O crepúsculo da indústria automobilística
Robert Kurz
Não faz muito tempo, ela era tida como a menina dos olhos do
"milagre econômico" depois da Segunda Guerra Mundial,
como pilar do emprego e do mercado de trabalho ou mesmo como
matriz de um novo modo de vida: a indústria automobilística
sempre foi muito mais que uma simples indústria entre outras.
Ela representou, pura e simplesmente, o paradigma da cultura
capitalista da combustão. Pois, ao contrário das usuais
mercadorias do consumo de massas moderno, a mercadoria
"automóvel" imprimiu seu cunho a toda a evolução
social e alterou a face das cidades tão radicalmente como o meio
ambiente. Até hoje o automóvel domina o cotidiano de uma grande
parte da humanidade. O motor de combustão é onipresente, e as
reservas estratégicas de petróleo, sobretudo no Oriente Médio,
mas também na região do mar Cáspio, na África, na América
Latina e no mar da China, constituem o foco da política mundial.
Mas, no início do século 21, a antes tão orgulhosa indústria
automobilística, a nau capitânia da segunda revolução
industrial "fordista", deixou de ser a emissária da
esperança e envelheceu em todos os sentidos. Desde a década de
80 fala-se de uma "era pós-fordista" da terceira
revolução industrial: microeletrônica e novas formas da
telecomunicação deveriam seguir de mãos dadas com um
capitalismo de serviços pós-industrial. O setor
automobilístico, antigo centro do desenvolvimento, parece quase
um dinossauro e é tido na conta de modelo econômico em
extinção da "velha economia". O folhetim
político-econômico afirma que, no capitalismo-Internet do
futuro, o papel decisivo não mais será desempenhado pela
rodovia de fato, mas pela "rodovia de dados" da
virtualidade. Paul Virilio, o filósofo da velocidade, vê esse
processo como consequência lógica de uma cultura da
simulação; em vez do insensato progresso real mediante o
automóvel e o aeroplano, surgirá o igualmente insensato
progresso midiático, se bem que agora apenas simulado. Nesse
sentido, diz Virilio em seu ensaio "Repouso à Toda
Pressa": "Se o fim do século 19 e o início do século
20 assistiram ao advento do veículo automóvel, do transporte
dinâmico ferroviário, viário e aéreo, parece então que o fim
deste século anunciará, de fato, com a iminente implementação
do veículo audiovisual, do veículo estático, um sucedâneo
para os nossos movimentos físicos e o prolongamento da
imobilidade doméstica, uma alteração última que verá
finalmente o triunfo da sedentariedade, dessa vez uma
sedentariedade definitiva".
Mobilidade desnorteada
A cultura de uma mobilidade desnorteada como fim em si mesmo, que
só faz refletir o fim econômico tautológico ou a metafísica
econômica do processo de valorização capitalista, é tão
destrutiva em sua forma automotora como em sua forma audiovisual.
Mas abstraindo disso, cabe perguntar o quão fecunda é na
verdade, em termos econômicos, a modificação descrita por
Virilio. O ensaísta tem em vista somente a transformação
cultural, mas nada tem a dizer sobre a transformação
econômica. O fato é que a indústria automobilística como
esteio central do crescimento se esgotou e, segundo as
tradicionais regras do mercado, atingiu seus limites de
saturação histórica. Os postos de trabalho nesse setor foram
drasticamente reduzidos nos últimos 20 anos pela
racionalização e automatização microeletrônica.
Simultaneamente começaram a ruir os pressupostos logísticos do
tráfego automotor: a divisa dos motoristas alemães,
"Velocidade Livre para Cidadãos Livres", originalmente
dirigida contra os limites de velocidade impostos por lei, cai no
ridículo pelo eterno engarrafamento de ruas cronicamente
congestionadas. Nessas circunstâncias, o culto ao automóvel
não reina mais totalmente inconteste nem na consciência de
massas. A contínua ampliação da infra-estrutura para a
expansão automobilística esbarra em limites naturais e
financeiros: em regiões densamente povoadas, simplesmente não
há mais espaço para novas estradas e, paralelamente, os Estados
não dispõem mais dos fundos necessários para tanto. Esse
também haverá de ser o problema dos sonhos de florescimento de
uma possível "potência automobilística" chinesa e em
outras regiões do mundo onde, para a maioria dos habitantes, a
bicicleta se manteve até agora o único desejo realizável de
mobilidade. A densa rede viária e rodoviária indispensável
para uma massificação do automóvel, rede que mesmo os países
ocidentais mais ricos só conseguiram construir no curso de
várias décadas, é para a China, Índia, Paquistão,
Indonésia, Malásia etc. tão inviável financeiramente como
para a maioria dos países africanos e latino-americanos. O mesmo
vale para os custos de controle e manutenção da respectiva
logística do tráfego automobilístico, sobretudo o complexo
processo de refino e a distribuição nacional de combustível.
