa espécie de acumulação de riqueza tal e qual como o capitalismo, apenas na forma de bens naturais (roubados). O fim teria vindo através de uma “barreira exterior” desta acumulação real natural: “Esta repetida acumulação de riqueza material só foi possível enquanto houve a possibilidade de estender cada vez mais as fronteiras do império da ‘economia’ dos orçamentos familiares. Uma vez encontrado um vencedor neste jogo de pirâmide invertida, ou restando alguns impérios – os impérios cristão, islâmico e asiático – e entre eles nada mais para submeter, o desenvolvimento (sic!) anterior tinha de cessar... Um mundo cujos orçamentos familiares se tenham esgotado, porque já não há mais qualquer exterior a cujas custas eles pudessem obter a sua alimentação, consuma uma viragem mental (sic!), pressupondo e localizando agora a riqueza no seu interior...” (Die Leute der Geschichte [As gentes da história], Exit 3, p. 42 sg.)

 

Este constructo abusa do material histórico sob diversos pontos de vista. Assim, a riqueza dos tributos em espécie ou a sua distribuição não estava relacionada de modo nenhum com “os” orçamentos familiares em geral, mas apenas com os centros do poder e nestes com determinadas representações; abstraindo de situações específicas no fim do império romano e nestas mais uma vez apenas no caso de certas distribuições de cereais à plebe. A maior parte da reprodução, especialmente na constituição medieval cristã, tinha lugar no interior de estruturas de dominação e em contextos locais ou regionais (muito diferentes), não enquanto expansão externa. Em geral, as trocas de reprodução material em grandes espaços estavam ligadas apenas em redes finas e de malha larga; as estruturas de dominação das “representações de Deus” não representavam qualquer socialização, mas assentavam nas relações de reprodução de modo relativamente solto.

 

As contribuições internas em natureza foram em regra decisivas, não os tributos exteriores (as cruzadas, por exemplo, ou mesmo a colonização medieval do Oriente contribuíram de facto para o expansionismo europeu muito posterior, mas não seguiram uma dinâmica “económica” socialmente constituída e também não chegaram a constituir relações tributárias exteriores de longo prazo como nos impérios antigos). Os “orçamentos familiares” na sua totalidade não foram “alimentados” exteriormente, pelo contrário, eles próprios alimentaram a estrutura de poder das “representações de Deus” através da sua produção agrária. Assim, a riqueza nessas situações já estava sempre sobretudo “no seu interior”, tendo a expansão economicamente mediada começado apenas com o mercado mundial capitalista, como Marx e Engels descrevem eloquentemente no Manifesto Comunista. O “dentro” do capitalismo é o seu próprio espaço especificamente formado, o qual no entanto já é sempre o mundo inteiro virtualmente e como tal se vai tornando gradualmente. Wallner, não conseguindo determinar conceptualmente o problema das “relações internas” e das “relações externas” específicas de cada formação, supõe uma referência mundial “económica” pré-moderna para a modernidade e uma moderna para a pré-modernidade. Mas uma vez que antes do capitalismo não havia qualquer dinâmica economicamente mediada, também não havia qualquer “desenvolvimento” no sentido de acumulação nem o respectivo limite, o que por sinal o próprio Wallner sabe algumas páginas antes, quando diz sobre o entendimento dos seres humanos pré-modernos: “... (não) o desenvolvimento, mas a continuidade constituía o sentido, o propósito e o objectivo do seu esforço social” (ibid., p. 23).

 

As inconsistências continuam quando Wallner se põe a especular sobre o “esgotamento” da lógica de acumulação em natureza da pré-modernidade uma vez consumada a “divisão do mundo”. O caso foi exactamente o contrário no final da Idade Média, quando se abriram espaços quase incomensuráveis de expansão através das viagens de descobrimento e da colonização das Américas. Havia uma quantidade de “exterior” que ainda nem podia ser ocupada; cerca de metade do mundo. Mas a colonização seguiu já uma lógica diferente, a da “riqueza abstracta” (Marx), inicialmente sob a forma da fome de ouro absolutista; um novo impulso, que em nada resultou do esgotamento quase-económico da “alimentação” natural pré-moderna através da expansão. O mundo da constituição religiosa nunca seguiu uma dinâmica económica; Wallner aplica aqui o critério do materialismo histórico vulgar, que ontologiza a “economia” como força motriz da história. O que não o impede de voltar a cair simultaneamente no erro oposto, caracterizando a transformação principalmente como uma “viragem mental”, um acto consciente, quando se trata de processos de transformação histórico-sociais em que as “viragens mentais” representavam apenas um momento e em que de resto “a economia” em geral apenas começava a surgir.

 

Wallner, na realidade, precisa do seu constructo, que mesmo em termos de teoria da história cai num anacronismo teórico e no qual ele hipostasia certos processos de expansão de “impérios” pré-modernos numa dinâmica de acumulação natural, apenas para os seus objectivos ideológicos. A metafísica da diferença é estendida ao problema da transformação da constituição pré-moderna na moderna. Pretende-se que esta terá ocorrido na forma de uma súbita e abrupta “ruptura”, que só pode ser explicada por uma (anacrónica) dinâmica de crise pré-moderna. Wallner toma esta abrupta “ruptura” por uma verdade universal, afirmando que “... o fim de cada mundo antigo chegou rapidamente e como colapso sobre as pessoas, os sucessores encontraram também rapidamente pronta uma nova explicação do mundo, uma nova visão sobre eles mesmos” (ibid., p. 54 sg.) Diz-se que “sempre” terá sido assim no final de uma formação histórica. O limite interno absoluto da acumulação do capital, muitas vezes referido como “tendência para o colapso” do capitalismo, é estendido para trás como “limite externo” analogamente absoluto da constituição pré-moderna, portanto carregado de filosofia da história – e isto vindo de um desprezador de toda a filosofia da história (sob a qual ele gostaria de subsumir pejorativamente o conceito de “história de relações de fetiche”). Um autogolo clássico.

