A CRISE VAI CONTINUAR. AMÉRICA LATINA É A PRÓXIMA REGIÃO A ENTRAR EM BANCARROTA

Sociólogo alemão e autor, entre outros, de O Colapso da Modernização, Robert Kurz anteviu, no início desta década, a derrocada que atingiria todo o sistema produtor de mercadorias. Agora, nesta entrevista concedida em São Paulo, em novembro, Kurz afirma que o espaço para a continuação do desenvolvimento está ficando cada vez menor e que haverá muitas crises parciais.Uma delas será a da América Latina. "A Rússia, o Japão e os Tigres asiáticos estão na bancarrota.Não é preciso muito engenho para dizer, a partir daí, que a próxima região a entrar em bancarrota será a América Latina", diz ele. Quanto ao Brasil, o sociólogo alemão afirma que as medidas adotadas pelo governo Fernando Henrique são "apenas protelatórias". Segundo ele, em pouco tempo, todos os mercados "virtuais" – incluindo o Brasil – vão desabar, como na Ásia.

Adusp – Em 1991, enquanto o mundo capitalista festejava a derrocada do socialismo soviético, você escreveu um livro ( "O Colapso da Modernização", explicando que aquela derrocada era, ao contrário das expectativas, apenas o prelúdio de um futuro colapso que atingiria todo o sistema produtor de mercadorias, isto é, o próprio capitalismo mundial. A crise atual, que vem se alastrando rapidamente a partir de seu ponto de partida asiático, representa a comprovação daquela expectativa?

Kurz – Sim, minhas previsões se confirmaram. Na época, éramos poucos os que pensávamos que a crise também chegaria ao Ocidente, que o capitalismo também entraria em crise. Apesar de já estar ocorrendo, naquela época, uma crise do mercado de trabalho em várias partes do mundo, inclusive na parte ocidental, isso não era entendido como uma crise do capitalismo. O exemplo mais claro deste processo talvez tenha sido a reunificação alemã, pois nela foram depositadas as maiores esperanças. As pessoas na Alemanha Oriental pensaram: "Agora vamos entrar no paraíso de consumo ocidental e no grande milagre econômico". Elas estavam um tanto defasadas, olhando para os anos 60 ou 70, e não perceberam que já havia manifestações da crise na Alemanha Ocidental. O Ocidente pensou que a Alemanha reunificada ficaria mais forte economicamente; que, além disso, ela tinha adquirido um forte potencial industrial e que tudo isso valeria bilhões de marcos. Entretanto, o que se verificou através da reunificação e da sua integração no espaço monetário do marco, foi que a indústria da antiga Alemanha Oriental experimentou um desastre praticamente completo. Não houve nenhum ganho econômico, não houve nenhum milagre da economia, nem surgiram novos mercados no Leste. O que aconteceu, ao contrário disso, foi um colapso, pois nunca houve possibilidade de uma integração real. A Alemanha Oriental, hoje em dia, vive de subvenção. Todos os anos é necessária uma transferência líquida de duzentos bilhões de marcos da antiga Alemanha Ocidental para a antiga Alemanha Oriental e, mesmo assim, a taxa de desemprego na Alemanha Oriental é de quase 20%. Em algumas regiões, essa taxa chega a 30%.

Adusp – O mesmo pode ser dito da Europa Oriental e da Rússia, a antiga União Soviética?

Kurz – É mais verdadeiro ainda para o Leste Europeu todo e, quanto mais para leste se vai, isto é, para a Rússia, para a Ásia Central, pior se apresenta a situação. No começo, esses países (República Tcheca, Polônia, Hungria) eram os filhos do milagre das reformas econômicas. Agora ali também está acontecendo um forte retrocesso, uma crise. Sobretudo na República Tcheca, que era o país do milagre neoliberal, com Varschlav Klaus, o Ministro da Economia que alinhou seu país ao neoliberalismo e que teve depois de recuar diante de um iminente desas-tre financeiro. Agora a República Tcheca não é mais o país do milagre. Toda a Europa Oriental, a Rússia, a Ásia Central, as ex-repúblicas soviéticas não puderam ser integradas economicamente. Confirmou-se, portanto, esse prognóstico, como também se confirmou outro prognóstico, o de que os mercados orientais, ou seja, o capitalismo em rápido crescimento nos países asiáticos não duraria muito. O que eu apresentei em 1991, ainda como um prognóstico rudimentar, realmente se realizou com grande precisão. Os tigres asiáticos e o Japão estão agora em crise. Pode-se dizer, portanto, que a expectativa foi confirmada.

