"Se quiserem conter a crise, as instituições financeiras internacionais terão de sangrar"

Folha - Quais são as causas da atual crise no mercado financeiro mundial?
Robert Kurz -
A condição estrutural dessa crise é a globalização do capital monetário e a rede transnacional dos mercados financeiros, possibilitada pela tecnologia microeletrônica. As transações financeiras podem cruzar o globo em poucos segundos, e as crises financeiras locais se propalam com igual rapidez. O motivo da crise é a especulação dos grandes "hedge funds" com as "taxas de câmbio políticas" dos chamados países em desenvolvimento ou "new industrialized countries" (NICs). Os administradores de fundos chegaram à conclusão de que a industrialização voltada às exportações destes novatos já se esgotou e que as moedas desses países, atreladas ao dólar, estão em seu todo supervalorizadas. Mas a causa profunda da crise, segundo meu ponto de vista, está no fato de que os próprios países ocidentais industrializados atingiram, já desde a década de 80, os seus limites internos absolutos de crescimento. Numa visão sinóptica, trata-se de um problema de fundamento do sistema capitalista mundial, que destrói a si mesmo.
Folha - Quais serão as repercussões da crise nas economias dos países industrializados?
Kurz -
Em primeiro lugar, muitos investidores ocidentais perderam um bocado de dinheiro nas Bolsas dos "emerging markets". Com a realização dessas perdas, a riqueza fictícia do próprio Ocidente diminui. A aniquilação do capital monetário causará efeitos negativos na conjuntura. Em segundo lugar, os países diretamente atingidos pela crise financeira são obrigados a abortar vários projetos de infra-estrutura e cancelar encomendas a firmas ocidentais. Terceiro, tais países serão lançados nas exportações do tipo "dumping", na tentativa de se salvarem. No todo, a repercussão poderá lançar por terra a esperada ascensão da conjuntura européia e acelerar o iminente declínio cíclico dos Estados Unidos.
Folha - E para os países pobres, como o Brasil, os reflexos serão maiores ou menores?
Kurz -
Sem dúvida, os efeitos diretos serão mais fortes nos países da periferia capitalista. Na América Latina, isso já se tornou evidente. A guinada no Sudeste Asiático abalou muito mais a confiança dos investidores privados e grandes administradores de fundos nos "emerging markets" do que a crise no México poucos anos atrás, que se manteve restrita a um único país. Quando secar o fluxo de capital monetário internacional, tanto os pretensos êxitos dos novatos asiáticos quanto os dos países reformistas da América Latina e do Leste Europeu serão rapidamente dissipados em fumaça.
Folha - É certo considerar que os países industrializados repassarão os custos da crise para os países pobres ou "emergentes"?
Kurz -
Eles bem que gostariam, mas não podem, já que estão afundados até o pescoço no capitalismo-cassino global. No caso, seria justamente seu próprio capital monetário que correria o risco de ser reduzido a pó. Se o devedor vai à falência, a crise também é do credor. Em países periféricos, há muito pouco capital, a classe média é muito reduzida e as volumosas massas são muito pobres para suportar uma crise financeira dessa envergadura. Se quiserem mais uma vez conter a crise, o sistema financeiro ocidental e as próprias instituições financeiras internacionais, dominadas pelos Estados Unidos, terão de sangrar. Este, aliás, foi o caso da quebra no México. Hoje, o cenário se apresenta em dimensões muito maiores.
Folha - O sr. considera que o capitalismo sofrerá modificações após essa crise? Em que direção?
Kurz -
Creio que crises financeiras como estas podem induzir novamente uma mudança estrutural do modo de produção capitalista. Depois de um grande crack financeiro, não há mais volta para um crescimento "real", pois as bolhas especulativas não são a causa do baixo crescimento, mas, pelo contrário, o seu efeito: o capital monetário não sabe mais para onde se virar. É bem provável que testemunhemos novas tentativas de aquecer o cassino-capitalismo especulativo e de manter a todo custo os circuitos deficitários transcontinentais. Porém a mudança decisiva pode ocorrer na esfera psicológica. Caso os "milagres" econômicos sejam desmascarados mais rápido do que se espera, não haverá mais "devoto" que sirva de exemplo edificante.
Folha - De alguma maneira o sistema capitalista está colocado em xeque com a atual crise?
Kurz -
Uma crise financeira isolada, por maior que seja, não é capaz de ameaçar diretamente o sistema capitalista mundial. Ela há de ser vista como um episódio dentro do processo de crise abrangente. O colapso de todo um modo de vida e produção não se dá de um dia para o outro nem em alguns meses, mas num intervalo histórico de muitas gerações. O que vemos hoje é o resultado das crises sociais e econômicas, ecológicas e políticas dos anos 80 e 90. Apesar de tudo, as crises financeiras insistem em agravar-se. Os buracos crescem cada vez mais, e cada dia é mais difícil tapá-los. Em correspondência a isso, as repercussões sobre a economia real e sobre as relações sociais tornam-se alarmantes.
Folha - O sr. acha que o capitalismo tende ao esgotamento?
Kurz -
A dinâmica econômica do capitalismo nos anos 80 esgotou-se -e isso pelo próprio desdobramento de suas forças produtivas. O capitalismo, na verdade, nada mais é que um sistema industrial "bola de neve", que converteu a transformação contínua e crescente de energia humana abstrata em dinheiro num fim em si mesmo. A revolução tecnológica microeletrônica põe fim a essa dinâmica, pois torna supérfluo, de maneira perene e absoluta, mais trabalho do que pode ser reabsorvido pela produção ampliada. Por isso os mercados financeiros se desvincularam, de modo estrutural, da economia de bases reais. A criação de moeda sem substância contradiz, entretanto, a lógica capitalista. Este é o verdadeiro nó da crise. Mas, enquanto não houver uma crítica prática, a agonia desse sistema pode arrastar-se sem prazo e criar novos surtos de pobreza e desespero.
