UM XEQUE-MATE NO CAPITALISMO

O filósofo alemão Robert Kurz vê na crise do Leste sinais de um colapso do sistema econômico mundial


Embora muitos intelectuais venham tentando responder em ensaios e livros, ao que George Bush qualificou de "Nova Ordem Mundial", é indisfarçável a perplexidade que se apoderou de todos - políticos, economistas, cientistas sociais - diante das dimensões e da velocidade com que vêm se modificando a política e a economia internacionais.

Se no campo dito "neoliberal" e nas áreas conservadoras o problema da crise do socialismo foi "resolvido" com uma euforia triunfalista (tão cínica quanto inútil do ponto de vista do esclarecimento do que se passa), no terreno do pensamento de tradição marxista, ou de "esquerda", os efeitos do esfacelamento das experiências socialistas têm sido devastadores. Se o que era para ser feito deu errado, o que pensar?

Em seu livro "O Colapso da Modernização", que ainda este ano deverá chegar ao leitor brasileiro pela editoria Paz e Terra, o alemão Robert Kurz talvez tenha conseguido dar um passo à frente de seus pares - e fornecer pistas para um entendimento mais consistente da dinâmica do mundo neste conturbado fim de século.

O primeiro a descobrí-lo e comentá-lo no Brasil foi o professor e crítico de filiação marxista Roberto Schwarz. Num texto publicado pela Folha, em maio último, qualificando o livro de "inteligente e incisivo", o professor da Unicamp saudava a voz destoante do alemão que ousou quebrar a "unanimidade" das análises que vêem na crise socialista o triunfo do mercado sobre o estatismo, a superioridade do capitalismo sobre o socialismo e a refutação indiscutível dos prognósticos de Marx.

Para surpresa de Schwarz - e certamente de quem venha a ler o livro -, Kurz sustenta algo substancialmente diferente. Como escreveu o crítico brasileiro, para o filósofo alemão "a mencionada débâcle representaria, nada menos e pelo contrário, o início da crise do próprio sistema capitalista, bem como a confirmação do argumento básico de 'O Capital'".

Para esboçar tal ousadia, Kurz, 50 anos, um alemão que até a semana passada, quando chegou ao Brasil, nunca havia ultrapassado as barreiras da Europa em suas poucas viagens, parte de algumas premissas. Antes de mais nada, não contrapõe modelos abstratos de sociedade. Não trabalha com oposições simples do tipo capitalismo versus socialismo ou democracia versus autoritarismo. Procura perceber, ao contrário, um sistema mundial de produção de mercadorias, articulado e em movimento.

Considerados desta forma, capitalismo e socialismo reais deixam de se erigir em simples modelos "puros", estanques, um em oposição ao outro. O que se tem é um sistema mundial de produção de mercadorias do qual as economias socialistas fazem parte, tanto quanto as capitalistas.

Vista nesta perspectiva, a quebra das economias socialistas explicitaria, na realidade, os impasses do sistema global - cuja crise caminharia da perifeira para o centro, partindo do Terceiro Mundo, passando pelos países socialistas para, enfim, atingir os países ricos.

Na última semana, Kurz participou de um seminário sobre a "Nova Ordem Mundial", promovido pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Na terça-feira, ele recebeu a Folha para a entrevista que se segue, na qual comenta suas teses e a crise internacional.

(Fernando de Barros e Silva e Alcino Leite Neto)

Folha - Uma das conclusões centrais de seu livro "O Colapso da Modernização" é a de que o capitalismo, e não o socialismo, está em xeque-mate. De forma original, o senhor diz que, depois de lutar contra a exploração capitalista, os trabalhadores têm que lutar agora contra a falta dela. Do sistema de exploração, se passa para uma situação de exclusão porque os grandes centros capitalistas passam cada vez mais a prescindir da exploração do trabalho tal como foi pensada por Karl Marx. O senhor não acha que o Terceiro Mundo não serve mais para nada, nem mesmo para ser explorado?

Kurz
- De fato, esse é um dos pontos centrais do meu livro. Este processo de exclusão é mais evidente nos países do Terceiro Mundo ou nos países do antigo bloco soviético, mas indícios desse fenômeno podem ser notados nos próprios países do Primeiro Mundo. E a maior contradição está justamente aí. Sempre que o capitalismo chega no limite de sua lógica interna, quando parece que vai se esgotar, surgem novas formas de tecnologia e de desenvolvimento científico que o recolocam em funcionamento.