Adusp - Sobre a situação latino-americana e, mais especificamente, sobre a situação brasileira nesta crise, que análise poderia ser feita? Existem saídas específicas para nós, ou teremos de, mais uma vez, adotar fórmulas impostas pelos organismos internacionais?

Kurz - Eu não me sinto muito competente para falar sobre isso porque não fiz análises nacionais, e sim uma análise global. Apesar disso, posso arriscar algumas previsões, levando em conta como o socialismo de Estado e seu império no Leste da Europa entraram em colapso no final dos anos 80 e, por outro lado, como depois também os assim chamados "mercados virtuais" e suas economias regionais aparentemente novas foram atingidos pela crise, inclusive os alunos-modelo como o México, o Chile e a Argentina, na América Latina, e a República Tcheca, a Polônia e a Hungria, no Leste Europeu, além de, naturalmente, os Tigres Asiáticos ( Coréia, Tailândia, Indonésia etc. Produziu-se, assim, uma pseudo-perspectiva para esses alunos-modelo. Na verdade, tudo isso foi financiado desde o começo pelo capital fictício e nunca houve qualquer base real. Agora nós estamos vendo como essas regiões entraram em colapso, uma após a outra. A Rússia está na bancarrota, o Japão está tecnicamente na bancarrota, os Tigres Asiáticos estão na bancarrota. Não é preciso muito engenho para dizer, a partir daí, que a próxima região a entrar em bancarrota será a América Latina. Já existe inclusive a expressão "pedras de dominó". Eu não conheço nenhuma razão pela qual a América Latina pudesse escapar dessa situação. Está se tentando, é claro, protelar o problema. O Brasil, por exemplo, possui mais reservas cambiais que a Tailândia e pode agüentar por mais tempo. Além disso, há um grande medo nos EUA de que, se o Brasil falir, possa falir também a Bolsa de Wall Street. Por isso o Presidente Cardoso talvez tenha a possibilidade de se colocar, por assim dizer, na posição forte do grande devedor diante do credor, e dizer, parodiando o ditado: "Se vocês não passarem para cá o carvão isto é, ‘se vocês não passarem para cá o dinheiro’, vocês também vão passar frio". Mas estes mecanismos são apenas protelatórios, e eu acredito que já provavelmente nos próximos meses ou, de qualquer forma, em poucos anos, todos os "mercados virtuais" vão desabar, como na Ásia.

Adusp - E qual é a situação dos Estados Unidos nessa crise financeira mundial? Eles poderão "exportar" sua crise para outros países, ou terão também de enfrentá-la?

Kurz - Os Estados Unidos estão no centro de todo o capital fictício, pois podem se endividar com a própria moeda, o dólar, e acumularam déficits comerciais gigantescos com quase todos os países do mundo, principalmente os da Ásia. Com a crise dos países asiáticos, eles transferiram seus excedentes de volta aos EUA, como capital-dinheiro, de forma que se formou uma dupla bolha especulativa no centro, onde os EUA estão. Por isso eu creio que o colapso financeiro realmente grande, a crise financeira realmente grande, chegará quando vier a crise dos EUA, quando ficar claro que os mercados financeiros não conseguem mais controlar este gigantesco processo de endividamento externo, e isto não está muito longe de acontecer. Portanto, o centro da crise serão os EUA, pois os EUA estão no ponto de partida dessa grande "bomba de dinheiro", uma "bomba de dinheiro" global, na qual essa circulação passiva de déficits entre a Ásia e os EUA produziu liquidez sem fundamentos reais. Este é o centro de toda a crise financeira e eu acredito que os EUA não serão poupados dela. Quanto à América Latina... bem, se a Ásia não agüentou, não sei como a América Latina irá agüentar.

Adusp – Falando agora mais genericamente da crise econômica mundial, como você a caracteriza-ria em seus elementos essenciais? O noticiário da grande imprensa vem atribuindo uma importância quase que exclusiva, excessiva, ao aspecto financeiro-monetário. Mas qual é realmente a relevância desse aspecto, ou seja, qual é a relação do lado financeiro com o lado produtivo da economia, no quadro da crise que vivemos?