Folha - O sr. prevê a substituição do capitalismo por outro modo de produção? Qual seria ele?
Kurz -
Uma análise crítica pode revelar os limites do sistema, mas não tirar uma alternativa da cartola. Se há uma perspectiva para além do capitalismo, ela pressupõe o abandono das crenças fetichistas no dinheiro. Só quando surgir um grande contramovimento social, capaz de mobilizar a vontade e a fantasia de milhões, serão descobertas novas formas de práxis social. Parece-me, é claro, que as forças produtivas da terceira revolução industrial são de todo incompatíveis com a racionalidade empresarial. A "mão invisível" da concorrência cega é absolutamente incapaz de garantir a redução necessária da jornada de trabalho para todos ou a aplicação sensata dos recursos. Em vez do "valor" econômico reificado, são necessárias novas instituições, nas quais os membros da sociedade decidam conscientemente sobre o emprego de suas forças. Pode-se pensar, talvez, num modo de produção cooperativo, que não produz mais para o mercado, porém diretamente para as necessidades. Em todo caso, não há solução fácil, que possa ser apresentada por um aventureiro qualquer. A própria ciência oficial contribui com a escassez de alternativas, porque ela se recusa a refletir sobre o assunto.
Folha - As idéias socialistas estão enterradas após o colapso da União Soviética?
Kurz -
O socialismo está morto e enterrado. Ele nunca foi uma alternativa ao capitalismo, mas apenas o derivado histórico de um sistema de mercado: a ideologia de uma "modernização tardia", que já foi por água abaixo, na periferia do sistema mundial. A noção socialista básica do Estado como empreendedor geral provém do absolutismo, ou seja, dos primórdios da produção capitalista. O Estado e seu aparato burocrático não são uma alternativa ao mercado, mas apenas a outra face do próprio mercado. Hoje, mercado e Estado não funcionam como mecanismos de condução. O que precisamos é de uma livre unificação social (e também transnacional) para além do mercado e do Estado. Esse problema do futuro nada mais tem a ver com os dinossauros do socialismo estatal.
Folha - Por que o neoliberalismo não enfrenta oposição ideológica forte? Quem pode se contrapor a essas idéias?
Kurz -
A força do liberalismo consiste no fato de ele representar a arquiideologia da modernização. Socialismo, fascismo e conservadorismo moderno foram apenas filhos ilegítimos do liberalismo. Na crise do sistema moderno de produção de mercadorias, a filiação há muito negada vem à luz, e todos os descendentes ideológicos caem de joelhos diante do patriarca do liberalismo econômico, entre eles o Partido Comunista chinês e mr. Blair e seu "New Labor". Uma forte oposição ao neoliberalismo só será possível quando se reformular a história da modernização e se criticar a era moderna como fim de toda uma época -não com base numa ideologia romântica e voltada ao passado, mas num pensamento realmente novo, dirigido ao futuro.
Folha - Qual o futuro do Japão do ponto de vista econômico? E na política?
Kurz -
O Japão repousa sobre uma fantástica montanha de créditos podres, cujas dimensões abarcam a sua economia interna e, recentemente, também todo o território do Sudeste Asiático. No fundo, o sistema financeiro japonês está arruinado, mas até agora ninguém pagou o preço. O paternalismo japonês acobertou a crise e jogou a batata quente de um lado para o outro, sem jamais realizar as perdas. Mas não se pode ludibriar a lógica muda do dinheiro por muito tempo. Certamente, o G-7 e o FMI farão de tudo para salvar os "tigres", os bancos japoneses e os investidores institucionais, pois, do contrário, o sistema financeiro mundial estaria ameaçado. Mas, mesmo com a prolongada contemporização da crise financeira, a conjuntura japonesa é incapaz de erguer-se por si própria. Isso terá como consequência uma desestabilização do inacreditável sistema político no Japão, em parte por novos partidos obscuros, em parte por seitas apocalípticas como Aum Shinrikyo (nesse grupo terrorista "budista", os membros eram estudantes das universidades de elite e militares).
Folha - E das economias do Sudeste Asiático? Todo o alardeado crescimento dos tigres foi feito em bases falsas?
Kurz -
O crescimento dos "tigres", em estimativas realistas, não teria como ser preservado por muito tempo, pois taxas de 10% ou mais só são possíveis momentaneamente, num estágio inicial baixo. Além disso, a expansão dos novatos asiáticos foi, desde o início, duplamente fantasiosa: primeiro, ela foi alimentada com os permanentes déficits comerciais dos Estados Unidos, que não podem ser prolongados eternamente; segundo, ela consistiu apenas numa ampliação mecânica dos potenciais de exportação, sem que, na mesma medida, a produtividade técnica aumentasse e a infra-estrutura fosse solidificada. Hoje está claro que uma industrialização lastreada às exportações, com base na espoliação dos recursos e no salário miserável, é somente um modelo de pouquíssimo fôlego.
Folha - Quais são as diferenças entre as economias da região?
Kurz -
A situação geral é semelhante em toda a região, sobretudo no que se refere à dependência ao capital estrangeiro e às relações com o Japão e os Estados Unidos. Mas há diferenças estruturais. Por exemplo, a economia de Taiwan -inclusive no setor de exportação- é determinada mais por pequenas e médias empresas, ao passo que, na Coréia do Sul, os chamados "chaebol" -imensos conglomerados de empresas- dominam, os quais na crise, provavelmente, são mais suscetíveis e causam maiores danos, como mostrou a falência do grupo Kia.

São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 1997.

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