GELD OHNE WERT
Grundrisse zu einer Transformation der Kritik der politischen Ökonomie
Linhas gerais para a transformação da crítica da economia política
20. O sacrifício e o regresso perverso do arcaico
Ao método positivista de elaboração teórica, que só se move operativamente num mundo composto por factos empíricos cuja constituição não toma em consideração, permanecendo, por isso, categorialmente afirmativo, corresponde, por conseguinte, uma ontologização categorial: a ideia de um desenvolvimento trans-histórico de categorias reais idênticas de “trabalho abstracto”, valor e forma do dinheiro, tal como estava esboçado em Hegel e, “materializado” por Engels, permaneceu característico da corrente marxista dominante, incluindo a ortodoxia recente. Como demonstrámos, a crítica da Nova Leitura de Marx relativamente a esta concepção estacou a meio do caminho, visto que esta elaboração teórica, devido à sua redução à filologia de Marx, não foi capaz de englobar na reflexão nem as formações pré-capitalistas, nem a constituição histórica do capital, tendo assim de deixar este campo por conta da ontologizante leitura tradicional. Em Heinrich, a “teoria do valor monetário” pode até ser interpretada como sendo também válida para as sociedades pré-capitalistas, o que remeteria para um entendimento trans-histórico, apenas modificado, das categorias fundamentais do capitalismo.
Assim, na disputa em torno da teoria de Marx, os problemas da ruptura categorial histórica entre as sociedades pré-modernas e o capitalismo, bem como da verdadeira génese do dinheiro – sacral na sua origem –, perderam-se entre a ortodoxia e a Nova Leitura de Marx. Mas eles reaparecem não só em investigações históricas dedicadas à matéria, por exemplo de Laum e Mauss até Le Goff, mas igualmente numa argumentação minoritária da teoria crítica que se esforça por determinar uma relação ou mesmo uma identidade entre o capitalismo e a religião. Nisto se oculta, evidentemente, o carácter de fetiche específico do capital que, embora já não seja o mesmo que o da constituição religiosa propriamente dita, não deixa de ter em comum com este determinados momentos, sobretudo o carácter de um pressuposto cego e de uma regulação inconsciente da reprodução.
São precisamente estes os momentos que o senso comum arquipositivista da esquerda marxista vulgar ou pós-marxista nega com toda a veemência para, afinal, reduzir a relação de fetiche da “riqueza abstracta” a acções subjectivas imediatas, guiadas por interesses e relações de poder sem pressupostos. Neste processo apaga-se uma vez mais a diferença decisiva entre a riqueza concreta e a riqueza abstracta, ou seja, a determinação formal é positivada acriticamente, como se o dinheiro fosse porventura tão evidente como a matéria natural dos artefactos. Todo o problema da forma e da substância, juntamente com o carácter de fim-em-si, é imputado a umas quaisquer mistificações de Hegel, escórias de um pensamento especulativo e afins, de modo que também a comparação com a religião apenas pode colher, evidentemente, escárnio e maldizer. Afinal, a única coisa que existe é a dominação racional e a vontade de explorar dos proprietários privados dos meios de produção que simplesmente quereriam enriquecer à custa dos outros; para que servem abstracções dialécticas tão rebuscadas se a única coisa que está em causa é… mas é o quê, afinal? Os verdadeiros interesses vitais, as necessidades? Porque assumem então formas tão insanas, mesmo nos próprios explorados? O obtuso positivismo de esquerda quer sempre esquivar-se a esta questão porque teme perturbar com ela a consciência empírica mediana, da qual, em última análise, ele próprio faz parte; e, por isso, quer fazer de conta que, no fundo, tudo é “bem simples” e não há que perder muito tempo a preocupar-se com a insanidade da forma como, infelizmente, se desenrola a quase totalidade da vida.
O mesmo árido positivismo caracteriza a corrente dominante do pensamento pós-moderno, se bem que de uma forma “virtualizada”. O carácter fetichista do capital é recalcado do mesmo modo ou, no fundo, já nem sequer é entendido; a única coisa que acontece é que os factos toscos e supostamente “simples” são percebidos de outra maneira. Já não é a relação entre as classes no sentido de uma relação de exploração subjectiva que está no centro das preocupações, embora também este momento ainda tenha um papel a desempenhar nas variantes de esquerda. Trata-se agora de uma relação do indivíduo abstracto e isolado com o valor, concretamente, com o céu financeiro que, em conformidade com as metamorfoses sociais pós-modernas, se converte numa factualidade “normal” e “natural” de que não se deve fazer um enigma e que não se deve explicar de forma especulativa nem criticar, visto que, se assim não for, o intelecto normal pós-moderno fica inquieto e recalcitrante. A suprema mistificação faz-se passar pela desmistificação mais esclarecida. Com o que, como não podia deixar de ser, o pós-modernismo mais uma vez revela ser o último estádio da razão iluminista do capitalismo.
A remissão para um nexo entre “capitalismo e religião”, pelo contrário, procura tornar visível a irracionalidade interna e o carácter místico-real ou metafísico-real da relação social supostamente arqui-racionalista. O mais tardar a partir da chamada de atenção de Marx, não só para os “caprichos teológicos”, mas também para as “formas insanas” de uma objectualidade pretensamente simples das mercadorias enquanto objectualidade do valor, também a comparação metafórica da relação formal capitalista e da lógica da acção que daí decorre, com perturbações mentais ou psicológicas, faz parte do repertório deste modo de crítica diferente, verdadeiramente radical. No entanto, a crítica marxiana do fetiche, que constitui o ponto de partida, ficou durante muito tempo na penumbra ou foi ignorada por completo porque o marxismo do movimento operário, positivista no seu âmago, praticamente não sabia o que fazer dela. Quanto a isto, pouco mudou até hoje na corrente marxista dominante; e precisamente os marxismos pós-modernos, que julgam estar à altura do seu tempo e que, a bem dizer, já não são marxismos nenhuns, quase andaram a cultivar o positivismo e a escamotear conscientemente, em larga medida, o problema do fetiche (de Althusser até aos pós-operaístas) – o que constitui, naturalmente, o caminho mais seguro para cair ainda mais na mistificação real e chocar ideologemas ainda mais irracionais.
