Eduardo Ferraz
Segundo o filósofo alemão Robert Kurz, há muitas feridas na atual forma da economia mundial. E ele tem uma especial habilidade para tocar o dedo nelas. Kurz, que mora em Nurembergue e publica uma revista teórica semestral chamada Krisis, saiu de seu berço na esquerda marxista tradicional para desenvolver uma nova abordagem na análise dos problemas contemporâneos. No cerne de seu pensamento está uma indagação simples: "Por que depois que inventaram as máquinas as pessoas têm que trabalhar mais do que antes da existência delas?" Por trás dessa singela pergunta, vêm à tona questões profundas da relação do homem com o trabalho que nem o comunismo nem o capitalismo conseguiram responder satisfatoriamente.
"Artesãos e camponeses trabalhavam menos que os trabalhadores de hoje" |
Nadando contra a corrente, Kurz diz que a concorrência frenética gera uma grave deterioração nos relacionamentos humanos e que a revolução da microeletrônica representa um perigo para a sociedade por estar aliada a um sistema de produção que tende a criar cada vez mais desemprego. Tido por muitos como catastrofista, o filósofo, 54 anos, tece suas críticas com uma argumentação lógica e bem embasada, e encontra grande repercussão na Europa. No Brasil, onde tem três livros publicados (O colapso da modernização, O retorno de Potemkin e Os últimos combates), a discussão sobre suas teses há muito ultrapassou os muros da academia. Mas nem tudo é sombrio no discurso de Kurz. Sem querer "tirar da cartola" um projeto alternativo de sociedade, ele vislumbra um modo de trabalho menos opressivo, que contenha lazer e no qual as pessoas não sejam reduzidas às suas funções. Nessa entrevista concedida a ISTOÉ em São Paulo, onde veio dar uma palestra no 5º Congresso Mundial de Lazer, Kurz mais uma vez põe o dedo na ferida e mostra por que acredita que o mundo está vagando por um caminho perverso.
ISTOÉ Por que o
sr. diz que trabalho e lazer estão em crise?
Robert Kurz Nós acreditamos que as pessoas no
passado trabalhavam mais do que hoje. Mas, quando se analisa a
história, é exatamente o oposto que aconteceu. No passado, os
artesãos e os camponeses trabalhavam menos que os trabalhadores
e administradores de hoje. Sempre tivemos a expectativa de que o
tempo de trabalho fosse sendo cada vez mais reduzido.
ISTOÉ Mas
durante a revolução industrial as pessoas não chegavam a
trabalhar 15, 18 horas por dia?
Kurz Sim, mas essa já é a história da
modernização. A gente tem que ver a história como um todo. A
nossa perspectiva só vai até a época da industrialização.
Mas isso está errado. A pergunta ainda está aí. As máquinas
poupam tempo, elas trabalham por você. Então, por que depois
que inventaram as máquinas as pessoas têm que trabalhar mais do
que antes da existência das máquinas?
ISTOÉ Por quê?
Kurz Porque na economia moderna, o tempo
economizado pelas máquinas não é utilizado em benefício das
pessoas que produzem. É usado em mais produção. É um objetivo
próprio desse sistema econômico. A economia de tempo resulta ou
em mais trabalho ou em desemprego. E hoje esse modelo chegou a um
limite por causa da microeletrônica. A economia de tempo gerada
pela microeletrônica é tão grande que não se consegue mais
transformá-la em trabalho adicional, mas só em desemprego. As
potencialidades da microeletrônica e das forças produtivas
deveriam ser usadas para dar às pessoas mais ócio, mais tempo
de lazer, mas com um padrão de vida bom. Isso é tecnicamente
possível.
ISTOÉ E como se
explica o caso dos Estados Unidos, onde a produtividade é alta e
o desemprego é baixo?
Kurz Lá houve um boom de consumo gerado por
uma boa conjuntura. As pessoas consomem, não com seu salário
real, mas sim com o capital especulativo. Nos últimos 15 anos as
ações de empresas foram expandidas até alcançar preços
irreais. É algo do qual participa não só a camada mais alta,
mas muitos trabalhadores normais, da classe média. Os salários
reais recebidos hoje diminuíram, voltaram ao que eram no início
dos anos 80. Essa elevação, fictícia, no valor das ações
serve como garantia para as pessoas contraírem empréstimos. Eu
acho que essa conjuntura fictícia vai explodir quando o valor
das ações cair. E aí o número de desempregados nos Estados
Unidos vai aumentar muito. É uma crise conjunta de trabalho e
capital.
ISTOÉ Em sua
obra, o sr. aponta como um grande problema a forma de
organização do trabalho. O que está errado?
Kurz Precisamos discutir o que é trabalho.