Kurz – Acredito que, neste ponto, devemos fazer uma distinção rigorosa. A causa mais profunda da crise remonta a mais de 20 anos atrás. Ela está relacionada com o início da terceira revolução industrial, isto é, com o início da revolução microeletrônica, diferenciando-se qualitativamente das duas revoluções industriais anteriores. A primeira foi a revolução industrial original e a segunda foi a fordista, taylorista, da esteira rolante etc. E agora temos a terceira, a revolução microeletrônica, que acredito ser diferente qualitativamente, na medida em que, pela primeira vez na história capitalista, o potencial de automação e racionalização avança mais rapidamente que a expansão dos mercados. Ou seja, os produtos estão ficando realmente cada vez mais baratos, de modo que, como no caso dos computadores, quanto mais baratos eles forem, mais pessoas os comprarão. Mas, apesar disso, a racionalização eliminadora da força de trabalho é mais veloz, isto é, não serão criadas novas ofertas de emprego. Nem poderá se repetir o caso do passado, em que o capital pôde explorar trabalho novo e em que, por exemplo, as inovações da indústria automobilística e da produção em linha de montagem criaram muitos postos novos de trabalho. Isto não está ocorrendo na terceira revolução industrial. Pela primeira vez, a proporção foi invertida. Pela primeira vez, a automatização é mais rápida que a expansão dos mercados. Nos anos 80 e na primeira metade dos anos 90, parecia que o capitalismo seria capaz de digerir este problema, ou simplesmente engoli-lo, como se esta crise fosse apenas social, reduzindo-se somente ao problema dos desempregados. Mas é preciso levar em conta que o capitalismo realmente é a exploração da força de trabalho, a utilização do trabalho abstrato, e que capital não consegue se acumular sem trabalho. O trabalho abstrato é, como diz Marx, a substância do capital. Portanto é realmente lógico que a crise do trabalho também seja, mais cedo ou mais tarde, a crise do capital. Nos últimos 15 anos, houve um adiamento da crise, pois houve uma expansão dos mercados financeiros, isto é, daquilo que Marx chamou de "capital fictício". O capital se acumulou simuladamente, por assim dizer. Em outras palavras, antes se verificava a famosa fórmula de Marx, (D-M-D’ (dinheiro - mercadoria - mais dinheiro), numa relação de troca, em que há produção de mais-valia através da produção de mercadorias. Entretanto, o que se verificou nos últimos 15 anos foi D-D’, ou seja, produção de mais-valia aparentemente sem produção direta de mercadorias: o dinheiro pode produzir mais dinheiro a partir apenas de si mesmo. E isto é, em última análise, naturalmente uma ilusão. Há, é claro, razões para que isto tenha ido tão longe. Por exemplo, o lastro-ouro das moedas européias foi suprimido já na Primeira Guerra Mundial, e depois também o dólar perdeu o lastro-ouro, em 1971; mais tarde, nos anos 80, veio a regulamentação dos mercados financeiros e também o surgimento dos mercados monetários europeus. Assim, dólares ou marcos, por exemplo, podiam circular fora dos limites nacionais, unindo economias sem o controle dos Bancos Centrais. Tudo isso permitiu que o mercado financeiro subisse a alturas estratosféricas, fazendo parecer que os capitais podiam se acumular sem o trabalho. Acredito que, com a crise da Ásia, a do Japão e a das bolsas de valores neste ano, alcançamos a fase na qual os próprios mercados financeiros estão entrando em crise. Mas tudo isso deve ser considerado em conjunto, como um todo articulado. Acredito que se deva ver o processo dos últimos 20 anos, da terceira revolução industrial, da crise do trabalho e agora da crise financeira como parte de um processo global e complexo.

Adusp – Houve uma certa expectativa em relação aos resultados das recentes eleições européias e à volta da social-democracia ao poder em países importantes como França, Inglaterra e Alemanha. Mas, mesmo que admitíssemos as boas intenções de Tony Blair, Lionel Jospin e Gerhard Schröder, você acredita que a social-democracia possa reeditar o modelo de algumas décadas atrás? Qual a margem de manobra de que ela dispõe para resolver a presente situação de crise ou, ao menos, amenizá-la?