Existe, ainda assim, a corrente minoritária de elaboração de teoria crítica que desde sempre esteve mais comprometida com o Marx “esotérico” e que, entre os elementos medianos da esquerda positivista, não deixou de ser desde sempre denunciada como sendo ela própria “esotérica”. Não é por acaso que esta vertente da teoria de Marx, que tem por alvo o fim-em-si fetichista da “riqueza abstracta”, foi recuperada precisamente no período entreguerras do século XX por pensadores importantes e até posteriormente célebres, tal como outros (nomeadamente, Rosa Luxemburgo e Grossmann) recuperaram o lado radical da teoria da crise de Marx. Foram as profundas convulsões sociais induzidas pela guerra mundial industrializada e pela crise económica mundial que fizeram surgir uma intuição da constituição metafísica real do capital em alguns ensaios teóricos. Estas tentativas ainda empreendidas a medo, que datam sobretudo dos anos 20 do século XX e cuja acção se prolongou, em parte, até aos anos 40, também constituem o pressuposto e a base da teoria crítica da dissociação e do valor aqui representada. A corrente da mobilização de aspectos centrais do “outro” Marx que, por aquela altura, teve uma breve primavera está sobretudo associada aos nomes de Georg Lukács, Walter Benjamin e Theodor W. Adorno. De resto, Benjamin, contrariamente a Lukács e Adorno, ainda nem sequer podia conhecer então esta referência a Marx, tendo chegado a este problema da constituição metafísica do capital por reflexões próprias (porventura na referência crítica a Max Weber). Foi um notável feito voltar a trazer à luz do dia, a muito custo, contra o “pesadelo das gerações mortas” no seio do próprio marxismo, a dimensão oculta e em larga medida recalcada do “apriorismo transcendental”, mesmo que naquelas condições, evidentemente, apenas de forma parcial e arrastando ainda consigo momentos ideológicos: por exemplo, em Lukács, a ontologia do trabalho; em Benjamin, o elemento “messiânico”; e, em Adorno, o idealismo da troca. Começou a formar-se o campo de uma nova teoria, posteriormente designada “teoria crítica” que, após 1945, já poucos além de Adorno levaram por diante. Mas a abordagem deste pensamento permaneceu errática e foi empalidecendo, sob a impressão da prosperidade do pós-guerra e da paz fria, até ficar irreconhecível; nas formas de recepção da nova esquerda a partir de 1968 foi, por assim dizer, democraticamente domesticada e compatibilizada com o positivismo académico.
Tratamos a seguir de um fragmento de poucas páginas de Walter Benjamin com o título Kapitalismus als Religion [O Capitalismo como Religião], escrito por volta de 1921 e apenas publicado a título póstumo, que recentemente foi objecto de nova edição com uma série de comentários actuais (Baecker 2009). Este fragmento é de uma utilidade inegável para o debate sobre o carácter do dinheiro moderno e da sua crise, tal como o pretendemos fazer no presente ensaio. Benjamin escreve: “No capitalismo vislumbra-se uma religião, ou seja, o capitalismo serve essencialmente a satisfação das mesmas preocupações, tormentos e inquietações a que outrora eram as ditas religiões a dar resposta” (Benjamin 1985/1921, p. 100; trad. port. p. 30). Não deixa de ser problemática a equiparação imediata do capitalismo à religião, pois temos de nos abstrair em demasia da ruptura profunda entre as formações constituídas de forma religiosa e o moderno fetiche do capital, o mesmo se aplicando às referências legitimadoras completamente diferentes em termos qualitativos. Esta tentativa de abordagem tem, contudo, a sua justificação se considerarmos o facto de a tematização do carácter metafísico real do capital ter estado completamente soterrada no que à história das teorias diz respeito e, até hoje, pouco ter avançado.
Ora, Benjamin refere diversas características religiosas do fetiche do capital (que não designa deste modo): “Em primeiro lugar, o capitalismo é uma pura religião de culto, talvez a mais extrema que alguma vez existiu. Nele, tudo apenas tem significado com referência ao culto; não conhece nenhuma dogmática em particular, nenhuma teologia. Sob este ponto de vista, o utilitarismo ganha a sua coloração religiosa. A esta concreção do culto está ligado um segundo traço do capitalismo: a duração permanente do culto (...) Não existe nele nenhum “dia de semana”, nenhum dia que não seja dia festivo no sentido terrífico do desenvolvimento de toda a pompa sacral, do esforço mais extremo daquele que venera. Este culto é, em terceiro lugar, culpabilizador. É de presumir que o capitalismo seja o primeiro caso de um culto que não procura a remissão, mas a culpabilização. Neste aspecto, este sistema religioso insere-se na queda de um enorme movimento. Uma enorme consciência de culpa que não sabe remir-se recorre ao culto, não para nele expiar esta culpa, mas para a tornar universal, para a incutir na consciência (...) A transcendência divina caiu. Mas Deus não está morto, está é integrado no destino humano (...)” (Benjamin, ibidem, pp. 100s.; trad. port. p. 31).
O momento mais fraco, porque mais pobre, na argumentação de Benjamin é a referência ao carácter de culto da relação do capital. Trata-se de uma mera analogia que se fixa na superfície dos fenómenos. Certamente que as acções quotidianas no capitalismo, do relógio de ponto até à caixa de supermercado, passando pelo balcão bancário, recordam de uma maneira que chega a ser ridícula grotescos rituais cultuais, o que há muito que se tornou um lugar comum na literatura. Quanto a este aspecto, Benjamin compara as “notas de banco de Estados diferentes” com as “efígies de santos de religiões diferentes” (ibidem, p. 102; trad. port. p. 32). Se nos ativermos a esta analogia, não é verdade que ao culto capitalista falte a dogmática e a teologia, pois então que é a economia política senão isso mesmo? A esta dogmática teologia económica corresponde, como “religião para o dia-a-dia” (Marx), a comum ideologia popular para uso doméstico, tal como em tempos a devoção popular correspondeu à subtileza teológica.
Mas também se poderia recorrer a outra analogia, nomeadamente, à já referida comparação com uma doença mental. Nesse caso, a racionalidade capitalista do iluminismo seria algo muito parecido com a razão interna de um sistema patológico que também pode ser formulada por pessoas paranóicas como uma “ciência” bizarra, tal como a encontraremos, porventura, nos arquivos de clínicas psiquiátricas. A diferença seria então apenas entre um desvario puramente subjectivo e pessoal, e outro objectivo e colectivo que se vestiu de sistema social e “ciência” reconhecida. Ora, acontece que a possibilidade de diversas analogias (religião, demência) indica que, embora estejamos perante algo de certo modo comparável, não se trata do mesmo.
É um facto que a segunda característica referida por Benjamin, a duração permanente do culto, está correcta em termos empíricos, na medida em que todas as manifestações da vida no capitalismo estão permeadas, com uma densidade historicamente crescente, pela lógica da “riqueza abstracta” e dos seus constrangimentos à acção. Mas, no fundo, é isto mesmo que configura, como o próprio Benjamin assinala, uma diferença relativamente às formações agrárias de constituição religiosa em que o dia-a-dia e o dia festivo ritual tendiam a estar separados, pelo menos em termos exteriores. Sem dúvida poderíamos supor a característica de uma permanência do culto para relações arcaicas, pré-históricas, nas quais é provável que todas as acções sem excepção tenham sido de carácter ritual e directamente associadas à relação de sacrifício. Neste ponto, já poderia vislumbrar-se a funesta intuição de que o fetiche do capital, de certo modo, não é só um “progresso” para além das constituições religiosas mas, ao mesmo tempo, o regresso modificado de algo arcaico, e assim a razão iluminista do capitalismo se resume, no seu âmago, a uma barbárie quase arcaica. Mas tudo não passa, justamente, do “quase”; não é assim que a identificação imediata do capitalismo “como” religião passa a fazer mais sentido. Com efeito, o capitalismo deve ser algo pior que uma religião.
Finalmente, a terceira característica referida por Benjamin também tem o carácter de uma analogia, ainda que refinada. Evidentemente, o conceito de “culpabilização” é polissémico[1]. Pode significar a culpa no sentido de uma falta pessoal que tem de ser expiada ou compensada. Neste sentido, provém da estrutura, constituída pela religião, de relações de obrigação pessoais (e institucionais), tal como foi apresentada na primeira parte desta investigação como determinante para as sociedades pré-modernas. No sistema moderno do trabalho, do dinheiro e do crédito, porém, a categoria da “culpabilização” transformou-se em algo qualitativamente diferente[2]. Parecenças históricas na figura de relações putativamente iguais, como empréstimo de dinheiro e crise da dívida, não passam de aparências, visto que a relação de obrigação fetichista imediata e a relação do capital fetichista objectivada são coisas fundamentalmente diversas, por muito que as formas se apresentem superficialmente como idênticas. Tanto em termos de história real como da história linguística, existem traços de união, mas que justamente apontam para tudo menos uma continuidade religiosa.