Isso está empurrando o mundo numa direção em que o trabalho é substituído por mecanismos artificiais de produção de riqueza. A grande contradição é que a idéia de acúmulo de capital só funciona com a exploração do trabalho. Se não há trabalho, não há acúmulo de capital. Na verdade, o sistema algum dia vai se esgotar. Por mais que se vá automatizando todo o processo, o capitalismo chegará a um momento em que não conseguirá mais funcionar assim. Isso vale para o Primeiro, Segundo ou Terceiro Mundo.

Folha - O sr. conhece a teoria de Dependência que foi desenvolvida por Fernando Henrique Cardoso, um dos intelectuais brasileiros que mais marcaram a sociologia na América Latina durante os anos 60 e 70? Essa situação que o sr. expõe parece uma espécie de releitura desta teoria, já que apresenta uma nova forma de "dependência".

Kurz
- Não, não conheço a obra de Fernando Henrique, mas é bastante possível que minha teoria seja de alguma forma um prosseguimento dela. É muito razoável imaginar que, em diversas partes do mundo, as pessoas cheguem às mesmas conclusões, pois o sistema é um só e a realidade que vivemos é uma só. É possível que certas tendências do pensamento se manifestem aqui, como na Europa ou qualquer outro lugar. Como vemos este sistema de maneira global, e também a crise como global, a discussão e as soluções para esta encruzilhada também são discussões que vão ser travadas em nível global.

O que aconteceu é que há 15, 20 anos atrás, havia economias nacionais autônomas e que funcionam de maneira autônoma. Nos últimos anos, os limites desta economia nacional foram destruídos e está se criando uma grande economia que está por cima da compreensão da nacionalidade, de que um país deva ter um mercado interno. Esta explosão vem diretamente associada com a miséria crescente em alguns pontos do mundo. Então, esta grande explosão do mercado é ao mesmo tempo o próprio colapso do sistema.

Folha - No seu novo livro, que deve ser publicado no próximo mês na Alemanha, "O Retorno de Potemkim", o senhor aprofunda certos aspectos que estão tratados em "O Colapso da Modernização". Poderia falar deste livro, começando pelo título inusitado?

Kurz
- O título é claramente irônico. Tanto neste livro quanto no outro ("O Colapso da Modernização"), procuro ver esse sistema global de produção de mercadorias com os olhos voltados para a realidade da unificação alemã. Isto é, como a Alemanha hoje está se inserindo neste sistema global. Havia uma ilusão neoliberal de que a anexação da Alemanha Oriental iria dar início a um grande impulso no rumo do capitalismo, o que não está acontecendo. A idéia da unificação era a de que, com o aumento do mercado consumidor, você poderia além de vender muito mais, investir na parte oriental do país e assim provocar um novo milagre econômico na Alemanha. Isso não ocorre. A Alemanha Ocidental era já tão desenvolvida que ela prescindia da própria Alemanha Oriental. Também não se confirmou a previsão de que a Alemanha Oriental receberia investimentos. O que ocorreu é que os ocidentais estão usando os orientais para vender os seus produtos, e só. Mas as pessoas na Alemanha Oriental estão desempregadas, têm cada vez menos dinheiro e, em consequência disso, não têm condições de comprar nada. Criou-se uma grande farsa financeira, esta é a verdade.

Não há nenhum capitalismo produtivo, que é o capitalismo potemkiano. Nesse quadro, o Estado alemão, todos os anos, destina uma verba de cerca de 200 bilhões de marcos para a Alemanha Oriental, não para investir num parque industrial, mas para que os alemães orientais comprem os produtos que são feitos na Alemanha ocidental. É uma grande farsa que vai funcionar talvez alguns anos, mas que em algum momento próximo vai se esgotar.

Folha - A partir desta reflexão sobre a Alemanha, seria interessante saber o diagnóstico que o sr. faz do ressurgimento dos nacionalismos, do neonazismo, e também das ondas de imigração de uma Alemanha à outra e do Leste em geral para a Europa Ocidental.