Kurz – Aqui eu só posso responder com o recurso da ironia... Eu costumo chamar esta social-democracia de nostalgia keynesiana, embora ela não seja mais um verdadeiro keynesianismo. O keynesianismo já se esgotou: teve seus resultados, seus êxitos, mas foi punido pela inflação, e agora não é mais efetivamente um keynesianismo, é somente uma recordação ideológica. A social-democracia que está agora nos governos da Alemanha, da Inglaterra, da França e também da Itália (Schröder, Tony Blair etc.) é o paradoxo, poderíamos dizer, de um socialismo neoliberal ou de um neoli-beralismo socialista. Se ainda se pode falar, neste caso, de socialismo, então seria um socialismo que se rendeu incondicionalmente. Essa social-democracia não tem projeto, nem um projeto keynesiano, nem qualquer outro. Há muito palavrório, algumas declarações ideológicas sobre o controle dos mercados financeiros, como no caso do Ministro das Finanças alemão, Oskar Lafontaine, recém-empossado. Ele tem na cabeça algumas "bolhas de ar" keynesianas, mas nenhum projeto concreto, nenhuma formulação econômica formada, somente uma "bolha de ar". Qual instância deve então controlar esses mercados financeiros? Não há nenhuma, não há nenhum Estado mundial. Há só palavras de ordem, só uma cosmética social para administrar a crise. E a crise será no máximo administrada. Só que, agora, pela social-democracia.

Adusp - E o sistema monetário unificado europeu, o Euro, poderá introduzir algo novo neste quadro? Ele acrescenta de fato poder à Europa, na correlação internacional de forças econômicas? E, por outro lado, qual o seu impacto na solução dos problemas mundiais?

Kurz – Sobre o projeto Euro, a união monetária européia, já fiz todo tipo de prognóstico crítico. Afirmei que o Euro já nasceu morto, pois afinal é um paradoxo tentar realizar uma unificação monetária sem um Estado unificado, sem uma política unificada. Não há um Estado europeu; continuam existindo os Estados nacionais individuais e os Bancos Centrais de cada país, de modo que o Banco Central Europeu é só uma composição sem competência definida. As competências não estão de fato definidas. O Euro é mais uma válvula de escape, uma tentativa de resolver os problemas monetários de cada país através da unificação de moedas e da possível concorrência ao dólar. Mas não acho que isto vá funcionar, pois a União Européia não é um espaço político unificado, não tem um potencial militar próprio e global que dê a ela a posição de policial do mundo, o papel de árbitro das questões internacionais, como o têm os EUA. É quase que exclusivamente essa posição que fundamenta o dólar no papel de dinheiro mundial hoje em dia; e a União Européia não a tem. Isso ficou claro no caso da Iugoslávia, quando a União Européia se mostrou incapaz de resolver um problema que está ocorrendo diante das portas de sua casa, e acredito que continuará sendo. Também do ponto de vista econômico, há conflito de interesses na União Européia, pois existe um forte desnível na produtividade do Sul em relação à do Norte do continente. O caso mais claro é o observado dentro da própria Itália, onde a indústria e o potencial industrial estão concentrados no Norte e, à medida que se vai para o Sul, cai a produtividade. E o mesmo acontece em toda a União Européia.

Nos países do Norte da Europa e na Europa Central há zonas de alta produtividade, enquanto os países mediterrâneos, isto é, do Sul da União Européia possuem uma produtividade relativamente mais baixa. Assim, se houver uma integração forçada do espaço monetário, surgirão inevitavelmente problemas. Haverá muitos tipos de investimento que se aproveitarão desse diferencial de custos, ou seja, do custo mais baixo do trabalho em alguns países, provocando neles um sentimento de rejeição social e certamente também uma pressão política decorrente do agravamento da crise social criada pela integração monetária. E não há na Comunidade Européia uma instância política unificada capaz de resolvê-los. Ao contrário, os diferentes Estados nacionais tentarão pressionar o Banco Central Europeu de acordo com os próprios interesses, pois as competências deste Banco Central Europeu não estão claramente definidas, bem como não o estão as relações dos Estados nacionais com o Banco Central Europeu, nem as dos Bancos Centrais de cada país com aquele banco. Ou seja, nada está claramente definido. Por isso, acho que o Euro não sobreviverá à primeira crise maior.