Em Benjamin, a verdadeira relação de continuidade apenas é formulada vagamente: “O capitalismo – como se deve poder comprovar não só no calvinismo, como igualmente nas restantes tendências ortodoxas do cristianismo – desenvolveu-se no Ocidente como um parasita do cristianismo, a tal ponto que a história deste acaba por ser a história do seu parasita, do capitalismo” (ibidem, p. 102; trad. port. p. 32). Com isto, no fundo, está dito que o próprio capitalismo não é precisamente uma religião e nem sequer pode ser a continuação da religião por outros meios, permanecendo o conceito de “parasita” da religião (cristã) pouco claro – e certamente não se pode esperar muito mais de um fragmento encontrado no espólio.
O problema parece consistir em que Benjamin, por um lado, tende a entender a religião mais no sentido moderno, como uma relação de fé subjectiva e como um culto exterior com a finalidade de canalizar problemas psíquicos, e menos como a relação bem material de reprodução agrária que a constituiu em termos históricos. Desta percepção inadequada decorre, em seguida, o analogismo exterior com respeito a “preocupações, tormentos e inquietações” igualmente indeterminadas em termos históricos, ao passo que a verdadeira diferença social entre o fetiche pessoal das relações de obrigação imediatas e o fetiche objectivado da “riqueza abstracta” não é abordada e este último, se bem que seja objecto de alusões, não é apreendido com precisão.
O que permite um desenvolvimento ulterior não deixa de ser, por outro lado, a ressalva de que, embora a “transcendência divina (tenha caído)”, Deus não está morto, estando antes “integrado no destino humano”, o que constitui uma referência à diferença entre a relação transcendente com Deus e a “imanência transcendental” do fetiche do capital. O capitalismo não se encontra ancorado numa transcendência, ou seja, não é uma religião, mas ainda assim está constituído de forma transcendental, isto é, embora exista uma continuidade das relações de fetiche, esta não é linear, mas interrupta. Ora, em que consiste exactamente a relação entre a continuidade e a ruptura? Pelos vistos, ainda falta uma determinação que possa aclarar este problema.
Bastará um excurso prévio para demonstrar que os comentários da colectânea a que o fragmento de Benjamin serve de base e de título pouco ou nada contribuem para dar resposta ao problema colocado. Isto deve-se sobretudo ao facto de, na sua maioria, nem sequer levarem a sério a negatividade da ideia de Benjamin, ou seja, o seu potencial crítico, devido à sua fé póstuma pós-moderna permeada da ideologia da classe média. Já apenas querem esconjurar a radicalidade do texto. É certo que o editor Dirk Baecker constata na introdução (embora de uma forma suspeitamente fácil e num tom bastante próximo da amena cavaqueira): “A questão de saber se o capitalismo deve ser entendido como uma religião depara presentemente com uma situação em que serão poucas as hesitações para respondermos com um rotundo sim. Desde o momento em que a alternativa socialista deixou de estar disponível (...), esta sociedade acredita no capitalismo. Crê que este é o seu destino. E crê que ele constitui a única hipótese de dar forma ao seu destino” (Baecker 2009, 7). Mas quem pensa que estas frases têm subjacente uma intenção crítica, por mínima que seja, acaba por ver-se iludido. A fé da sociedade no capitalismo também é a do próprio Baecker. Esta fé reputa-se de esclarecida sobre o seu próprio papel de crença e, dito isto, ele crê agora poder ser crente de modo nada problemático, tendo-se despojado da ingenuidade primária e tornado jovial e acriticamente auto-reflexivo.
É esta a realização involuntária de Hegel dos pós-modernos, que julgam agora poder ser ainda muito mais afirmativos com plena consciência do que foram anteriormente de forma inconsciente; e tudo isto associado a um alegre agnosticismo quanto à situação vigente: “A despreocupação actual resulta do facto de que já ninguém reivindica conseguir entender e ordenar o todo. E deste modo desaparece a disputa em torno da verdade que durante tanto tempo tomou conta dos observadores profissionais desta sociedade, com especial relevo para os intelectuais. Pelo contrário, esta despreocupação, que ainda há pouco teria sido reputada de irresponsável e frívola, está associada a uma consciência tanto mais apurada do elevado grau de estruturação que caracteriza a sociedade. Já não se parte do princípio que o que acontece ou deixa de acontecer é aleatório, mas de que é em todo o caso imprevisível e impossível de estabelecer por cálculo, precisamente porque as estruturas da sociedade são complexas e, de um modo incalculável, tanto altamente sensíveis como incomensuravelmente robustas” (Baecker, ibidem, p. 8). E, assim, o sentido breve, muito moderadamente “frívolo” e vincadamente positivista, deste longo discurso é o seguinte: “Não nos veremos livres do capitalismo porque, no seu caso, não se trata de outra coisa senão da tentativa, sempre de novo empreendida, de retirar de determinadas situações lucros (...) que podem ser aproveitados de forma produtiva noutras situações” (ibidem, p. 12). Ora isto não tem definitivamente nada a ver com Benjamin. Pretende-se enquadrar a sua tentativa de virar a crítica radical da religião contra o próprio capitalismo no consenso de que toda e qualquer crítica se tornou, de qualquer modo, impossível e, por isso, é completamente indiferente se entendemos o capitalismo como religião ou não.
No que diz respeito ao agnosticismo e à metafísica da contingência, de resto, Michael Heinrich também segue as pegadas do pós-modernismo. Com a mesma referência à pura “complexidade” como pano de fundo, também ele afirma, em oposição a supostas “certezas da filosofia da história relativamente a um necessário fim do capitalismo” (Heinrich 2009, p. 33), uma fundamental imprevisibilidade do desenvolvimento: “Se a história não for concebida, de um modo determinista, como um processo que se move em direcção a um objectivo previamente determinado, e se, em vez disso, o for como um processo em aberto, isto significa que, embora muita coisa seja possível, nada é certo” (Heinrich, ibidem, p. 33). Em primeiro lugar, confunde aqui mais uma vez uma “filosofia da história” (que argumenta trans-historicamente) com enunciados sobre a história interna do capital e a sua real teleologia imanente, se bem que não linear. Em segundo lugar, confunde o lado objectivo com o lado subjectivo da dialéctica capitalista, na medida em que transfere implicitamente o momento da determinação para o âmbito da acção intencional, julgando facilitar assim o seu jogo. Evidentemente, está inteiramente “em aberto” a questão de saber se surge uma consciência social suficientemente dimensionada que queira abolir o capitalismo. Mas o que não deixa de se mover “de modo determinista” em direcção a um “objectivo previamente determinado” é a dinâmica objectiva da valorização, precisamente porque se trata aqui de um processo cego do “sujeito automático”.