 

Infelizmente Wallner não nos diz tão exactamente quando terá então ocorrido esta rápida “ruptura” entre a pré-modernidade e a modernidade. Por um lado, no seu contexto de discussão é por vezes procurada a “data de Bockelmann” (século XVII). Por outro lado, ele próprio atribui sem rodeios a Luis XIV claramente a história pré-moderna de uma “alimentação” natural: “‘L 'état c'est moi' proclamou um dos reis desta época já então no ponto máximo do seu declínio. Se tivermos em mente que état inclui tudo – o Estado, as condições, o estatuto, os meios de pagamento etc. – percebemos que Luis XIV se identifica com esta unidade e a incorpora numa medida que nunca mais podemos perceber e cuja amplitude nunca podemos chegar a compreender. Esses tempos já lá vão” (ibid, p. 42).

 

A atribuição de Wallner constitui um erro de principiante que não passaria em qualquer seminário de iniciação à história. Luís XIV já não é uma “representação de Deus” pessoal na acepção da constituição religiosa pré-moderna, pelo contrário, o seu regime já pertence à história da modernização, como todo o absolutismo. Por isso ele também quase coincide com a “data de Bockelmann” e com a data de Espinosa. Bockelmann comprime a mudança para a lógica funcional do dinheiro ao ritmo do compasso na década de trinta do século XVII, Espinosa viveu 1632 a 1677, Luis XIV de 1643 a 1715. O absolutismo, com a eliminação dos poderes intermédios pré-modernos, destruiu justamente a estrutura de dominação das “representações de Deus”; o seu “direito divino” constituiu uma transformação destas no poder objectivado moderno, e o “Rei Sol”, como warlord [em inglês no original: senhor da guerra] real no contexto da revolução militar protomoderna, tinha mais em comum com um “maximo leader” das ditaduras de imposição do capitalismo no século XX do que com um faraó, um imperador romano ou um imperador medieval.

 

Se Bockelmann constata uma “mudança” no século XVII, e justamente uma mudança concluída de modo inconsciente, isto não está em contradição com um momento de continuidade do desenvolvimento ou com um conceito de processos de transformação. Pelo contrário, mudanças ou “rupturas” pressupõem a continuidade de transformações. A história das transições contingentes de uma constituição histórica de fetiche para outra inclui sempre uma dialéctica de continuidade e descontinuidade ou “ruptura”. A continuidade é tão pouco absoluta como a descontinuidade; nem há um continuum puramente determinista, nem uma descontinuidade puramente contingente. Nos limites de uma formação ou constituição de fetiche e no intermúndio entre esta e uma nova, diferente (ou até mesmo no rompimento das relações de fetiche em geral) abrem-se espaços de contingência. Mas essa contingência, em primeiro lugar, ainda tem uma história irreversível já pressuposta; e, em segundo lugar, cada acção de longo alcance no espaço histórico aberto já representa de novo uma fixação ou uma mudança de linha.

 

Wallner ignora esta dialéctica e gostaria de a dissolver de novo unilateralmente na absolutidade da “ruptura”. Mas com isso ele embrulha-se na historicidade real, que não se harmoniza com tal dissolução. O lapso embaraçoso com a classificação de Luis XIV é apenas um erro particularmente grosseiro neste contexto. Na realidade, o capitalismo teve mesmo uma longa série de processos de transformação antes que pudesse sequer começar a processar “sobre os seus próprios fundamentos”. Processos que incluem a revolução militar protomoderna, o protestantismo, o surgimento do absolutismo, o iluminismo, etc. e entre eles as respectivas rupturas e abalos catastróficos que acompanharam o processo de transformação. Portanto, não há uma irrupção “repentina” do capitalismo, nem tão pouco uma continuidade evolutiva linear do seu “surgir”. É preciso voltar mais tarde muitas vezes à discussão mais aprofundada do conceito de “história de relações de fetiche”, baseada no problema da contingência, continuidade e ruptura. A redução que Wallner faz da transição de uma constituição para outra como ruptura súbita falha completamente esta problemática. Quando é que ocorreu então esta “ruptura”? Na realidade, ela não ocorreu como Wallner afirma, mas num processo de transformação de vários séculos, do século XV até ao início do século XIX, com uma relação dialéctica de continuidades e rupturas.

 

Wallner assim, como se vê, não nega só o momento de continuidade de toda a história anterior no plano de abstracção do conceito de relações de fetiche. Também nega o momento de continuidade no interior da transição contingente de uma constituição de fetiche para outra e especialmente da constituição pré-moderna para a moderna. Como se pretende que as formações históricas se enfileirem absolutamente diferentes e sem qualquer ligação, assim também cada nova constituição há-de cair subitamente do céu sem qualquer transformação. A metafísica da diferença é completada com a metafísica da contingência, da descontinuidade e da ruptura. Wallner refere expressamente esta pura ideologia como “premissa” da sua abordagem: “Não deve existir qualquer transição histórica em que uma época evolua para a próxima, pelo contrário, devem ser salientadas as fronteiras distintas entre duas épocas, o colapso de uma e a completa novidade da outra que entra no mundo (sic!) sem percurso prévio” (Exit 3, p. 35).