Estamos habituados hoje em dia a chamar de trabalho qualquer tipo
de atividade produtiva. Esse conceito surgiu na história
juntamente com o capitalismo. Mas é um conceito abstrato, porque
não se trata de o trabalhador produzir bens concretos para
atender às suas necessidades, ou fazer alguma coisa para
melhorar sua vida. Essa atividade que se vê nas fábricas e nos
escritórios é um fim em si próprio. É uma transformação da
energia abstrata em dinheiro.
ISTOÉ Mas o
trabalhador também usa esse dinheiro em benefício próprio.
Kurz Isso é só um produto residual desse
movimento de acumulação de capital. Embora a produção tenha
potencial de sobra para garantir a todos moradia e comida, a
maioria das pessoas vive na pobreza. Isso é a prova de que o
objetivo dessa produção não é a libertação, a satisfação
das necessidades. Esse sistema só beneficia umas poucas pessoas
em número cada vez menor que podem morar e se
alimentar bem. É preciso se distanciar e analisar o que é isso,
por que está tudo tão louco...
ISTOÉ Os gurus
da administração de recursos humanos estão preocupados com a
qualidade de vida dos empregados porque descobriram que eles
produzem melhor se tiverem uma vida saudável. O sr. não acha
que isso representa uma boa perspectiva para o trabalhador?
Kurz Essa é uma preocupação perversa. Porque
não se trata de cuidar do bem-estar de fato do funcionário, mas
de fazer com que seu trabalho sirva plenamente a esse terror da
economia. Querem o trabalhador o mais saudável possível para
que se possa tirar mais dele.
ISTOÉ As pessoas
procuram hoje se realizar mais no trabalho?
Kurz Não. Porque elas não definem objetivos
próprios, não realizam objetivos próprios, mas atendem às
exigências do mercado. O homem se tornou flexível, hoje faz uma
coisa, amanhã está fazendo outra. Não para si, porque ele
quer, mas porque senão ele não pode vender a si próprio. O
homem moderno e flexível não faz mais a pergunta "o que eu
quero?", mas sim "como eu posso vender a mim
mesmo"? Isso é de uma tremenda pobreza. O resultado é um
indivíduo esquizofrênico.
ISTOÉ É por
isso que se toma tanto tranquilizante?
Kurz Claro. Essa é uma semelhança entre
pobres e ricos. Ambos estão tomados pelo medo.
ISTOÉ Quem tem
mais tempo livre, o rico, a classe média ou os pobres?
Kurz Ninguém tem tempo livre. Os ricos vivem
com medo da concorrência. Os pobres são pobres de recursos. E o
tempo dos desempregados não é um tempo livre. Eles precisam
andar quilômetros em busca de emprego. Isso também não é
tempo livre, tempo de lazer.
ISTOÉ Em que
parte do mundo essa falta de tempo livre é mais grave?
Kurz Está em todo mundo, não está numa
determinada região. No mundo inteiro existe esse problema de
desemprego em massa e subemprego. O horário de trabalho tem se
estendido. Na Alemanha houve aquela discussão dos sindicatos
sobre redução da jornada de trabalho, mas agora nos anos 90 a
pressão da concorrência é tão intensa e o nível de
desemprego está tão alto que ninguém mais discute essa idéia
de redução da jornada de trabalho. Não é mais um tempo de
esperança, mas um tempo de medo. Por isso as pessoas estão
aceitando condições de trabalho cada vez piores.
ISTOÉ O
neoliberalismo está sabotando as conquistas trabalhistas?
Kurz A crise do sistema provoca a destruição
das conquistas do movimento trabalhista. O neoliberalismo é a
ideologia e o executor dessa crise. O problema dos movimentos
trabalhistas, dos sindicatos, é que eles queriam melhoria no
trabalho, sem contudo questionar essa própria concepção de
trabalho. Sob o ponto de vista histórico, essas melhorias foram
obtidas, mas hoje não se avança mais, só se retrocede. Temos
necessidade de encontrar uma nova perspectiva da crítica e da
emancipação que não procure aperfeiçoar esse sistema de
trabalho, mas o transcenda, para que se trabalhe menos e se tenha
uma vida melhor. É necessário criticar a própria lógica atual
do trabalho.
ISTOÉ O sr. tem
alguma proposta alternativa?
Kurz Não dá simplesmente para tirar da
cartola um programa político concreto. Um programa só pode ser
criado a partir da vontade de milhões de pessoas. O pressuposto
para isso é que haja uma discussão pública que coloque essas
perguntas. Isso vai tomar corpo quando as pessoas não mais
aceitarem esse terror da economia. E aí talvez se desenvolva um
programa concreto.
ISTOÉ A
produtividade é um problema em si?
Kurz Não. Todas as pessoas de sindicatos ou de
grupos políticos, cientistas sociais e economistas, todos
analisam esse problema, mas não fazem uma crítica à moderna
forma de economia. Para eles parece que o problema é uma
produtividade muito alta, que gera desemprego. Mas é o oposto. O
problema é a forma da economia. Não é necessário você
aumentar constantemente a produtividade, mas também não tem
problema nenhum se essa produtividade está alta. Uma alta
produtividade significa que com menos tempo você produz mais.
