ENTREVISTA COM ROBERT KURZ
Nesta entrevista por telefone de Nurembergue (Baviera), Kurz
explica por que o crescimento de vários países em 1993 nada
altera em suas previsões catastróficas, e comenta a campanha
contra a fome no Brasil: "É mais uma iniciativa contra a
barbárie".
Folha
Em 1993, os
Estados Unidos cresceram 2,9%. Houve também um enorme
crescimento na China. Isto não está em contradição com suas
previsões sobre uma crise mundial?
Robert Kurz
Não, porque não fiz prognósticos de conjuntura, mas a
previsão de uma crise fundamental. Pode-se falar em uma era de
crise, em que esse sistema mundial de produção de mercadorias
encontra seus limites. Pode-se dizer por exemplo dos EUA que, em
face do processo de endividamento que houve lá, um crescimento
abaixo de 3% é totalmente insatisfatório. No que diz respeito
à China, é preciso levar em conta que se trata de um
crescimento a partir de um nível muito baixo. A China teve algum
sucesso nas exportações, mas de um ponto de vista absoluto
ainda é muito menor que a pequena ilha de Taiwan.
Folha Seu livro leva o
leitor a supor que nenhum crescimento seria possível na antiga
Alemanha Oriental, mas houve lá um crescimento de 6,3% em 1993.
Kurz
O desenvolvimento desde 1990 levou a produção industrial a cair
mais de 30%. A antiga RDA desceu a um nível tão baixo que a
partir de agora precisaria de um crescimento atual de 10% para
atingir em uma década o nível de vida da era Honecker. Há
também um segundo ponto a ser considerado: esse crescimento não
provém da produção industrial, mas principalmente do setor de
serviços. E este não é autonômo, depende da transferência de
capital improdutivo da Alemanha Ocidental, é uma transfusão de
sangue artificial.
Folha O sr. poderia
explicar melhor o sistema mundial produtor de mercadorias? Não
é um conceito abstrato demais?
Kurz
Escolhi esse conceito porque o de modo de produção capitalista
me parece estreito. Eu queria encontrar um conceito comum a todos
os sistemas modernos, aí incluído o socialismo estatal do
Leste, que apesar de todas as suas diferenças possuem algo de
comum a todas as sociedades modernas ou sociedades de
modernização, já que não se trata de algo estético. O que
caracteriza a modernidade é o caráter sistêmico do dinheiro e
da mercadoria. Toda a reprodução social é abrangida por esse
sistema.
Folha Qual é o
sentido da modernidade, na sua opinião?
Kurz
É um conceito ambíguo, porque no fundo há uma espécie de
truque, o "fim da história" de Fukuyama, algo que já
aparecia nos filósofos da Ilustração. O que procuro mostrar é
que do cerne econômico dessa modernidade, da disseminação das
relações de mercado, pôs-se em marcha uma dinamização que
fez da modernidade uma formação econômica-histórica, a
primeira em que o dinheiro assume o papel principal. A outra tese
é que a lógica dessa sociedade se globaliza e, nessa medida,
alcança seu final histórico.
Folha Depois de 1989,
a designação "marxista" se tornou uma espécie de
ofensa. O sr. se qualificaria como marxista?
Kurz
Não, mas não porque considere vergonhoso. Eu parto da teoria
marxista, mas acredito que mesmo essa teoria deve ser
historicizada. Ela tem passagens que, com essa ruptura de épocas
do começo dos anos 90, se tornaram efetivamente obsoletas.
Aquilo que representa o cerne da teoria, a crítica do sistema
produtor de mercadorias, do famoso fetichismo da mercadoria, é o
que me parece hoje mais decisivo na teoria marxiana.
Vivemos momentaneamente uma grande paralisia: de um lado, o mundo
se torna cada vez mais catastrófico e perigoso, caminha para o
desastre ecológico, a miséria humana se desenvolve a um ponto
até então desconhecido e na mesma proporção sucumbe a
crítica social. Independentemente da ideologia, a pressão
aumenta, a situação do homem da massa torna-se mais e mais
catastrófica. Com isso, os levantes espontâneos como o de
Chiapas, no México, devem se tornar mais comuns.
Folha O sr. fala muito
em ilusão no seu livro, na incapacidade dos sujeitos para
perceber o que de fato está acontecendo.
Kurz
O processo de modernização é também aceleração da
história. O ciclo de crises se acelera a olhos vistos, estamos
em uma rota de colisão global. E quando se fala de como os
homens isoladamente percebem esse fato, é preciso dizer que para
muitos seres humanos, possivelmente para a maioria da população
mundial, o colapso já está aí. Eles não conseguem mais
alcançar o sistema de mercado, a normalidade capitalista. Tenho
a suspeita de que muitos intelectuais falavam em crise quando ela
ainda não existia, e agora que ela chegou se assustam e
subitamente não querem mais ouvir falar em crise. Pode-se
também erguer muros e grades, como vi aí no Brasil, algo que
já começa a surgir por aqui.
Folha Mas por outro
lado, existe no Brasil uma iniciativa civil de centenas de
milhares de pessoas contra a fome. Seria este um exemplo do que o
sr. chama de "razão sensível"?
Kurz
Sem dúvida é algo racional, fico muito contente em ouvir isso.
Não conheço os detalhes da ação, mas é uma iniciativa contra
a barbárie. Só o nome, o fato de ser contra a fome, já diz
muito. Algo feito não em nome de alguma ideologia abstrata,
genérica. Eu não sou assim tão pessimista, apesar da paralisia
da crítica social. Essas iniciativas representam algo de
verdadeiramente novo.
Folha O sr. se refere com
frequência em "O Retorno de Potemkin" à guerra civil,
banditismo, falcatruas na privatização. Na sua opinião, o
capitalismo é essencialmente mal?
Kurz
Não. Não, não. No outro livro, "O Colapso da
Modernização", procuro em várias passagens mostrar que,
no mesmo sentido em que Marx falou da missão civilizatória do
capital, esse desenvolvimento sempre comportou aspectos
positivos, até emancipatórios.
Publicado em 20/02/94 no caderno Mais! da Folha de São Paulo.