 

Também neste ponto mais uma vez se apresenta curta a consciência teórica há muito enfraquecida de Jörg Ulrich. Assim ele pergunta: “Continuidade ou ruptura, ou unidade de continuidade e ruptura? Wallner optou claramente por uma ruptura sem continuidade” (Jörg Ulrich, „Der” Mensch und die Leute und die Religion und der Kapitalismus und so weiter [“O” ser humano e as gentes e a religião e o capitalismo e por aí fora]). Perante isto, Ulrich afirma com toda a razão: “A continuidade, na minha opinião, já reside no conceito e na teoria da ruptura. Pois o que haveria de ser uma ruptura senão uma ruptura dentro de uma continuidade? Uma ruptura pressupõe que há algo que é rompido – e isto é precisamente a continuidade. Não há ruptura sem rompido” (ibid.). Mas, assim como no problema da relação entre capitalismo e religião e no problema da metafísica, também no problema da relação entre continuidade e ruptura Ulrich manifesta, no breve prefácio ao seu texto de discussão escrito posteriormente, apenas a capitulação teórica incondicional – sem qualquer fundamentação argumentativa nem esclarecimento conceptual, tal como no caso das outras questões: “A teoria das rupturas e desastres históricos”, diz ele lapidarmente, “abre uma perspectiva que tem de ser designada por nada menos que fascinante” (ibid., prefácio). A questão que permanece é onde está realmente o “fascínio” quando a argumentação de Wallner é tão deficiente, confusa e insegura que isso não pode passar em claro. A resposta, provavelmente, só a musa do desarmamento teórico a conhece.

 

Depois de teoricamente mais ter tropeçado nos próprios pés do que ter prosseguido, Wallner ainda contrapõe condescendentemente ao conceito de “história de relações de fetiche”, a partir de uma “superioridade” imaginada, um testemunho simultaneamente paternalista e pretensamente aniquilador: “Ora esta tentativa apresenta-se como insuficiente e a running gag [em inglês no original: piada continuada] da crítica do valor fundamental, que consiste em considerar a história da humanidade como história de relações de fetiche, será dissolvida na continuação da teoria da dissociação-valor e terá de desaparecer dela” (Exit 3, p. 61 sg.) É exactamente isso que não vai acontecer com certeza, porque Wallner apenas “refutou” sempre o seu próprio espantalho e os próprios preconceitos nele contidos. A questão agora, no entanto, é onde é que ele próprio foi parar.

 

Como já referi no início da minha polémica, Wallner gostaria de fingir que conseguiu ultrapassar o problema do carácter aporético de qualquer reflexão sobre a teoria da história. O critério pelo qual ele rejeita o conceito de “história de relações de fetiche” e imagina ter ultrapassado a moderna filosofia da história em geral é simples demais para poder ser verdade: Ele age como se pudesse assumir o ponto de vista autêntico dos tempos passados ou, se isso não funcionar (como ele sabe muito bem), como se pudesse fazer jus a essa autenticidade passada, sem ter de ver a história com os olhos da crítica que está indissoluvelmente ligada à crítica do capitalismo e a partir desta incluir também na crítica as formações anteriores num certo nível de abstracção, não negando o carácter diferente de cada uma. Wallner, pelo contrário, nega a visão crítica das formações pré-modernas e assim a explicação dada pela teoria da história em geral: “Supomos (a) explicação, a fim de ter algo que faça ligação, que nos dispense do procedimento hermenêutico...” (ibid., p. 62). Contra a “explicação” da teoria da história a partir de um ponto de vista superior (relações de fetiche), que ele atribui sem mais à filosofia teleológica da história, Wallner coloca portanto a hermenêutica da história de uma pretensa “empatia” com a autenticidade de formas de consciência passadas autónomas.

 

Assim, ele postula para as formações pré-modernas um critério de reflexão que não é critério nenhum: “A nossa questão, portanto, é o que distingue este mundo do nosso, como ele se via a si mesmo, como ele se abre para nós quando tomamos a sério as suas notícias” (Exit 3, p. 29). O critério de tomar qualquer coisa “a sério” por princípio é já por si acrítico e a-histórico; de resto também em termos dos próprios mundos passados, pois também nestes nem tudo era tomado “a sério”, caso contrário não teria havido lutas de interpretação, nem provas de mentiras, falsificações, etc. O critério de Wallner equivale a um positivismo vulgar da percepção, e ainda por cima particularmente ingénuo (pelo menos caindo na ingenuidade da aparência), que naturalmente continua filtrado pela modernidade e não se aproxima nem um milímetro da autenticidade das formas anteriores de consciência. De resto ele também faz injustiça à hermenêutica da história, que mesmo na sua condicionalidade ideológica não exige nenhum “levar a sério” positivista (no próximo ponto abordarei o significado ideológico da hermenêutica da história na filosofia burguesa da história e no final entrarei novamente na crítica detalhada deste “modo de proceder”).

 

Wallner pensa que é capaz de fazer valer a “visão” da humanidade passada em falsa imediatidade contra a visão moderna em geral (incluindo a nossa visão radicalmente crítica no final da modernidade): “Assim nós distinguimos entre a antiguidade romana e a Idade Média germânica, enquanto nesta distinção papas, reis e imperadores não nos vêm à cabeça no mesmo sentido que cavaleiros ou camponeses, para já não falar de servos e escravos” (ibid., p. 22). Ele considera que constitui uma objecção o facto de “que uma testemunha da Idade Média europeia seguramente não iria entender o que queremos dizer com a diferença entre a antiguidade e o feudalismo” (ibid.). E significativamente dá a entender: “Devemos... ter sempre em mente que os nossos pontos de vista sobre Roma são fundamentalmente diferentes dos pontos de vista de Roma sobre si mesma” (Wie es mit den Leuten der Geschichte weitergeht [Como prossegue a história com as gentes], ibid). Wallner age como se fosse “realmente” inadmissível olhar para a história de forma diferente da dos olhos das respectivas “testemunhas”; ele defende num meta-plano uma espécie de “história de baixo”. Isto já num sentido temporal bastante banal é tolo, porque assim também não deveríamos falar vendo a partir de hoje, por exemplo, relativamente ao ano de 1629, da Guerra dos Trinta Anos, porque as “testemunhas” nesse ano não poderiam estar conscientes de que se tratava disso. E, é claro, a Idade Média não poderia ter qualquer noção de si como Idade Média, caso contrário o futuro teria de ser já conhecido. Mesmo se nós criticamos os conceitos de época herdados do iluminismo e os modificamos de acordo com a nossa abordagem crítica, seria não só impossível, mas também disparatado reproduzir “para nós” a “consciência da época” de cada um dos tempos passados enquanto válida “para eles”.