A metafísica da contingência de Heinrich, tal como a de Baecker, não conta com aquilo que Benjamin tem realmente por alvo ao determinar o capitalismo como religião, não obstante a analogia que permanece exterior, não só no sentido de uma fé meramente subjectiva mas, ao mesmo tempo (e em contradição com isso), como um estado do mundo em que a “transcendência divina” imigrou para os assuntos humanos e a relação social se objectivou de um modo paradoxal. Mesmo que não esteja totalmente correcta em última instância, a determinação do capitalismo como religião remete, ainda assim, para uma “falsa objectividade” que é intrínseca à dialéctica fetichista sujeito-objecto e que torna, de facto, o processo desencadeado reconhecível e explicável, mas justamente apenas sob a forma da crítica radical, ao passo que ele se apresenta absolutamente intransparente e contingente para a consciência afirmativa, mesmo na teoria e na análise.
Norbert Bolz, um dissidente da teoria crítica transformado em investigador de tendências pós-moderno, interpreta o fragmento de Benjamin de um modo em tudo similar ao de Baecker. Para ele, e quanto a isso não deixa subsistir qualquer dúvida, Benjamin “realmente ainda é um dos spectres de Marx. E já não há forma de prosseguir na sua senda” (Bolz 2009, p. 190, realce de Bolz). Assim, o fragmento do capitalismo parece “actual” a Bolz apenas no sentido de supostamente antecipar, de forma meramente descritiva, os fenómenos do “marketing do culto” de hoje com o seu “reencantamento estético” pela marca como “emblema de totem” (Bolz, ibidem, p. 201, 203), o que, por seu lado, comenta com a displicência de um iluminista esclarecido: “O capitalismo como religião, neste caso, já não é um diagnóstico crítico, mas a pura e simples autodescrição do mercado” (ibidem, p. 203). Bolz nem sequer entende o que o fragmento de Benjamin realmente tem por alvo, para além de uma tal interpretação e em articulação com a argumentação do Marx “esotérico”, a saber, não os meros fenómenos de um culto do consumo ou da sua estetização, mas a constituição transcendental da própria relação social que ficou definitivamente incompreensível para o pensamento pós-moderno. Até naqueles trechos em que Benjamin apenas fala em “culto” por analogia, trata-se de uma referência a algo de muito mais fundamental, nomeadamente ao carácter fetichista de fim-em-si da “riqueza abstracta” e à submissão ao “princípio da culpabilização”, permanente e em si constituído como infinito, do “trabalho abstracto” (a que ainda voltaremos mais abaixo).
Na mesma confusão que Bolz cai, de resto, Kurnitzky, que também já não entende o conceito do fetiche da mercadoria e do dinheiro em Marx e equipara o mesmo a um mero culto do consumo de mercadorias. Com uma estrutura de pulsões a-histórica ideologicamente construída como pano de fundo, presume que seja a ânsia quebrada pela satisfação das pulsões que faz os seres humanos – no fundo, apenas os homens constituídos de forma edipiana – “recorrerem ao fetiche. Isto lança as bases do fetichismo na sua forma patológica, mas também do fetichismo da mercadoria nos fetiches do consumo em constante alternância” (Kurnitzky 1994, p. 98). A associação em curto-circuito do imutável destino pulsional ao mercado igualmente “eterno” necessita da redução do carácter do fetiche social à analogia de fetiches sexuais (masculinos) e fetiches do consumo que são apenas entendidos como formas diversas de uma satisfação postiça necessária, ao passo que o fim-em-si transcendental do capital já não tem lugar neste constructo. Benjamin já tinha passado além deste ponto, embora este tema também surja na sua obra.
É um facto que Kurnitzky, contrariamente a Bolz, critica com acutilância a infantilização pós-moderna no que diz respeito à postiça objectualidade comandada pelas pulsões, na medida em que realça, de um modo que não deixa de ser acertado, o carácter regressivo de um recalcamento e de uma desistoricização do todo negativo. A tensão na gestão das pulsões deve ser abrandada por encenações superficiais de eventos de uma “disneylandização dos contextos vitais da sociedade” (Kurnitzky, ibidem, p. 126, realce de Kurnitzky) que também no consumo fazem da própria forma vazia o pseudovalor de uso e já não permitem qualquer experiência. Mas apenas quer reconhecer nisso uma perversão do “verdadeiro” mercado e da sua função para a sublimação das pulsões. A constituição unidimensional de um nexo entre a estrutura pulsional edipiana e o mercado sobrevalorizado como constructo a-histórico só é capaz de interpretar a “crise do mercado” – de que Kurnitzky não deixou de se aperceber – no quadro de uma ideologia neo-pequeno-burguesa em tudo similar à dos marxistas residuais e dos pós-marxistas, como um desvio da senda da “virtude da livre troca de mercadorias” a que julga estarem associadas todas as realizações civilizatórias.
Se a teoria de Kurnitzky obscurece a diferença histórica entre as relações de fetiche pré-modernas e as do capitalismo, porquanto as atribui de um modo igualmente trans-histórico à pulsão sexual sacrificada, Bolz, enquanto ideólogo pós-moderno, já nem sequer se interessa pelo todo negativo. É precisamente neste sentido que o fragmento sobre o capitalismo de Benjamin acaba por se lhe afigurar “antiquado” na exacta medida em que denuncia esse todo “como” religião. Para Bolz, porém, o todo – e com ele a atribuição de Benjamin – é, de qualquer modo, uma mera aberração da teologia que se teria disfarçado de crítica: “A crítica radical como máscara da teologia é um design teórico familiar” (Bolz, ibidem, p. 203). Evidentemente que é preciso estarmos para além disto. O todo que lunáticos como Benjamin ainda pretendem criticar nem sequer existe realmente. Para Bolz, a “unidade” da sociedade não consiste no seu “apriorismo transcendental”, mas, de acordo com Luhmann, na “diferença dos seus sistemas funcionais” (ibidem, p. 204). Afinal, já encontrámos uma perspectiva positivista em tudo similar em Michael Heinrich, para quem o todo do capital também já consiste unicamente na diferença dos seus sistemas funcionais da produção, da “circulação”, do Estado/da política, etc., que de algum modo actuam uns sobre os outros (como já tinha dado o exemplo a superficial teoria de uma “sobredeterminação” de âmbitos “relativamente autónomos” de Althusser). A partir daí, já não estamos muito longe da magnífica conclusão de que o capitalismo nem sequer existe enquanto todo pressuposto. Assim, Bolz afirma: “O capitalismo foi a última invenção dos teólogos que pretendiam justificar a sua pretensão de uma descrição crítica do todo social” (ibidem, p. 207).
Perante este pano de fundo, Bolz está então em condições de constatar, no aqui e agora e com a maior das descontracções, sobre o fragmento de Benjamin: “No nosso contexto, o que está em causa é, naturalmente, o dinheiro como equivalente funcional, como technical substitute para Deus. Trata-se da substituição de uma substituição, visto que o Deus cristão crucificado, modernamente substituído pelo dinheiro, já simboliza a substituição. O motivo do lucro funciona, tal como o Deus único, como a fonte universal de motivação” (ibidem, p. 206). E Bolz viu que tudo era bom. Não sabe o que ele próprio está a dizer e nem sequer lhe interessa, aconchegado como está no complacente bem-estar pós-moderno de sujeitos descentrados. Que o dinheiro seja um “equivalente funcional de Deus” é uma questão de somenos enquanto o motivo do lucro funcionar como “fonte universal de motivação”. E assim fará para todo o sempre.