Mas sem ruas suficientes e demais pressupostos os carros não
poderiam circular, seguiriam enferrujando estacionados. Não
bastasse isso, o próprio poder aquisitivo das massas
permanecerá muito baixo para que na Ásia, por exemplo, possa
ser alcançada uma densidade da difusão do automóvel análoga
à do Ocidente. É também extremamente improvável que o boom
fordista se repita como "automobilização" da economia
doméstica na Ásia e em outras áreas, depois de já ter se
esgotado na Europa Ocidental e na América do Norte. Se são
erguidos novos centros de produção automotiva, servem eles em
primeiro lugar à exportação para os velhos países
industriais, sobretudo na "rua econômica de mão
única" que corta o Pacífico rumo aos Estados Unidos.
Invasão extraterrestre
O avanço planetário do automóvel, semelhante a uma invasão
extraterrestre, parece, pois, ter atingido limites absolutos. Mas
na verdade não foi possível ao capitalismo explorar um outro
campo de crescimento real de amplitude comparável. O capitalismo
de serviços, muito difuso, não gerou um setor dinâmico
próprio de análoga expressividade social, com uma dinâmica de
crescimento e emprego capaz de assumir o antigo papel da
indústria automobilística. A Internet é, de fato, uma
tecnologia-chave, cuja ocupação e criação de valor,
entretanto, por sua natureza, há de permanecer reduzida.
A World Wide Web constitui o setor dinâmico para uma economia
simplesmente virtual da bolha financeira global, mas não para a
economia real. Nesse sentido, as indústrias fordistas não foram
de modo algum substituídas pelas do ramo virtual. Como economia
de combustão de força de trabalho humano e energia fóssil, o
capital continua preso, em seu processo de acumulação real, à
clássica indústria de massas. O que se "queima" na
Internet, pelo contrário, é simplesmente o capital dos
investidores.
Disso resulta uma importante ilação: se as indústrias
fordistas, com o automóvel como sua principal mercadoria,
envelheceram, envelheceu também o próprio capitalismo. O modo
de produção capitalista como tal é a esgotada e já infértil
"velha economia". Por isso cabe ao destino da
indústria automobilística um sentido decisivo para o destino de
toda a economia mundial. O "crepúsculo" do antigo
setor dinâmico socioeconômico vira um símbolo da decadência
do capital mundial, ainda que esse processo se prolongue por
várias décadas e ainda não seja reconhecível em sua
extensão.
Já em 1997 apareceu em Londres um estudo da McGraw-Hill em que
se advertia para o excedente mundial da produção
automobilística. A crise estrutural daí resultante conduziria,
no mais tardar a partir de 2001, a graves rupturas, como se disse
então. Esse prognóstico sombrio, é claro, logo caiu no
esquecimento, pois o boom automotivo pareceu de início avançar
sem freios. Mas esse boom havia muito não caminhava pelas
próprias pernas, antes era estimulado por meio da demanda de
financiamentos, que não correspondia mais à receita real. Um
número cada vez maior de consumidores (não só nos EUA, no
mundo inteiro) se endividam a longo prazo com créditos e
contratos de leasing ou lançam mão de suas parcas economias
para financiar um carro. E da riqueza fictícia dos jovens
capitalistas da Internet acercou-se sobretudo o segmento de luxo:
no "ano admirável" de 1999, bateu recordes, com a
euforia da Bolsa, a produção de limusines e carros esportivos.
Mas sob a superfície a figura era outra, não só do lado da
demanda, mas também do lado da oferta. Tal como em outros ramos
produtivos, também no setor automobilístico sinalizou a
contínua onda de fusões, aquisições e "alianças
estratégicas" uma nova qualidade da concorrência selvagem
transnacional. Isso se deduz do fato de que, agora, todos os
produtores querem estar presentes ao mesmo tempo não somente em
todas as regiões do mundo, mas também em todos os segmentos do
mercado. Enquanto a Volkswagen, por exemplo, que ao lado da Ford,
é o produtor clássico de carros populares, busca
sistematicamente se insinuar com pesadas limusines no setor
nobre, a Mercedes-Benz, clássica marca de luxo, faz
concorrência a outros produtores com veículos pequenos. Os
enormes custos adicionais de desenvolvimento dessa "guerra
do modelo" logo terão efeito negativo nos balanços. Os
excedentes reais também se fizeram notar pelo fato de os custos
não serem repassados aos preços. Pois a luta por segmentos em
mercados saturados conduziu a uma guerra de preços até hoje em
vigor e agora de forma tanto mais aguçada. Para disparar as
cifras de venda, os produtores se esmeraram em oferecer
financiamentos especiais, descontos, modelos exclusivos,
acessórios grátis e até mesmo brindes. Essa tendência,
originária dos EUA, empolgou nesse meio tempo todo o mundo da
indústria automobilística. Resultado lógico: preços
decrescentes com custos ascendentes e, por conseguinte, lucros
decrescentes apesar do aumento nas vendas. Aqui se revela um
paralelo irônico entre a indústria automobilística e o
e-commerce: em ambos os casos, se observa desde 1997 um
crescimento cego das vendas, enquanto os lucros encolhem ou até
mesmo perdas espantosas são assimiladas. Os limites absolutos
desse processo são hoje visíveis. Logo pode se concretizar o
reprimido prognóstico de 1997 da McGraw-Hill. O financiamento da
venda de carros mediante crédito ao consumidor, descontos etc.