 

Mas é claro que não se trata apenas de um problema de classificação do tempo, mas sobretudo da abordagem da teoria da história e dos seus conceitos. Obviamente que Wallner gostaria de posicionar o seu positivismo do “levar a sério” contra o conceito de “história de relações de fetiche”. O argumento seria que nenhum cônsul, imperador, papa, legionário, agricultor, escravo etc. da antiguidade ou da Idade Média poderia fazer fosse o que fosse com este conceito, porque ele foi formulado precisamente a partir da localização histórica específica da crise no final da modernidade. Wallner ignora aqui propositadamente que o mesmo se aplica em perfeita igualdade ao seu contra-conceito de absolutização da diferença e da contingência históricas, uma história de puras descontinuidades e “rupturas” puras. Com ela os imperadores, os papas, os camponeses etc. teriam ficado igualmente estranhos, porque tal pensamento também seria totalmente incompatível com a sua “relação com o mundo”.

 

Na realidade não se trata aqui de pôr em debate a autenticidade das formações passadas e da sua consciência de si mesmas perante uma reflexão da teoria da história. É apenas um truque com o qual Wallner gostaria de imunizar o seu próprio entendimento bem actual da história, sem ter de argumentar no próprio plano da teoria da história. A oposição é entre o conceito de uma “história de relações de fetiche” que inclui uma dialéctica de diferença e semelhança, continuidade e descontinuidade/ruptura, por um lado, e o conceito de uma história de diferenças, descontinuidades e rupturas absolutas que nega essa dialéctica, por outro.

 

Se tomarmos agora como critério a medida em que estes dois conceitos opostos satisfazem o “interesse condutor do conhecimento”, a importância ou valorização da história no sentido da crítica radical do ponto de vista da actual situação de crise e com o objectivo de suplantar o capitalismo, é fácil de ver que o conceito de Wallner de modo algum pode satisfazer este critério. A absolutização da diferença rasga qualquer conexão entre a crítica de hoje e o estudo das formações pré-modernas, que então, sob o pretexto de uma “abordagem hermenêutica”, apenas pode reduzir-se a levar por diante pedaços de saber sobre o passado à boa maneira da burguesia culta, a uma “erudição” vazia sem pretensão crítica. Esta argumentação representa um “desenvolvimento” da teoria da dissociação-valor mais ou menos na mesma medida em que a pintura de aguarela como hobby de esposas frustradas de notabilidades de província pertence à vanguarda artística.

 

A absolutização da descontinuidade e da ruptura faz desaparecer o problema da mediação, sendo os processos de transição negados, de modo que sua investigação é inútil – tanto para o passado como para o futuro. O capitalismo, o patriarcado moderno produtor de mercadorias é “separado” sem transições tanto para a frente como para trás. Tal pensamento é incapaz de conceber qualquer ruptura consciente mediada, pelo contrário, vai dar na pura afirmação, justamente através do postulado de uma ruptura repentina.

 

Do seu próprio fantasma de uma divisão de épocas positivistamente evolucionista, que ele atribui ao conceito de “história de relações de fetiche, Wallner simplesmente cai num duplo relativismo histórico, negando qualquer momento abrangente, tanto relativamente às diferentes formações históricas em geral, como também relativamente às transições contingentes. De certa maneira, Wallner, Haarmann e Ulrich, através da sua ruptura com o contexto da Exit em grande medida sem mediação nem continuidade, sem enfrentarem uma discussão de conteúdos, francamente também executaram pessoalmente a sua ruína teórica. No entanto, não se trata apenas de um decisionismo pessoal, mas este deve ser colocado no contexto da crise da subjectividade pós-moderna, a mesma que produz socialmente tal atitude e ideologia. Antes de penetrar mais neste contexto, no entanto, é preciso esclarecer a continuidade involuntária do pensamento da filosofia burguesa da história, no qual se insere esta metafísica da descontinuidade; queiram os seus representantes admiti-lo ou não.

 

 

10. Alinhar com o processo de desmoronamento da filosofia burguesa da história?

 

Como já se viu relativamente à “visão da história” do ponto de vista específico da modernidade, Gerold Wallner ignora em grande parte as referências teóricas no seu raciocínio; a sua argumentação em lado nenhum está mediada com o progresso da reflexão burguesa sobre a teoria da história e não faz qualquer referência à respectiva literatura, pelo contrário, permanece solta, ao estilo de um “pensamento próprio” que nunca sabe que já está sempre num contexto, correndo o risco de se adaptar inconscientemente a uma tendência que já está pré-determinada e leva muito longe de qualquer intenção crítica. Se Wallner no posfácio de seu artigo diz com orgulho: “Audaciosamente contei a história pertencente ao paradigma moderno, quase ao fóssil característico da modernidade” (Wie es mit den Leuten der Geschichte weitergeht [Como prossegue a história com as gentes], ibid.), pois isso não será assim tão “audacioso”, ou aparecerá como “audacioso” apenas no interior do discurso até aqui havido da crítica da dissociação-valor, ao passo que na realidade o argumento se liga simplesmente a um discurso burguês há muito definido fora do nosso campo de crítica. Wallner parece assim um pouco como aquele homem famoso que isolado na selva reinventa a roda e com isso fica feliz, quando já há auto-estradas cá fora.