Adusp - Sua análise da crise aponta para um colapso econômico inevitável do capitalismo, idéia que foi tão debatida no contexto da teoria marxista. Você pensa de fato que a crise atual levará a tal colapso ou que existiriam meios para evitar este fim e solucionar os problemas estruturais que agora se manifestam com tanta força?

Kurz - Eu acredito que não haja uma solução para essa situação porque as forças produtivas do capitalismo estão por demais desenvolvidas. Como eu disse antes, a terceira revolução industrial da microeletrônica está fazendo, pela primeira vez, com que o processo de eliminação, de obsolescência da força de trabalho ocorra de forma mais rápida e numa escala maior do que o capitalismo pode crescer economicamente. Eu não vejo como nós poderíamos ainda encontrar uma solução. O problema é que "colapso" tornou-se uma palavra que desperta suscetibilidades até nos debates marxistas, porque freqüentemente ela expressou idéias muito rudimentares, muito primitivas. É claro que o capitalismo não vai desmoronar em um só dia. O colapso de toda uma formação social pode durar séculos. O processo de desmoronamento é provavelmente algo semelhante ao de erguimento, de ascensão. O processo de erguimento do capitalismo demorou quase dois séculos, até que ele atingiu seu zênite e agora vai desmoronar mais rapidamente. A crise, portanto, será mais rápida que a ascensão, mas também exigirá um certo tempo. Nós vimos que essa nova crise começou já no início dos anos 80, mas sobrevivemos desde então ao colapso de muitas economias nacionais, inclusive no Terceiro Mundo – a África inteira foi abandonada, por exemplo. Presencia-mos, além disso, o colapso do socialismo de Estado, que, para mim, também era uma parte integrante desta grande sociedade mundial de mercado. Eu tentei resumir isso no conceito de "modernização recuperadora". Nós, que já presenciamos o colapso dos Tigres Asiáticos, no Sudoeste da Ásia, e a crise do Japão, agora estamos presenciando a crise dos mercados financeiros e eu acredito que isto vai continuar. O espaço para a continuação do desenvolvimento está ficando cada vez menor, cada vez mais estreito, e haverá muitas crises parciais, muitos acontecimentos negativos. Provavelmente ocorrerá uma grande crise na China, por exemplo. Haverá novas guerras civis, haverá mais separatismos, haverá todas as tentativas possíveis e impotentes para se sair violentamente dessa crise. Acredito que será bem turbulento o século XXI, no qual se evidenciará o limite absoluto deste processo de modernização. Coloca-se, então, a tarefa de um pensamento superador, pois as categorias conforme as quais hoje pensamos e agimos não serão mais adequadas e suficientes.

Adusp - Baseada também em uma análise das crises, a teoria marxista chegou a prognósticos semelhantes. Qual é a relação, então, entre a sua própria análise e a daquela teoria? Ou seja, em que medida você considera necessário modificar ou acrescentar algo a ela? É no sentido de uma tal distinção que aponta o "Manifesto contra o trabalho" de cuja elaboração você participou aqui no Brasil?