É assim que Bolz pode repreender Benjamin pela sua chamada de atenção para o problema estrutural do endividamento como “repetição da culpa” que exclui esperanças de salvação referidas ao futuro para fazer, a propósito, a observação lapidar: “Tão remoto, tão pré-moderno. Em termos modernos, porém, a culpa[3] remete para o futuro enquanto crédito ao investimento. A culpa equivale agora a dívidas económicas” (ibidem, p. 206). Bolz não compreendeu minimamente nem a argumentação de Benjamin nem a “economificação” da culpa. Pretende reinterpretar positivamente a conversão do pecado original no sentido da teologia da economia política como “crédito ao investimento para o futuro”. Em primeiro lugar, oculta assim, como se fosse a coisa mais natural, o carácter de fim-em-si fetichista da “riqueza abstracta”, sob cujo pontificado objectivado o “crédito ao investimento para o futuro” apenas pode significar a continuação do movimento de fim-em-si e a sujeição das pessoas a esta “roda de Juggernaut” (Marx). Em segundo lugar, sabe tão pouco da economia cujos louvores canta que nem sequer repara na alteração do carácter do “crédito ao investimento”, na medida em que o sistema global de crédito antecipou, no início do século XXI, massas de “trabalho abstracto” impossíveis de honrar e o capitalismo já gastou todo o seu futuro “eterno” até à última gota. No entanto, Bolz partilha esta ignorância cega não só com os teólogos da economia política, como com a maior parte da esquerda quer académica quer política. Todos eles se recusam a compreender a coisa, mesmo numa altura em que os estilhaços já assobiam por cima das suas cabeças.
O próprio Benjamin considera a sua ideia historicamente prematura: “A prova desta estrutura religiosa do capitalismo, não só, como julga Weber, como formação religiosamente condicionada, mas como fenómeno essencialmente religioso, ainda hoje conduziria ao descaminho de uma polémica universal desmedida. Não podemos puxar a rede em que temos assentes os pés. Mais tarde, porém, ter-se-á uma perspectiva de conjunto” (Benjamin, ibidem, p. 100; trad. port. pp. 30s.). Apenas podemos conjecturar o que Benjamin quer dizer aqui com o “descaminho de uma polémica universal desmedida”. Como decorre das duas frases subsequentes, esta observação só pode realmente referir-se às condições históricas do seu tempo (1921). Benjamin devia ter a noção de que o desenvolvimento ou mesmo a “prova” da sua ideia não podia ser mediável com as condições de desenvolvimento e consciência então existentes, ou seja, que apesar do eventual conteúdo de verdade da teoria e da prática da crítica social (que, também para Benjamin, na sua aproximação ao marxismo existente, apesar de toda a distância continua a estar vinculada ao movimento operário e à forma da política), ele não poderia ter sido implementado após a I Guerra Mundial: “Não podemos puxar a rede.” Por isso, a ideia continua a ser uma intuição e um fragmento, tem de se remeter historicamente para “mais tarde”. “Mais tarde”, porém, é agora, no início do século XXI. Hic Rhodus, hic salta.
Importa, portanto, resolver o enigma histórico e conceptual colocado por Benjamin. O capitalismo tem traços cultuais, o que leva a identificá-lo como religião. Mas se se trata, no caso, como já demonstrámos, de uma mera analogia, em que consiste esta realmente e em que se distingue o capitalismo das formações pré-modernas, agrárias e constituídas de forma religiosa? A referência à diferença entre a constituição transcendente (relação com Deus) e a constituição transcendental não deixa de estar correcta, mas ainda é demasiado abstracta; a referência às representações e relações de obrigação pessoais por contraposição ao movimento em si mesmo objectivado da “riqueza abstracta” também está correcta, mas permanece sobretudo fenomenológica. O que é mais precisamente, então, aquilo que condiciona tanto a continuidade como a ruptura?
Em termos puramente fenomenológicos, é o dinheiro que institui a continuidade trans-histórica (de acordo com Marx, apenas a de uma “pré-história” bárbara com inclusão do capitalismo). Mas, vistas bem as coisas, é, ao mesmo tempo, a alteração qualitativa ou a mutação repentina do dinheiro em algo de completamente diferente que, por seu lado, estabelece a ruptura. A objectualidade do valor e o “trabalho abstracto” como pressuposto lógico de um movimento em si mesmo da “riqueza abstracta” na forma do dinheiro (após a ruptura) são, em termos históricos, apenas o resultado desta transformação. Mas em que consiste realmente esta? Que “algo” social e, ao mesmo tempo, metafísico real subjaz à nova lógica quando comparada com a antiga?
Pode dar-se uma resposta por intermédio da determinação do estatuto drasticamente alterado da essência do dinheiro, tal como resulta das investigações históricas de Laum até Le Goff, que são ignoradas tanto pela chamada ciência económica como pelo marxismo, e que também nas ciências históricas se mantiveram marginais até à data (embora isso possa mudar). O que era o dinheiro pré-moderno? Começou por ser o gelt, o sacrifício aos deuses, que originalmente foi um sacrifício humano. Com este gesto pagava-se uma “culpa” ou, melhor dizendo, cumpria-se um “dever” para que o Sol voltasse a nascer todos os dias, para ser possível a alimentação no “processo de metabolismo com a natureza” (Marx), talvez para afastar ou atenuar as desgraças e os golpes do destino, etc. Esta “objectualidade do sacrifício” simbólica, mas necessariamente material, percorreu, em primeiro lugar, um espectro histórico de metamorfoses, de substituições. Mas não substituições de Deus, como Bolz opina e Benjamin poderia dar a entender, mas substituições da própria vítima: desde os seres humanos jovens de uma rara excelência ou especial beleza, passando pelo gado bovino ou cavalar e outros animais sacrificiais, substituídos posteriormente pelas representações simbólico-materiais desses animais na forma de bolos ou hóstias, até ao metal precioso e à moeda cunhada. A estrutura deste “dever sacrificial” foi, em seguida, transferida sob múltiplas formas para as inter-relações sociais das pessoas, mas com isso não foi de modo algum “secularizada”; pelo contrário, a relação social (imanente) foi derivada da relação (transcendente) com Deus e constituída como estrutura complexa de “deveres” tanto pessoais como institucionais, de acordo com o exemplo da objectualidade do sacrifício. Isto não tinha nada a ver com uma economia ou um modo de produção no sentido do “trabalho abstracto” e das relações de valor.
Ora, em que consiste o salto qualitativo no estatuto do dinheiro que, sob a forma de um processo, se desenvolveu desde a chamada protomodernidade com base nas condições da crise religiosa e da revolução militar? O aspecto fulcral profundamente irracional ou até “insano” consiste no facto de a velha objectualidade do sacrifício, por esse reacoplamento a si própria (D – M – D’), se ter transformado num movimento de fim-em-si abstracto e, justamente, se ter substituído assim ao poder transcendente. O sacrificado ao mundo dos deuses transformou-se ele próprio em quase-deus. Do ponto de vista de qualquer religião, só podemos estar aqui perante uma enorme blasfémia. Mas a religião não era nenhum mero sistema de crenças, mas uma relação de reprodução transcendentemente ancorada no “processo de metabolismo com a natureza” e nas relações sociais. Na medida em que se convertia num fim-em-si terreno em processo, a objectualidade do sacrifício era desvinculada da referência à transcendência divina e gradualmente, com ela, também a totalidade da reprodução.