 

O seu raciocínio refere-se implicitamente a um discurso que já circula há 150 anos pela discussão académica da teoria da história. Trata-se da oposição entre “verdade da história” (universalismo) e “historicidade da verdade” (relativismo), entre “explicar” (filosofia da história) e “compreender” (hermenêutica), entre continuidade teleológica (metafísica do progresso numa base ontológica) e descontinuidade/ruptura (metafísica da contingência), entre universalidade (ponto de vista trans-histórico) e particularidade (“individualidade” das épocas, sucessão em série de “práticas”) da história. Para uma crítica radical, o importante seria, como em todas as oposições polares do pensamento burguês, decifrar a sua identidade negativa e chegar a uma maneira de pensar para além dela. Wallner, no entanto, toma partido visivelmente apenas por um lado da polaridade burguesa, ou seja, pelo relativismo, pela “dimensão da compreensão” ou hermenêutica, pela metafísica da contingência ou da descontinuidade e pela singularidade/individualidade ou particularidade abstracta do objecto. Na sua ânsia de subsumir denunciatoriamente o conceito de “história de relações de fetiche” sob a clássica metafísica da história no sentido de Hegel ou do materialismo histórico, ele cai apenas do outro lado da imanência polar da teoria da história do pensamento burguês.

 

No entanto, esta polaridade imanente tem um conteúdo ideológico perfeitamente definido. É a oposição interna reencontrada entre iluminismo burguês e contra-iluminismo burguês (que deve ser entendido como a outra face do próprio iluminismo), entre racionalidade capitalista (androcêntrica) e irracionalismo (igualmente androcêntrico), entre pensamento progressista e reacção romântica, como também de algum modo na discussão da teoria da história enquanto oposição entre universalismo e relativismo, entre explicação (quase naturalista) e compreensão (intencional), entre continuidade “de acordo com uma lei” e descontinuidade contingente etc., oposição em que o lado contra-iluminista teve os seus principais representantes entre os filósofos, historiadores e teóricos da história no contexto da “ideologia alemã” ou dos seus antecedentes; e de facto com profundas repercussões na pós-modernidade, em parte através dos desvios franceses, onde elementos deste pensamento figuram agora por todo o mundo como suplantação meramente aparente da velha oposição, coincidindo cada vez mais com um apagar das oposições entre “esquerda” e “direita”, “liberal” e “conservador”. Este apagamento das antigas oposições mostra indiretamente a crise fundamental das bases sociais comuns, crise donde surge a exigência de uma crítica categorial da modernidade com base na teoria da dissociação-valor, que não tem nada a ver com a corrente contra-iluminista e que também tem de ser formulada justamente em termos de teoria da história. Uma vez que Wallner agora, sem reflectir sobre isto, se junta unilateralmente à corrente burguesa da teoria da história ligada à tendência do contra-iluminismo e aí enraizada, está a dirigir-se, é preciso dizê-lo desde já, para um terreno pantanoso no qual a crítica radical só pode perder-se.

 

Não se trata aqui apenas de uma polaridade estrutural do discurso moderno da teoria da história, mas também do seu tratamento em ligação com o desenvolvimento da sociedade, isto é, com a ascensão e crise do moderno patriarcado produtor de mercadorias. Estamos portanto perante uma “história da teoria da história” (ou da filosofia da história) que é mediada com a história interna do capitalismo e com os “interesses condutores do conhecimento” a ela associados, no sentido da respectiva auto-afirmação do sujeito masculino e branco ocidental (MBO), e que também se manifestou na visão da história e nas suas modificações.

 

Como “grandes orientações” aqui no essencial “cristalizaram-se três tipos de pensamento histórico: filosofia da história, historicismo e pós-história... A filosofia da história dominou do século XVIII até ao início do século XIX, o historicismo é essencialmente um fenómeno do século XIX e início do século XX, a crítica radical da filosofia da história e a pós-história pertencem à segunda metade do século XX” (Johannes Rohbeck, Geschichtsphilosophie [Filosofia da História], Hamburgo 2004, p. 21). Claro que isto é uma divisão esquemática, mas que pode ser útil para uma orientação básica, como visão geral. Na verdade, essas três “grandes orientações” sobrepõem-se, há vários remakes e, como na história sócio-económica da sociedade (história da modernização) também na história da teoria da história se encontram “dessincronizações”. Mas essas diferenciações não podem ser aqui abordadas.

 

A filosofia da história em sentido estrito, como já se viu, pertence primeiramente ao iluminismo e à sua continuação até Hegel. Caracteriza-se por duas marcas essenciais, a saber, em primeiro lugar, por um fundamento ontológico trans-histórico e, em segundo lugar, por uma determinação teleológica; a história como “colectivo singular” deve, por conseguinte, ter uma orientação. O fundamento ontológico já foi lançado nos princípios do iluminismo como ontologia a-histórica ou trans-histórica da razão; ou seja, “da” razão “do” homem como tal, em que o “homem” era explicitamente entendido como o sujeito masculino e branco ocidental (MBO) (como em Kant). Daí resultou também no contexto da colonização externa a desqualificação racista da humanidade não-europeia, especialmente dos negros africanos, como semi-homens “irracionais”.

 

Este fundamento ontológico foi posteriormente completado por uma teleologização da história culminante em Hegel; como já foi mencionado, em conexão com a expansão social do “trabalho abstracto” e com base na sua entrada indirecta para a reflexão histórica, à medida que começou o desenvolvimento do capitalismo sobre os seus próprios fundamentos com a industrialização. De acordo com o desenvolvimento real, foi assim dinamizada a ontologia da “razão” e do “trabalho abstracto” e estendida para trás na história como sua “orientação final”, como processo ascendente de formas inferiores para formas superiores. Esta filosofia da história moderna clássica aproveitou a ideia pré-moderna de uma analogia entre o processo de crescimento dos indivíduos e o desenvolvimento histórico das sociedades (nisso um momento de continuidade na reflexão); mas agora já não no sentido do tempo agrário cíclico, como processo de ascensão e declínio, mas no sentido do tempo linear moderno do “trabalho abstracto”, como processo de desenvolvimento ascendente, justamente como metafísica do progresso. O fim temporal, a morte cai aqui significativamente fora da observação; a história linear só deveria percorrer a subida do estado irracional através das idades imaturas até à “situação definitiva” do MBO maduro, “adulto” (até Marx se refere nos Grundrisse aos gregos antigos como “crianças precoces”). Esta filosofia da história burguesa clássica, determinada ontológica e teleologicamente, pertence claramente ao optimismo capitalista desde a Revolução Francesa, cuja metafísica do progresso se referiu cada vez mais à encarnação da “razão” na ciência e na indústria, tendo a “razão” sido logo reduzida ao positivismo.