Kurz
- Eu não vejo este novo movimento nacionalista da mesma forma como aquele que aconteceu no início do século. Este último é um nacionalismo que vem do século passado, que é o da formação da economia nacional. A economia nacional é aquela que hoje em dia se rompeu para se tornar a grande economia. Naquela época os movimentos nacionalistas eram a idéia nacional de uma economia autônoma. Os movimentos nacionalistas eram progressistas neste sentido, porque eles continham o projeto de desenvolver uma economia nacional autônoma.

Hoje o nacionalismo tem uma característica destrutiva, é reflexo da crise que estamos vivendo e da destruição do sistema, que é iminente. O novo nacionalismo participa desta desintegração que está havendo no mundo. Hoje na Europa se fala de um etno-nacionalismo, porque muitos países, como a Alemanha, são multirraciais, onde vivem há muitos anos vários grupos de estrangeiros. O nacionalismo não é o de alemães contra não-alemães. É o nacionalismo de pessoas que estão incluídas no sistema e que vivem bem e pessoas que estão excluídas. Muitas regiões da ex-Alemanha Oriental são regiões que estão excluídas, não participam do sistema e nem vão participar. E essas regiões querem fazer parte do sistema. O nacionalismo vem daí, do interesse de querer participar do que resta ainda deste sistema global. O ódio que se tem na Alemanha contra estrangeiros não é só contra eles, mas também contra os alemães que estão vindo da União Soviética ou de regiões que antes da Primeira Guerra eram habitadas por alemães.

A questão é pertencer ou ser excluído do sistema, fenômeno que pode ser identificado também nas ligas separatistas no norte da Itália, onde se fala que a partir de Roma para o sul não é mais Itália, é África. Ou então na Iugoslávia, onde antigos Estados fortes, como a Eslovênia e a Croácia querem participar da Comunidade Econômica Européia, querem se integrar à nova ordem, e os pobres, que são os sérvios e macedônios, estão excluídos. O que acontece no caso dos iugoslavos é um processo destrutivo de desintegração. É uma reação dos grupos que estão excluídos. Eles começam a ser agressivos, se organizam e promovem a guerra. Estes grupos normalmente não são hegemônicos, não existe um grande partido, uma grande idéia. São, no caso da Alemanha Oriental, grupos pequenos, criminosos mesmo. É mais uma atmosfera destrutiva que cerca as pessoas e que dá margem à formação destes grupos - isso não parte propriamente de uma idéia política ou de um partido.

Folha - Se caminhamos para o colapso ou já estamos no colapso, o sr. imagina alguma forma de organização política que possa, não conter o colapso, mas ultrapassá-lo ou levá-lo mais rápido para o fim?

Kurz
- Temos uma situação em que o socialismo está morto e o neoliberalismo está morto, apesar do que pensam seus entusiastas. Qualquer forma de política passa necessariamente por lutas parciais e conquistas em um âmbito restrito. O problema é que movimentos como o ecologismo, a luta feminina, das minorias, etc. têm que enfrentar o problema do capital, da circulação universal das mercadorias. Esta é a dificuldade: conciliar lutas pontuais e específicas com uma crítica à universalidade do atual mercado capitalista.

Folha - Qual o prazo que o sr. dá para a atual euforia neoliberal?

Kurz
- Eu acho que já vivemos uma espécie de pós-euforia liberal. O mundo está percebendo muito rápido que os problemas colocados pelo liberalismo não só não foram resolvidos, como estão se agravando.

Folha - A sua leitura do "colapso da modernização" parece inspirada, em muitos aspectos, sobretudo na aposta por um futuro sombrio para a humanidade, nas idéias da chamada Escola de Frankfurt, especialmente na "Dialética do Iluminismo" de Adorno e Hokheimer. Isso é verdade?

Kurz
- Sem dúvida nenhuma. Vejo a Escola de Frankfurt como uma base para todo o meu pensamento. Mas há dois procedimentos dentro da esquerda na Alemanha, ou na Europa, que seria melhor que deles nos afastássemos. Um deles é o das pessoas que aprenderam a idéia, mas estão colodas à idéia e ficam administrando o legado da Escola de Frankfurt. Outro procedimento é aquele das pessoas que acabam descartando as idéias da Escola de Frankfurt como se fossem uma camisa suja que precisa ser jogada no lixo. Toda idéia morre se ela não for levada adiante. É preciso conhecer as idéias de Adorno e Horkheimer, mas é preciso também retrabalhá-las, para que não morram.

S. Paulo, Setembro 1992

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