O que restou foi a expressão material da objectualidade do sacrifício que, afinal, já alcançara a forma de moeda ainda no seu antigo sistema de referência. Embora a referência ao mundo transcendente dos deuses tivesse sido cortada neste ponto, o dinheiro não podia, ainda assim, tornar-se um objecto terreno “natural”. Era, daí em diante, um objecto sacral pervertido, algo de sacro absurdamente secularizado, um extraterrestre atirado para fora do seu contexto primitivo no mundo terreno que constituía uma forma inaudita de alienação humana. Apenas possível neste novo estatuto sob a forma de uma auto-referência tautológica (reflectida de modo totalmente acrítico pela teoria funcional dos sistemas como autopoiesis e ideologicamente aplicada a todas as relações mundiais), transformou-se da objectualidade simbólica do sacrifício na objectualidade abstracta do valor que, na cega práxis humana da sua acumulação enquanto fim-em-si, lançou as bases do sistema do “trabalho abstracto”. O resultado criou a sua própria origem no processo desta transformação da relação do sacrifício na chamada economia.
Este fantasmático sistema do “trabalho abstracto” como forma de movimento da “riqueza abstracta” está no mundo, mas não é deste mundo. Não é nenhum deus, mas o sacrificado que despertou para uma vida própria sintética, deveras fantasmal. Nunca ninguém viu fisicamente deus nenhum, mas o dinheiro transcendentalmente autonomizado pode tocar-se com a mão e até meter na boca, caso se queira. No entanto, continua a ser um extraterrestre. A sua redução a impulsos de lançamento electrónicos, por seu lado, nada altera no apriorismo transcendental; não é por isso que se evapora rumo ao céu. O que são as fantasias mais audaciosas da ficção científica perante esta monstruosidade histórica? O capitalismo não é nenhuma religião, mas sim a dissolução de toda a religião num movimento sacrificial terreno autonomizado: o fetiche do capital. Os fins limitados e imanentemente compreensíveis, diversos e, numa fase inicial, surgidos separadamente, da história da transformação e da constituição (revolução militar, protestantismo, evasões do emaranhado das relações de obrigação pessoais) confluíram, à medida que eram postos em prática, numa autopoiesis objectivada, ou seja, na dominação absurda sobre os humanos de um objecto por eles próprios criado. O “domínio do Homem sobre o Homem” de Marx já não é imediato, constituído de forma pessoal-sacral, mas a função objectivada de uma sujeição a essa tal acumulação como fim-em-si da antiga objectualidade do sacrifício.
Nesta perspectiva, também a revolução religiosa do cristianismo e as suas consequências desde a Antiguidade tardia se apresentam a uma outra luz. Na figura de Cristo, é o próprio Deus que se sacrifica para libertar os humanos da sua velha “culpa”. Aqui ocorre uma transformação simbólica da divindade transcendente na vítima terrena e física, ou seja, uma inversão no sentido oposto. Esta transformação é incompleta e ambivalente: incompleta porque a passagem de Deus à imanência terrena continua a ser inconsequente e a transcendência se mantém (daí também a materialização apenas do “filho” e a sua recuperação para o seio da transcendência através da “ascensão aos céus”); e ambivalente na medida em que a promessa da redenção total da eterna “culpa” está, ao mesmo tempo, associada a um regresso, se bem que apenas simbólico, do sacrifício humano arcaico, isto é, do Deus tornado Homem – tudo isto representado na simbologia “canibal” da ceia com a carne e o sangue de Cristo. Este aspecto criou repulsa e horror no mundo da Antiguidade tardia, devido à aparência de regressão a uma crueldade ritual arcaica, ao passo que a promessa de salvação a tal associada, por outro lado, também exercia uma tremenda atracção.
Apesar de um considerável esforço teológico, o mundo dito medieval não se conseguiu desfazer desta inconsequência e ambivalência. A promessa conduziu apenas a uma modificação histórica do ancoramento transcendente e das relações de obrigação pessoais ou institucionais daí derivadas. No entanto, a constituição social cristã continha um momento inicialmente ainda não libertado, apenas referido à transcendência, que Marx designou como “culto do Homem abstracto” e como pressuposto histórico ideal do capitalismo. Por detrás das representações pessoais terrenas que dantes, na imaginação, também tinham continuidade no além, erguia-se agora a sombra de uma transcendente “igualdade abstracta” das almas que, no plano terreno, também se aplicava à realização sacral no “reino de Deus” virtual da Igreja, evidentemente sem tocar na hierarquia pessoal das relações de reprodução.
Ora, o que aconteceu, na história da constituição do capital, que afinal tivera início na Europa cristã, a esta modificação contraditoriamente concebida das relações sociais com Deus? Em primeiro lugar, a inversão cristã da relação do sacrifício não foi anulada, mas mais uma vez invertida de forma paradoxal. Se o cristianismo tinha transformado Deus num sacrifício[4] humano, a fim de resolver a velha culpa no plano simbólico, pois agora o sacrificado era elevado a quase-Deus. Mas isso não aconteceu, evidentemente, na forma simbólica do corpo de Cristo, da hóstia da ceia (o que, em termos terrenos, não teria feito qualquer sentido, nem sequer fetichista), mas na outra forma que há mais de dois mil anos ia persistindo em paralelo, a forma da velha objectualidade do sacrifício, a saber, o dinheiro na forma de moeda cunhada em metal precioso que – contrariamente à hóstia, circunscrita ao serviço de Deus – permitia efectuar todo o tipo de “pagamentos” periódicos ou de circunstância relativamente aos “deveres” ou às relações de obrigação do quotidiano. Em segundo lugar, no quadro desta transformação do dinheiro num fim-em-si em processo, pseudodivino, imanente e transcendental, o “homem abstracto”, que até então não passava de algo vago e situado no além, transmutou-se na “igualdade” terrena de um pessoal funcional aniquilador (prototipicamente, no protestantismo, e logo formulado com maior profundidade e clareza na ideologia iluminista).
A dupla transformação aqui delineada – por um lado, da metálica objectualidade do sacrifício, que já no cristianismo perdera a sua pátria sacral, no fim-em-si da “riqueza abstracta”; e, por outro lado, do “homem abstracto” transcendente no seu suporte funcional imanente – constitui um contexto que poderia indicar o motivo pelo qual Benjamin designou o capitalismo como “parasita do cristianismo”. O capital nutre-se da constituição cristã na medida em que, na sua própria, substitui numa paradoxal reviravolta o homem divino, sacrificado terrenamente em nome da salvação, pelo dinheiro, elevando este, ao mesmo tempo, do estatuto de sacrificado ao de uma pseudodivindade imanente. Portanto, a cristã “ligação à terra” de Deus ao sacrifício oferecido no aquém é explorada e reinterpretada de um modo quase parasitário; e o mesmo se aplica à capitalista “ligação à terra” do “homem abstracto” ao padronizado sujeito funcional moderno.