 

Marx e o marxismo viraram esta filosofia burguesa da história “de modo materialista” numa história da dialéctica de “forças produtivas e relações de produção”. Como noutras questões da reflexão filosófica, da política, da economia etc., também relativamente à filosofia da história este pensamento se concebe como “herdeiro” legítimo do iluminismo e do idealismo alemão, enquanto “a burguesia” teria atraiçoado a sua própria “herança”. Para Marx, este desenvolvimento é bastante fragmentário e de modo nenhum claro, porque também a este respeito o Marx “exotérico” e o “esotérico” não condizem; mas no marxismo do movimento operário encontra-se uma continuação muito linear e frequentemente mecânica da metafísica do progresso burguesa em trajes “materialistas”.

 

De facto, a filosofia burguesa da história, em paralelo com a viragem materialista do marxismo (e em defesa furiosa contra ele) continuou a desenvolver a sua “visão da história” de uma forma completamente diferente. Mesmo Hegel e a metafísica do progresso se tornaram objecto da crítica burguesa formulada na teoria da história do chamado historicismo. O historicismo negou cada vez mais o continuum de uma história de desenvolvimento ascendente da humanidade e, portanto, a “história dum colectivo singular”. Em vez disso, ele enfatizou a “individualidade” e “espírito” específico de cada época, épocas que já não podem ser ligadas por qualquer laço interior, mas devem estar numa sequência meramente contingente. O conhecimento histórico não será possível no sentido de uma “verdade da história” universal através do “esclarecimento” objectivo da teoria da história segundo o modelo das ciências naturais, mas apenas através de um “entendimento” (hermenêutica) como “empatia divinatória” (Dilthey) com o espírito da época e a sua “intencionalidade”. Como instrumento para esta compreensão foi desenvolvida a crítica das fontes (que Wallner refere de modo completamente errado; voltarei ao assunto no final com mais detalhe); como legitimação teórico-metodológica, o reconhecimento do carácter historicamente relativo da própria posição e do carácter interpretativo da ciência da história, que não poderia reivindicar nenhuma objectividade (ao contrário das ciências naturais).

 

Aqui também deve ser procurada a raiz do discurso das “duas culturas” (C. P. Snow), da oposição entre as ciências naturais e as ciências humanas; outra polaridade imanente ao pensamento burguês que deve ser suplantada, envolvendo a reflexão crítica as condições sócio-históricas de ambas as formas do saber. Se o historicismo se retirou para o entendimento como empatia (interpretativa), ele subjectivou a teoria da história de modo igualmente unilateral, tal como nas concepções positivistas ela foi inversamente transformada numa ciência pseudo-natural (à semelhança do que aconteceu no desenvolvimento da economia política). A polaridade imanente ao pensamento burguês emergiu a partir de então na teoria da história como oposição entre positivismo e hermenêutica, generalizada como a diversidade das abordagens de “ciências naturais” e “ciências humanas”. Implicitamente, com a subjectivação do pensamento da teoria da história através do historicismo, também a fundamentação ontológica trans-histórica do processo histórico foi questionada, mas ao mesmo tempo foi ainda mais reelaborada com conceitos ontológicos e categorias modernas ontologizadas. A dialéctica sujeito-objecto do pensamento moderno constituído na lógica do valor e da dissociação reproduz-se também na teoria da história; a subjectivização e relativização hermenêutica vira-se com rigidez ontológica em lei pseudo-natural (e vice-versa), como também se verá com mais detalhe em Wallner & Cª.

 

O reconhecimento pelo historicismo da relatividade da historicidade e da contemplação da história não seguiu qualquer interesse crítico contra o capitalismo, pelo contrário, estava ligado à sua afirmação incondicional. A modificação da “visão da história” burguesa seguiu aqui dois pontos de vista em função do interesse. Por um lado, essa relativização reflecte as contradições capitalistas gerais agravadas na industrialização e no surgimento do imperialismo nacional, sob cuja impressão a metafísica do progresso clássica começou a desaparecer. Após o marxismo do movimento operário ter “herdado” esta metafísica do progresso na forma invertida “de modo materialista”, o pensamento académico oficial virou-se, no sentido da afirmação, e não apenas em termos de teoria da história, num gesto de relativismo e cepticismo “doutos”.

 

Por outro lado, esta viragem burguesa da “visão da história” passou por um particular florescimento no contexto da constituição nacional alemã “atrasada” e da “ideologia alemã” daí surgida. O Império Alemão recém-fundado precisava de uma legitimação histórica específica, em que era preciso provar, contra o “universalismo ocidental”, a particularidade do sangue alemão, a “individualidade histórica” da germanidade fundada “na raça”. Em termos de filosofia da história, esta ideologia foi por sua vez universalizada como “individualidade” autónoma dos “povos”, épocas e culturas; e isto recorrendo a Herder, que já no final do século XVIII tinha sublinhado este ponto de vista. A metafísica da contingência da teoria da história e a hermenêutica da história no sentido de “empatia” para com os passados dilacerados, pensados como inacessíveis a qualquer “explicação” teórica e mistificados, têm as suas raízes claramente nesta beberagem da ideologia alemã, que remonta ao final do século XVIII.