Isso não deveria ser um problema. Só que, antes, o tempo que
você economizava era transformado em mais trabalho. E hoje, com
a revolução tecnológica, você não consegue gerar mais
trabalho com a mesma velocidade com que poupa o tempo. Então
isso gera desemprego.
ISTOÉ O que o
sr. acha do caminho econômico adotado pelo Brasil, um projeto
que procura inserir o País na economia global e aceita as regras
desse jogo?
Kurz Essa não é uma situação específica do
Brasil. Todos os países passam pela mesma situação. O governo
diz que precisa mudar o país para estar pronto a enfrentar a
concorrência mundial. Mas enfrentar a concorrência mundial é
uma opção de uma minoria lá em cima. Existem regiões na
Europa que já não conseguem mais acompanhar o ritmo da
economia. Formam-se zonas de pobreza cada vez maiores. Mas não
acredito que a alternativa seja uma volta ao nacionalismo antigo.
Isso já passou e não teve nenhum caráter de emancipação.
Novos movimentos sociais, quando forem criados, devem ser
internacionais, ou melhor, transnacionais. Deve haver uma união
entre as pessoas que não concordam em participar dessa
concorrência insana.
ISTOÉ E em
relação ao futuro, o sr. é otimista?
Kurz Eu fico muito dividido. Acho que é
preciso ser pessimista. Porque a maior parte das pessoas não tem
uma postura crítica em relação à crise. Elas reagem a essa
crise dizendo "eu não quero ficar fora do sistema".
Assim, a concorrência no dia-a-dia fica cada vez mais acirrada.
É a concorrência de todos contra todos. Por outro lado, podemos
ser um pouco otimistas porque essa relação entre os indivíduos
é tão louca hoje que acho impossível que eles continuem
manifestando suas necessidades dessa forma. Em outras palavras,
eu espero que as pessoas não sejam tão burras a ponto de
continuarem compactuando com esse sistema até acabarem consigo
mesmas, até serem destruídas.
ISTOÉ De que
maneira essa competitividade excessiva prejudica as relações
humanas?
Kurz No trabalho, ninguém pode confiar no
outro. Há também concorrência nas relações íntimas. Na mesa
do café da manhã, marido e mulher já estão competindo entre
si.
ISTOÉ Como o
homem pode ser feliz, se é que ele pode ser feliz?
Kurz Isso é uma história antiga na
filosofia... Não existe uma felicidade absoluta. Se houvesse,
ela seria igual à infelicidade. Eu acho que você só pode ver a
felicidade em relação a alguma coisa. Na nossa sociedade, hoje
em dia, há um conceito errôneo de felicidade: "a
felicidade é poder comprar bastante". Porém, o mais
importante são as relações humanas, que libertam. Para tal
você não precisa acabar com os bens de consumo. Mas se você é
infeliz nas relações humanas, não consegue a felicidade por
meio de uma mountain bike ou de um videocassete.
ISTOÉ O sr.
idealiza um trabalho que contivesse lazer e um lazer que
contivesse trabalho. Como isso funcionaria?
Kurz Poderíamos imaginar produzir coisas
necessárias para a vida num ambiente agradável, onde tudo é
bonito, onde você tem direito a pausas, onde ninguém tem que
perguntar se pode ir ao banheiro. Que isso pudesse ser organizado
por você mesmo, que se daria, por exemplo, uma grande pausa para
o almoço. Que houvesse uma forma de cultura, biblioteca, filmes,
ligados à produção. Seria desejável também uma nova forma de
arquitetura para que o morar, o trabalhar e o lazer estivessem
todos interligados. Não numa área externa, horrível. Podemos
criar um local social em que a pessoa não seja reduzida à
função que exerce apenas.
ISTOÉ Como uma
pessoa pode melhorar sua vida antes que haja uma mudança do
sistema de trabalho?
Kurz Acho que não se pode melhorar
individualmente. Aristóteles já dizia que o homem é um ser
social. E a idéia do capitalismo é de que só se pode usufruir
do que é bom solitariamente. Mas isso é impossível. Só
poderemos melhorar nossa situação se for junto com os outros.
ISTOÉ Quantas
horas o sr. trabalha por dia?
Kurz Algumas vezes trabalho mais, algumas vezes
menos. Tenho muitas atividades, mas, quando posso, gosto de me
distanciar um pouco. Mas minha situação é diferente da
situação de uma pessoa que trabalha numa fábrica.
ISTOÉ Qual é a
melhor forma de usar o horário livre?
Kurz Não quero repetir agora lugares comuns,
como, por exemplo, ler um bom livro. Talvez, uma boa forma de
usar o horário livre seja parar para pensar. Pensar sobre a
própria vida. Para isso você não precisa de máquinas caras.
É de graça.
Publicado em ISTO É - 25/11/98