Mas o que acontece, nesta transformação, à “culpa” e à promessa simbólica da salvação que, em termos terrenos, permaneceu por cumprir? Como Benjamin vê com clareza, esta última é suprimida sem apelo nem agravo pela própria secularização da objectualidade do sacrifício na metafísica real imanente da “riqueza abstracta”. À possibilidade da salvação circunscrita ao além substitui-se a perenização e absolutização terrena da “culpa” que, por seu lado, passa por uma transmutação. As pessoas já não são “devedoras” perante a divindade transcendente, à qual têm de fazer sacrifícios no interesse da própria vida e sobrevivência, mas agora, ao inverso, ficam “em dívida” face à própria objectualidade do sacrifício tornada apriorismo transcendental. Este novo “dever”, por seu lado, não é representado a nível pessoal em termos imediatos nem convertido nas relações de obrigação daí derivadas, mas literalmente reificado. O Deus transcendente nunca andou por cá e nada regulou enquanto tal; a reprodução era mediada pelas suas representações pessoais. Já o dinheiro elevado a fim-em-si não só está aí de forma palpável, como também visivelmente regula, na sua autonomia objectivada, a reprodução, ao passo que as representações pessoais, por sua vez, já só podem ser os seus funcionários, colocados num patamar secundário.
Para além disso, porém, a nova relação do “dever” já não é simbólica, mas real sob a forma do constrangimento ao dispêndio de energia de trabalho abstracta; e não se encontra limitada à organização “dominical” de um evento sacrificial, cujos objectos as pessoas (por exemplo, no caso dos sacrifícios animais e vegetais) ainda por cima consumiam, elas próprias, num ambiente festivo, mas tornou-se uma relação abrangente e vitaliciamente totalitária de um permanente “pagamento pelo trabalho”. Os seres humanos são agora, todos sem excepção, servos do fetiche material do capital. Nesta medida, não podemos determinar a “dívida” como um endividamento meramente económico no sentido do crédito moderno, como Bolz faz de um modo superficial. Em vez disso, trata-se de uma submissão e auto-submissão compulsiva ao princípio do fim-em-si do “trabalho abstracto” que começa a devorar o mundo da vida. Já não é o ser humano que ingere ritualmente o objecto do sacrifício, cujo fumo ou cuja objectualidade simbólica e ideal apenas pertence aos deuses, mas é o objecto do sacrifício autonomizado que devora o ser humano, e isto literalmente, no dispêndio quotidiano da sua energia vital, sobre cuja finalidade já não tem controlo. Os seres humanos fizeram de si próprios vítimas da objectualidade do sacrifício.
Na realidade, o que agora está em causa é o regresso do arcaico sacrifício humano, mas justamente numa nova forma reificada. O sacrifício e o auto-sacrifício não só é permanente e abrangente, em vez de limitado aos dias feriados como antes, mas também já não constitui um acto de expiação temporária e parcial, como Benjamin assinalou com perspicácia. Em vez disso, cada acto quotidiano de auto-sacrifício de energia vital abstracta constitui nova e adicional “dívida” até à eternidade, para permitir a acumulação desmedida de “riqueza abstracta” num patamar cada vez mais elevado. É a falta de escrúpulos e insaciabilidade absoluta do movimento de fim-em-si capitalista que Marx determinou em termos conceptuais e descreveu de forma exacta, mesmo que ainda não fosse capaz de reconhecer as suas verdadeiras origens (embora se aproximasse desta compreensão com o conceito crítico de fetiche). A promessa cristã transcendente da uma remissão definitiva e não apenas temporária da “culpa” foi pervertida na totalização imanente e transcendental de uma “dívida” terrena pura e simplesmente impossível de expiar. O cristão “pecado original” da humanidade, somente expiado no além por Jesus Cristo, e evidentemente apenas para os crentes da própria facção, transformou-se na suspeição geral secularizada de uma inata falta física e mental de vontade de trabalhar, a fim de justificar a edificação do inferno capitalista à face da Terra. Já adoecer é pecado, tal como qualquer outra necessidade que possa significar um desconto do sacrifício de energia vital abstracta e, ao mesmo tempo, real.
Aparelhos de Estado, gestão de empresas, administração do trabalho, etc., e sobretudo toda a estrutura institucional da relação do capital disponibilizam o pessoal de execução e, digamos sem rodeios, os torcionários para o movimento do sacrifício terreno que tomou o freio nos dentes. E aqui não se trata apenas do sacrifício optimizado de energia vital e da preparação ou amestragem, pela terapia ocupacional, das pessoas momentaneamente não abrangíveis para se manterem preparadas, sendo entretanto, de preferência, colocadas no mínimo existencial para sentirem a “dívida” por pagar de uma forma drástica. Pelo contrário, nas situações de crise, quando a própria mecânica interna da relação do sacrifício torna objectivamente impossível a demasiadas pessoas o auto-sacrifício voluntário da energia vital, sob a forma da energia “de trabalho”, em prol da objectualidade do sacrifício autonomizada, também se reconstitui o literal sacrifício humano no seu verdadeiro sentido arcaico, sob a forma da instalação de uma maquinaria de morte.
Isto pode acontecer de três modos: primeiro, como agudização da relação do sacrifício objectivada, na medida em que as pessoas vêem o seu acesso vedado a cada vez mais fontes da reprodução; em segundo lugar, sob a forma da guerra e da guerra civil industrializada; e, em terceiro lugar, como assassínio directamente organizado de material humano já não valorizável no âmbito de um “estado de excepção”, apoiado em legislação excepcional de todo o tipo. Ninguém o admitirá, mas a terminologia nazi da “vida indigna de viver” exprime um programa geral sub-reptício do movimento do sacrifício, que se prolonga até ao âmago da representação liberal e social-democrata.
Embora todos os recursos humanos e materiais estejam disponíveis, partes crescentes da população mundial vêem cerceadas e negadas as condições de vida mais elementares. Até os magros e vergonhosos fornecimentos de ajuda material a zonas de fome e de catástrofe têm de passar pelo buraco da agulha da “financiabilidade” e fracassar nesse empreendimento, por não alcançarem o volume necessário. É pelo mesmo motivo que, nos centros capitalistas, surgem dificuldades no acesso das camadas sociais mais baixas aos cuidados médicos; estes são economicizados e cobertos de restrições, aceitando-se como inevitáveis sofrimentos e mortes tão prematuros quão desnecessários. A administração democrática das pessoas converte-se numa burocracia de morte e decide sobre o “valor da vida” do material humano, de acordo com a sua utilidade ou inutilidade prática para o moribundo fetiche do capital.
Nas sociedades religiosas pré-modernas, embora as necessidades vitais também estivessem condicionadas pela ressalva de realizações sacrais e relações de representação pessoal, as restrições materiais associadas sempre foram meramente parciais e externalizadas (nos tributos “em dívida”, temporal e localmente circunscritos à relação com Deus, como relação de sacrifício simbólica). Sob a dominação do fetiche do capital, pelo contrário, as necessidades vitais estão absolutamente subordinadas à reserva do movimento totalitário do sacrifício, enquanto acumulação de “riqueza abstracta” como fim-em-si. Isto, no entanto, significa que, em princípio, as restrições materiais podem tornar-se totais, o que também afecta periodicamente, na realidade, grandes massas de seres humanos. É um facto que, nas levas da expansão interna e externa do capital, esta consequência se manifestou repetidamente por breves espaços de tempo, mas sempre foi encoberta pela reabsorção de “energia sacrificial”, na realização continuada do movimento do sacrifício num patamar mais elevado. O desenvolvimento das forças produtivas a tal associado, que sempre teve de ser, ao mesmo tempo, um desenvolvimento de forças destrutivas, foi instrumentalizado para a justificação ideológica no sentido de um suposto “aumento do bem-estar”. Na realidade, isso sempre disse respeito apenas a uma minoria global mas, também no seu caso, de um modo temporário e, naturalmente, sob reserva da capacidade máxima de sacrifício da própria energia vital.