 

Sob o impacto das guerras mundiais e da crise económica mundial na primeira metade do século XX, o historicismo foi dar na chamada pós-história, constituindo Nietzsche e Heidegger momentos de mediação. A pós-história inicialmente significava um retorno à filosofia da história e ao seu fundamento ontológico, mas agora virada negativa; como uma espécie de metafísica do anti-progresso ou teoria ontológica do destino, da ausência de sentido e muitas vezes também da catástrofe. Spengler juntou este ponto de vista com a teoria da “individualidade” do historicismo no seu Untergang des Abendlands [A decadência do ocidente]; mais tarde a pós-história focou como ponto principal o “fim da significação” e a extinção da história no Estado de massas tecnológico, e isso de diferentes maneiras em Gehlen, de Jouvenel, Jünger, de Man, Kojève entre outros. Este pensamento da pós-história é aparentado e mediado com a ideologia da “revolução conservadora”, que também contribuiu para flanquear o nacional-socialismo no campo das ideias. A ênfase no destino (Heidegger) e na ausência de sentido refere-se tanto à crise incipiente da identidade masculina, como à autonomização unidimensional da tecnologia, dos media, do consumo de massas etc. O contexto da forma capitalista de relação de dissociação-valor é aqui em grande parte ocultado ou reinterpretado de modo anti-semita e anti-americano; nessa medida trata-se de um processamento profundamente afirmativo e virado ontológico das experiências da época catastrófica.

 

Também Benjamin, Horkheimer e Adorno são frequentemente atribuídos à pós-história. Encontram-se realmente momentos dela, por exemplo na Dialektik der Aufklärung [Dialéctica do Esclarecimento], como é o caso da ontologização da dominação tecnológica da natureza como dominação dos seres humanos e como fatalidade. Mas em Adorno estes pensamentos são sempre simultaneamente mediados com uma crítica da forma capitalista e com um impulso anti-ontológico agudo, especialmente contra Heidegger. Portanto a sua atribuição à pós-história (como em Rohbeck) é mecânica e superficial; assim apaga-se a diferença crucial.

 

Desde os anos 60 e 70 pode falar-se até certo ponto de uma segunda onda da pós-história no contexto da pós-modernidade. A fórmula cativante de Lyotard sobre o “fim das grandes narrativas”, tornada rifão do pensamento pós-moderno, foi aceite por este pensamento e por todo o discurso pós-moderno na reflexão sobre a teoria da história; e justamente porque se pretende que esta seja definitivamente posta de lado. Mesmo a filosofia da história tornada negativa da primeira onda da pós-história é objecto de crítica, não podendo a história como tal aparecer já nem sequer como negativa.

 

Dois pontos de vista são aqui aduzidos no essencial. Por um lado, qualquer pensamento abrangente é considerado como “totalitário”; a história (e a sociedade) são dissolvidas e atomizadas. Tal como no historicismo, mais uma vez o momento “explicativo” da teoria da história é objecto de rejeição; mas esta abordagem é radicalizada e virada até mesmo contra o próprio historicismo: agora já nem sequer devem existir épocas ou “culturas” entre si completamente descontextualizadas mas em si ainda coerentes, com cujo “espírito” se poderia estabelecer “empatia”, mas a “individualidade” histórica é mais uma vez degradada em fenómenos particulares como “átomos de história” (em Foucault desfazendo-se entre si em “práticas”), sem qualquer contexto abrangente, por isso também sem qualquer conceito de época ou de formação. Assim, “... Lyotard exige, em vez da grande narrativa, muitas pequenas narrativas. No lugar da história do colectivo singular deve surgir a pluralidade das histórias, em vez da unidade, a multiplicidade” (Rohbeck, ob. cit., p. 147).

 

Por outro lado, como consequência lógica desta atomização da história, nega-se qualquer momento de continuidade. Não devem existir mais quaisquer transições nem processos de transformação, mas o “programa da descontinuidade” (Foucault) reconhece apenas “rupturas” repentinas entre “séries” (um conceito tomado da escola histórica francesa dos Annales) descontextualizadas. Para Foucault, que declarou francamente o “assassinato da história”, desta absolutização da descontinuidade e da ruptura decorre a “singularidade radical” dos acontecimentos históricos, como ele diz no trabalho Von der Subversion des Wissens[Da subversão do saber]. Justamente neste contexto de argumentação Foucault orienta-se, como ele mesmo diz, fundamentalmente por Nietzsche e fundamentalmente contra Marx (apesar da “fraternidade” sublinhada pelo Foucault tardio em relação à teoria crítica de Adorno, por ele descoberta tarde, ele exclui aqui explicitamente o curso dos pensamentos sobre a teoria da história, orientando-se neste aspecto também contra Adorno).

 

Como já se viu, Foucault não fica absorvido nesta metafísica da contingência e da descontinuidade; mas as suas elaborações conceptuais analíticas e investigações materiais susceptíveis de integração no conceito de “história de relações de fetiche” devem ser rigorosamente separadas do programa pós-moderno de fragmentação teórica e das suas conotações ideológicas. Pois a anti-teoria da história do pensamento pós-moderno, que figura como segunda onda da pós-história, como última etapa da decomposição da “visão da história” burguesa, reflecte de modo completamente afirmativo a decomposição na crise do moderno patriarcado produtor de mercadorias desde o último terço do século XX. Uma vez que se desfaz qualquer conceito de teoria da história abrangente, mesmo apenas no sentido da coerência de uma época ou formação, a crise fundamental do contexto da forma social deve ser escondida. Se não há qualquer formação coerente da modernidade, tal a “esperteza” deste raciocínio, então também não há um fim para esta formação histórica, porque não pode acabar o que não existe (ou que supostamente existe apenas num modo de pensar crítico declarado fundamentalmente obsoleto).

 

A renúncia a qualquer conceito abrangente de teoria da história coincide com a ausência de uma reflexão crítica sobre o todo da própria sociedade capitalista. A atomização do contexto social é reinterpretada como “diversidade”, a crise como “abertura contingente” e “ruptura”, sem questionamento do contexto formal; e esta ideologização surge novamente como atomização da história e sua dissolução em momentos individuais contingentes. Tanto em termos de teoria da sociedade como de teoria da história o pensamento dos contextos abrangentes é tornado tabu e acusado de “totalitarismo” para não ter de se estabelecer nenhuma conexão entre crise e crítica do todo negativo. A crítica deve ser obrigada à particularidade de práticas discursivas ou completamente dissolvida.