estanca-se tal como o fluxo de demanda da reciclagem dos lucros
especulativos nos mercados financeiros. A real saturação do
mercado mundial de automóveis não se deixa mais ocultar. Na
Europa agrava-se a situação cada vez mais, porque a
"automobilização tardia" da Europa oriental, a partir
de 1989, chegou ao fim: o poder de compra limitado e bastante
reduzido nos Estados reformistas do Leste não permite mais
nenhum aumento na venda de carros. Pela mesma razão, escoam cada
vez menos carros usados da Europa Ocidental para a Oriental, e
estes inundam os mercados ocidentais e puxam para baixo os
preços no mercado de carros novos, pois, para compradores cada
dia mais apertados, a opção de um carro usado se torna
interessante. A crescente obstrução dos mercados globais de
carros é condicionada por mais um fator, com o qual ninguém
contava: os preços vertiginosos alcançados pelos combustíveis
não agem somente sobre a conjuntura em geral, mas também sobre
a demanda de automóveis em específico. Tal pode continuar assim
ainda que o preço do petróleo caia momentaneamente. Isso porque
não se trata de um problema conjuntural, mas estrutural. A
despeito de todos os desmentidos, começam a se cumprir os
prognósticos negativos do "Clube de Roma" dos anos 70:
as provisões globais de petróleo estão diminuindo. Não tanto
a quantidade de matéria fóssil energética em geral, mas a
quantidade que pode ser extraída pelas condições atuais.
O fim do petróleo
Segundo relato de Fritz Vahrenholdt, sócio-diretor da Shell
alemã, até 2014 uma boa parte do petróleo extraído de modo
convencional estará esgotada, e a prospecção ficará cada ano
mais dispendiosa. Os enormes custos de investimento para bacias
petrolíferas recém-descobertas e ainda a serem exploradas (como
por exemplo na região do mar Cáspio) afetarão os preços do
petróleo de modo semelhante aos custos adicionais para uma
possível prospecção petrolífera em outras regiões do mundo
já incapazes de jorrarem com tanta generosidade, como nos
Estados do golfo Pérsico, no Oriente Médio, porque o petróleo
há de ser primeiro custosamente separado de areia e pedraria.
E a busca por materiais sintéticos para substituir as fontes
energéticas fósseis foi até agora baldada, apesar de todos os
anúncios de sucesso. A pretensa alternativa do hidrogênio, por
exemplo, não é alternativa alguma, uma vez que as próprias
células de hidrogênio combustível têm de ser hauridas em
grande parte de energia fóssil. Por mais que se faça, o
combustível no futuro será sensivelmente mais caro que hoje.
A partir de março de 2000, o irônico paralelo entre indústria
automobilística e e-commerce ganhou um traço negativo: em ambos
os casos, a inflação dos custos conjugada a preços reduzidos e
lucros reais minguados ou inexistentes levou à queda nos
índices das Bolsas. O valor acionário da Daimler-Benz, por
exemplo, caiu de 70 para 47 bilhões de dólares. E a ladeira só
começou: no primeiro semestre de 2000, o mercado de carros de
passeio europeu caiu 6%, e o alemão, 11%. Para a Ford, a grande
perdedora, a queda foi de 30%. Nos EUA, as vendas da Chrysler
despencam mês a mês na casa dos dois algarismos o cartel é
tido como o primeiro grande "candidato à morte" da
indústria automobilística. Para a Daimler-Benz, uma das maiores
produtoras de automóveis do mundo, a fusão com a Chrysler na
"Welt AG" ameaça acabar em completo desastre: a
contínua queda das ações da Daimler-Benz pode transformar todo
o cartel em objeto de uma "aquisição hostil", para a
seguir ser retalhado e desativado.
Ao que parece, a queda dos índices virtuais da Bolsa nos
"novos mercados" e a ruptura econômica real da indústria automobilística planetária levarão a uma escalada
recíproca: o derreter do "capital fictício" repercute
na conjuntura real sobretudo no setor automobilístico, e a
tendência recessiva da conjuntura automobilística, por sua vez,
repercute nos mercados financeiros. A hora da verdade está próxima.
São Paulo, domingo, 07 de janeiro de 2001
http//planeta.clix.pt/obeco/
Robert Kurz é sociólogo e
ensaísta alemão, autor, entre outros, de "O Colapso da
Modernização" (Paz e Terra) e "Os Últimos
Combates" (Ed. Vozes). Ele escreve mensalmente na seção
"Autores", do Mais!.
Tradução de José Marcos Macedo.