No entanto, e como já demonstrámos, é o mesmo desenvolvimento das forças produtivas forçado pelo mecanismo da concorrência que acaba por paralisar a máquina capitalista do sacrifício. Ora, nas imediações deste limite interno do fetiche do capital, a transcendental relação do sacrifício enquanto tal já não pode ser escamoteada. A afirmação ideológica, segundo a qual as restrições materiais e sociais se devem a uma real “penúria” material de recursos (naturais e humanos), é exposta em toda a sua falta de veracidade numa altura em que a administração capitalista do sacrifício como administração da crise desafecta recursos materiais e sociais de todo o tipo, alguns dos quais vitais, numa extensão crescente, visto os mesmos já não estarem em condições de servir o fim-em-si da “riqueza abstracta”, ou seja, não serem capazes de canalizar para o sacrifício uma quantidade suficiente de energia de trabalho. Deste modo fica definitivamente patente o irracional carácter fetichista da relação social.
Só neste ponto se torna também evidente o carácter modificado da “dívida” secundária no sentido do endividamento económico (crédito). Se o sistema de crédito gerava “investimentos para o futuro”, como diz Bolz em termos elogiosos, tal acontecia unicamente no sentido de um sacrifício futuro de energia humana ao fetiche do capital, ou seja, à objectualidade do valor autonomizada e pseudodivinizada. O segundo plano da “dívida” no sentido do movimento do sacrifício, porém, vem a ser o crédito, se o sacrifício futuro de energia humana por ele antecipado já não puder ser cobrado em termos reais. O que já foi apresentado na habitual terminologia económica adquire, pela decifragem do contexto de sentido transcendental subjacente, um significado medonho: o ídolo, o “sujeito automático”, foi ludibriado pelo sistema financeiro e vinga-se terrivelmente na sociedade, paralisando a reprodução da sua vida real com abalos sucessivos.
Esta viragem do movimento do sacrifício reificado da energia vital humana capitalizada para o literal sacrifício de possibilidades de vida e da própria vida humana processa-se, uma vez mais, não de uma forma homogénea, mas por levas, selectivamente, em determinadas áreas, de um modo escalonado tanto no tempo como no espaço e distribuído por diversas categorias sociais. Acresce que a democratização da crise exige o estatuto de sacrifício interiorizado do sujeito moderno, que nele toma consciência de si próprio; e o auto-abandono voluntário em nome do fetiche do capital, por falta de capacidade de sacrifício de energia vital e de trabalho, constitui a derradeira glória do autocontrolo capitalista e da sua loucura de exequibilidade. O restabelecimento das estruturas arcaicas do sacrifício humano, porém, não é um simples regresso, mas, como qualquer regressão, é tanto mais horrível quanto não é capaz de repousar em si mesma como estado, mas ocorre a um nível há muito afastado da origem como mutilação e destruição sem perspectiva.
Mas a regressão no terreno do fetiche do capital, já incapaz de se reproduzir também, significa que um crescimento desordenado e “asselvajamento” (Roswitha Scholz) do patriarcado moderno, da relação de dissociação sexual, abre caminho nas relações do sacrifício. O regresso do sacrifício humano imediato na economia de crise traz ainda a marca da dissociação sexual, ou seja, da estrutura moderna da subjectividade androcêntrica que, na sua decomposição, reconstitui ao mesmo tempo a “feminilidade” como “matéria-prima” “sobre cujo sacrifício também a nossa civilização está edificada” (Kurnitzky 1994, p. 61). Isto é o fim da ilusão pós-moderna de um nivelamento da assimetria entre os sexos inscrita nas formas básicas do fetiche do capital. O próprio androginismo superficial pós-moderno revela-se uma brutalização da estrutura não suplantada da dissociação, não só nas neuroses compulsivas dos fascistas religiosos, mas também nos modos de reacção da masculinidade encapuçada, economificada e orientada para a concorrência. É nisto que também transparece o carácter ideológico e afirmativo da celebração, por Kurnitzky, de uma base de mercado construída sem alicerces que, ainda assim, também segundo ele assenta em estruturas de sacrifício e, em especial, no sacrifício do objecto passional feminino. A regressão da estrutura reificada da dissociação provoca directamente a vontade de uma reconciliação desesperada com o fetiche do capital através do sacrifício primário de “carne feminina” no seu imundo altar.
Quem ainda disser que o fetiche do capital e a “razão” que lhe é imanente constituíram um progresso positivo na história da humanidade (é o caso dos idealistas da troca, como idiotas históricos da ideologia iluminista) tem de ser designado, nas condições do século XXI, como um demente pós-religioso que nada fica a dever aos dementes pseudo-religiosos desta época. Esta razão é fundamentalmente destruída na sua própria consequência histórica. O estado de emergência da paradoxal relação de sacrifício moderna, que no passado se foi manifestando periodicamente, já se tornou o estado normal para a maioria na sociedade global do início do século XXI e, passo a passo, vai forçando a entrada nos centros capitalistas. Vai-se afirmando até às entranhas da esquerda uma identificação irracional e apavorada com a subjacente relação de sacrifício, porque as pessoas foram educadas nestas categorias também em termos intelectuais e recalcaram o “outro” Marx da crítica radical do sistema da “riqueza abstracta”.
A fuga para a co-administração da crise só pode conduzir à cumplicidade com o sacrifício humano reificado e, por fim, com a sua execução consciente – já não como sacrifício da energia de trabalho abstractificada até que o material humano, chupado até ao tutano, caia morto, mas, depois de este constrangimento se tornar objectivamente obsoleto, apenas sob a forma de uma “eutanásia” burocrática, para as massas dos já não utilizáveis em termos capitalistas, que tem de assumir traços anómicos. Depois de o dinheiro ter sofrido uma mutação, convertendo-se de sacrifício simbólico na objectualidade universal do valor no sistema do “trabalho abstracto”, o “dinheiro sem valor”, sobre esta base desvalorizada e dessubstanciada, faz agora regressar condições quase arcaicas que, no entanto, já não se inserem num ritual que se desenrola dentro de determinadas balizas, mas desembocam no quadro de uma carnificina desnorteada e num recuo da civilização. Se as metamorfoses do dinheiro, do sacrifício humano até à objectualidade simbólica de substituição, constituíram um processo civilizacional parcial no terreno de relações de fetiche não ultrapassadas, o fetiche do capital pôs em marcha um movimento de sacrifício reificado cujo resultado acaba por revogar todos os elementos civilizacionais da história humana anterior. Os sanguinários sacerdotes dos astecas eram inofensivos e amigáveis em comparação com os burocratas do sacrifício ao fetiche do capital global no seu limite interno histórico.
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[1]Como se verá nas próximas páginas, o termo alemão aqui usado, Verschuldung, pode significar tanto “culpabilização” como “endividamento”. De forma análoga, a sua raiz Schuld significa, conforme o contexto, “culpa” ou “dívida”. Outro tanto se aplica às suas diversas formas derivadas. (N. do T.)
[2]A saber, o “endividamento”. (N. do T.)
[3]Cf. nota 6. (N. do T.)
[4]Convém referir aqui que a palavra alemã Opfer, para além de “sacrifício”, tem também o sentido de “vítima”. (N. do T.)