 

Agora seria de facto errado, contra a desintegração final da filosofia burguesa da história, querer fazer valer mais uma vez a sua “herança”, como o fez o marxismo tradicional em fases anteriores deste processo de decomposição. Pelo contrário, trata-se de suplantar a filosofia burguesa da história como tal, como expressão ideológica das relações de dissociação-valor, e esclarecer o contexto interno da “visão da história” moderna clássica, com os seus produtos de dissolução progressiva no historicismo e nas duas ondas da pós-história. Mas Wallner, Haarmann e Ulrich fazem exactamente o contrário; eles criticam a filosofia da história universalista iluminista, incluindo a de Hegel e a do materialismo histórico de Marx, apenas no sentido do pólo oposto imanente e das configurações pós-hegelianas da “visão da história” burguesa. O que se fez passar por “outro olho” completamente diferente para além da “visão tradicional”, como maneira de pensar inteiramente nova e até mesmo como um maior desenvolvimento da teoria crítica da dissociação-valor, não é senão a viragem para o processo de decadência da filosofia burguesa da história, que apenas é criticada do ponto de vista dos seus próprios produtos de dissolução. Com isso pode agora a musa inspiradora de Ulrich ser definitivamente apanhada como a do demónio da pós-modernidade.

 

Há no entanto um pequeno problema. Porque, na medida em que esta tendência de viragem para os produtos da dissolução da filosofia burguesa da história ainda se legitima no contexto da teoria crítica da dissociação-valor (que começa a abandonar), ela não pode renunciar ao conceito de formações históricas, ou seja, não pode sem mais atomizar a história completamente como Foucault. O conceito de formação ou constituição histórica, como determinação em cada caso abrangente, apresenta no entanto na reflexão da crítica da dissociação-valor um momento de continuidade relativamente à teoria de Marx. O materialismo histórico de Marx, uma história de forças produtivas e lutas de classes, é transformado numa “história de relações de fetiche” com a ajuda do conceito de fetiche; e só assim pode o conceito de formações históricas ser mantido no campo da crítica marxiana. Descartando agora Wallner & Cª. fundamentalmente o conceito de “história de relações de fetiche”, eles deixam o conceito de formação implicitamente no ar. A metafísica pós-moderna da diferença, da contingência e da descontinuidade é com ele realmente incompatível.

 

O falatório de Wallner sobre o “ponto de vista hermenêutico” sugere como este problema deve ser resolvido, ou seja, através do recurso ao historicismo e à sua ideia de épocas, cada uma com o seu próprio “espírito”. De qualquer modo em Wallner a tendência para a “história espiritual” e para a dissolução da história na intencionalidade respectiva dos “antepassados” vai nessa direção. Este recurso positivo ao historicismo como precursor da metafísica da diferença pós-moderna também se encontra num pós-moderno liberal académico como Odo Marquard: “A história universal torna-se humana apenas através do historicismo, ou seja, através daquele modus de auto-distanciamento europeu tardio do sentido histórico, que permite aos seres humanos... terem não só uma história, mas muitas histórias, em que estão envolvidos e que podem e devem contar...” (Odo Marquard, Apologie des Zufälligen [Apologia do contingente], Stuttgart, 1986, p. 72). Este é o “som original” de Die Leute der Geschichte [As gentes da história] de Wallner, mesmo que ele talvez não o saiba. Porém a história universal não se tornou “humana” com o historicismo, mas sim realmente desumana enquanto relativismo histórico, porque mediada através da filosofia da vida e dos seus derivados aprofundados no anti-universalismo específico do nacional-socialismo. Em vez do conceito crítico de “história de relações de fetiche” agora então um conceito afirmativo de formação com o “espírito das épocas” do historicismo como pano de fundo.

 

Com isto, no entanto, em Wallner & Cª. o conceito de formações históricas é retirado do campo da crítica marxiana e transplantado para o campo da “ideologia alemã”, onde o historicismo radica e de que é parte integrante. O conceito de formação neste sentido confunde-se então com o conceito a-histórico de “historicidade” existencial que surge da transformação do historicismo e da hermenêutica da história em Nietzsche e especialmente em Heidegger. Só se pretende evitar a completa atomização pós-moderna da história de modo que o mais recente produto da dissolução da filosofia burguesa da história seja contraposto a um anterior em relação ao conceito de formação. Confirma-se a suspeita de que justamente as referências de Foucault que devem ser descartadas são reconfiguradas para uma falsa “salvação” do conceito de formação arrancado à força do campo da crítica marxiana. Pois como poderiam Wallner & Cª. de outro modo continuar sequer a falar de formações históricas?

 

Atrás do recurso implícito ao historicismo, combinado com uma adaptação da metafísica pós-moderna da diferença e da contingência, espreita uma furtiva nietzscheanização e heideggerização da crítica da dissociação-valor, que assim deixa de o ser e desiste de si mesma para desembocar numa tendência reacionária, que também já se manifestou na inversão e deturpação do conceito de metafísica. Não seria a primeira vez que um pensamento assente na crítica categorial da modernidade deriva numa direcção simplesmente contra-iluminista. Isso já aconteceu a Adorno com alguns dos que receberam a sua obra. Esta queda e esta ruptura com a crítica da dissociação-valor são dissimuladas com a pretensão presunçosa de conseguir supostamente “pensar contra si mesmo” com Adorno e Foucault, o que, contudo, mais que nunca equivale na realidade a um sacrifício da própria identidade por motivos bastante pré-teóricos, como pretendo mostrar no próximo ponto.

 

(continua)

 

Original GESCHICHTE ALS APORIE. Vorläufige Thesen zur Auseinandersetzung um die Historizität von Fetischverhältnissen. Dritte Folge, in: rubrica “Theory in progress” da homepage da EXIT!, 24.05.2007.

Tradução portuguesa de Boaventura Antunes (01/2014).

 

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