Kurz - A necessidade de superar as teorias elaboradas até hoje também existe na esquerda e no marxismo, pois o capitalismo está realmente em crise. Mas não como o marxismo esperava, pois o marxismo tradicional, a esquerda tradicional e o movimento operário (como o nome já diz) colocaram-se positivamente na perspectiva do trabalho, considerando-o como algo positivo, como um "ethos", como o fundamento econômico positivo que deve libertar-se do capital. Essa idéia pode ser encontrada também em Marx, n’O Manifesto Comunista, por exemplo, no qual ele fala de "exércitos do trabalho", algo que soa também muito próximo ao socialismo de caserna. Por outro lado, encontra-se também a crítica do trabalho em Marx, o que é bastante complexo, pois estamos acostumados a entender a categoria "trabalho" como uma categoria ontológica e supra-histórica. Esta tendência se enraíza na história da modernização, em uma linha que vai desde o protestantismo (a ética protestante), passando pelo liberalismo até o socialismo. De certa forma, há uma continuidade neste processo pelo qual o trabalho tem sido afirmado como algo positivo. Contudo, considerando- se o problema do ponto de vista histórico, pode-se dizer que, de modo geral, essa categoria abstrata "trabalho" não existiu sempre nem em todas as sociedades. Mais ainda, percebe-se que, nas épocas em que essa categoria existiu realmente, geralmente ela foi considerada como algo negativo, sendo o conceito usado para designar a atividade dos escravos e dependentes e não uma forma universal de atividade social, de reprodução social. O "trabalho" só começa a ser um conceito positivo a partir da história da modernização, através da expansão do sistema de mercado e do sistema monetário. É apenas sob a imposição da máquina social, que transforma a energia humana abstrata em dinheiro, que todas as atividades traduzíveis em dinheiro podem ser subsumidas em um conceito, e somente neste contexto faz sentido constituir um conceito abstrato e universal de "trabalho" e operar com esse conceito. Este é o grande embaraço do marxismo: ele se prendeu, ele se limitou a si mesmo, ao assumir essa categoria capitalista "trabalho" como algo positivo. A atual crise não é só uma crise conjuntural, nem tampouco é apenas uma crise dos mecanismos de controle sistêmico, a famosa "anarquia dos mercados", mas é a crise do próprio trabalho. Há muito trabalho excedente, e com isto fica de certa forma demonstrado que esta categoria "trabalho" não é supra-histórica, e que, além disso, ela está deixando de existir na forma em que conhecemos. O marxismo, a esquerda, a oposição, a teoria crítica têm agora a tarefa de abandonar este positivismo do trabalho e de perguntar se outra forma de reprodução além do trabalho pode ser encontrada. E devem também perguntar: em primeiro lugar, pode-se reduzir o tempo de trabalho de todos, o tempo que todos dispendem nas várias atividades produtivas? e, em segundo lugar, não se deve então questionar inclusive este conceito abstrato de "trabalho"? Pois não faz mais sentido definir todas as atividades de acordo com os critérios da rentabilidade empresarial, da "valorização do valor" (como Marx denomina-o) e realmente define o trabalho. Assim, o problema que aqui se apresenta é que esta crise está sendo tão profunda que comprometeu o próprio marxismo, porque ele ficou prisioneiro dessa categoria de "trabalho".

Adusp - E quanto ao "Manifesto contra o trabalho"?

Kurz - Em relação ao "manifesto" que preparamos, ele deve ser redigido sob uma forma literária mais ou menos agressiva, de um modo muito semelhante àquele em que O Manifesto Comunista formula sua própria crítica do trabalho. Eu acredito que isso teria algo de libertador, pois no momento todos gritam por trabalho, como se o trabalho fosse a mais elevada aspiração e tudo o que uma pessoa pudesse querer. Mas nisso só há a ditadura do terror econômico no qual nós vivemos e no qual não podemos viver, se não tivermos um posto de trabalho, se não pudermos transformar nossa energia em dinheiro. Mas as forças produtivas ultrapassaram essa lógica. Acredito que haveria algo realmente de muito libertador em poder dizer: "não precisamos de trabalho, precisamos de uma vida boa".

Adusp - Na presente situação social, como os grupos sociais organizados poderiam encontrar uma solução nova e emancipadora para os problemas econômicos e políticos?

Kurz - Essa pergunta naturalmente exige demais de mim. Acredito que não se pode fazê-la a uma pessoa só, a um único teórico ou analista individual, porque este é o tipo de pergunta que deve ser respondida em conjunto, e para isso já é preciso uma práxis, não se pode simplesmente deduzi-la da teoria. Com a teoria pode-se analisar a crise, mas não se pode dizer o que dela deve surgir de novo. Isso também deve provir da prática social. Pode-se, contudo, penso eu, fazer algumas indicações gerais. Mas, ao fazê-lo, devemos tomar cuidado para não cair novamente no problema de partir das categorias burguesas, com as quais a esquerda até agora também pensou. A esquerda sempre incorporou o ponto de vista sociológico das classes e simplesmente assumiu as categorias formais objetivadas da sociedade; ou seja, de um lado existe a nação burguesa e de outro a nação socialista, o Estado socialista, a produção socialista de mercadorias, as empresas socialistas. Em outras palavras, tudo é etiquetado com esse atributo "socialista". Isso já mostra que qualidade este ponto de vista tem. Consegue-se abandonar as formas burguesas e capitalistas, mas não as formas objetivadas, e isto está agora na ordem do dia. Assim, o que posso indicar é que, por exemplo, a esquerda deve se despedir do conceito de "nação", que não haverá mais movimentos sociais de libertação nacional. Se o capital é transnacional, a oposição também deve ser transnacional. Deve haver uma comunicação direta entre os movimentos sociais na Europa, na América Latina, na Ásia. A possibilidade existe, pois as mesmas forças produtivas, os mesmos recursos científicos da microeletrônica, que possibilitam o contato direto entre indivíduos de continentes distantes, podem ser usados para pôr em contato também os movimentos sociais. O que o capital pode fazer, os movimentos sociais também podem, mas para isso é necessário derrubar os muros, romper a barreira das consciências nacionais.

Adusp - Algo mais em relação a essa questão?

Kurz - Quero abordar ainda um segundo ponto. Depois do naufrágio da economia de Estado, da tentativa de expandir o socialismo como economia estatal através de um aparelho burocrático de Estado, e depois de ter agora também naufragado o radicalismo de mercado, pode-se talvez dizer que ficou demonstrado que esses dois pólos, essa polaridade de mercado e Estado não conseguem mais organizar novas forças produtivas. Pode-se deduzir disso que novas formas de organização além do mercado e do Estado, ou seja, uma administração direta das forças produtivas por todos os integrantes da sociedade, deve surgir como perspectiva, como objetivo. O que se deve buscar é uma nova forma de organização social livre daquilo que Marx denominou "fetichismo", isto é, essa mediação fetichista de mercadoria e dinheiro e também de um aparelho de Estado que pretende organizar cidadãos, mas que o faz apenas na medida em que já os submeteu como indivíduos a este "fetichismo". Essa sociabilidade indireta não funciona mais. É preciso, portanto, constituir uma sociabilidade direta através de novas instituições. Poderíamos, por exemplo, pensar no velho conceito de emancipação, de uma administração emancipatória, que pudesse operar hoje em dia de uma forma um pouco mais refletida do que nos anos 50 ou 60, quando este conceito de emancipação surgiu pela primeira vez. Talvez se pudesse recorrer a isso como objetivo ou como programa. Acima de tudo, creio que o que deve ser criticado é a racionalidade empresarial, pois sempre se fala da "eficiência empresarial", mas essa é uma eficiência particularista, é sempre uma eficiência que externaliza custos. As empresa externalizam custos sociais, externalizam custos ecológicos; e em relação ao conjunto da sociedade, esta racionalidade empresarial é totalmente irracional, totalmente ineficiente.

Adusp - Essa afirmativa também vale para o Estado?

Kurz - O Estado, por sua vez, também no socialismo de Estado não ultrapassou essa racionalidade administrativa das empresas individuais. Ele só queria passar a administrá-las burocraticamente, e isso não funcionou. Por isso, deveríamos superar essa racionalidade empresarial, que também não consegue mais administrar as novas forças produtivas: esta enorme economia de tempo resultante da revolução microeletrônica poderia simplesmente significar também muito pouco trabalho e um alto padrão de vida para todas as pessoas no mundo. A possibilidade já existe. E, com muito tempo livre, todos poderiam participar da administração das questões coletivas. Não seria mais preciso haver uma classe política ou uma classe burocrática porque teríamos tempo disponível. Mas, sob a ditadura da racionalidade empresarial, a economia de tempo só existe de forma negativa, como desemprego, e isso é tão absurdo que não pode continuar. Assim, pode-se também dizer que as empresas devem ser eliminadas e, com elas, o jargão empresarial. Estas são algumas reflexões que faço para responder à sua pergunta, reflexões a partir das quais podem também surgir discussões concretas. Até agora, porém, há uma barreira, há muito receio de se discutirem essas coisas. O assunto ainda é tabu porque a forma burguesa da subjetividade está ligada ao mercado, ao dinheiro, à cidadania e a suas formas jurídicas. Todas essas formas fetichistas indiretas constituem nossa subjetividade e criam um receio de as abandonarmos. Penso que isso é um tabu que mostra o quanto somos supersticiosos, como os "selvagens". Isto é, em relação ao moderno fetichismo do mercado e do Estado, somos supersticiosos e temos medo, como aquelas pessoas que acreditam em espíritos malignos.

Por Jorge Grespan: professor do Departamento de História da FFLCH-USP. Escreveu O Negativo do Capital e O conceito de crise na crítica de Marx à Economia Política.

Fotos: Augusto Coelho

Dezembro 1998 Revista Adusp

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