Roswitha Scholz

 

FEMINISMO – CAPITALISMO – ECONOMIA – CRISE

 

Objecções da crítica da dissociação-valor a algumas abordagens da actual crítica feminista da economia

 

 

A crítica feminista da economia está de volta desde que a crise se agudizou na segunda metade da década de 2000. O texto ocupa-se, na perspectiva da crítica da dissociação-valor, de diversas abordagens feministas de crítica da economia que têm por referência análises de Marx. No centro delas está uma compreensão da “contradição em processo” e do limite interno do capitalismo reformulada à maneira feminista. Mostra-se que as referidas teorias permanecem num quadro imanente, reformista. Assim o care é posto como momento utópico, sem ver que a dimensão da reprodução conotada com o “feminino” sempre foi inerente ao patriarcado capitalista e não pode por isso ser prolongada no futuro como simples utopia. Não em último lugar coloca-se a questão da financiabilidade das actividades de care, se a massa absoluta de mais-valia se derrete, um facto que acaba por ser ignorado – mesmo quando é sabido. Também se evidencia que no feminismo mesmo concepções de orientação crítica do trabalho e de dimensão macro não rompem realmente com os princípios do patriarcado capitalista; em vez disso procuram-se soluções compatíveis com o capitalismo, mesmo que se admita – coisa impensável há poucos anos – a possibilidade de colapso do mesmo. No essencial tais reflexões feministas são susceptíveis de apropriação pela administração da crise, na senda do “colapso da modernização” (Robert Kurz) que hoje está à vista em toda a parte. (Resumo na Revista EXIT! nº 11)

 

 

1. Introdução: O renascimento da economia no actual discurso feminista * 2. A contradição em processo como lógica fundamental do capitalismo * 3. Sobre a relação entre dissociação-valor e contradição em processo como lógica fundamental do capitalismo * 4. Os aspectos de care da teoria da regulação (Silke Chorus) * 5. “Mais-valia e dimensão humana” (Sabine Plonz) * 6. A redefinição do económico com a ajuda da categoria (re)produtividade? (Biesecker/Hofmeister) * 7. Para lá do paradigma do trabalho? (Irene Dölling) * 8. Uma falsa defesa das dimensões teóricas macro nos estudos de género (Brigitte Young) * 9. Colapso do capitalismo e “grande transformação” em sentido feminista? (Ingrid Kurz-Scherf) * 10. Observações finais sobre críticas feministas recentes da economia a partir da perspectiva da crítica da dissociação-valor * 11. Resumo: crítica feminista da economia, contradição interna do capital em processo e dissociação-valor como princípio social formal

 

 

 

1. Introdução: O renascimento da economia no actual discurso feminista

 

A crítica feminista da economia ganhou nova força desde o surto de crise na segunda metade da década de 2000. Se de início foi o debate sobre o trabalho doméstico e a sua suposta função criadora de valor que marcou o discurso hegemónico, até ao chamado grupo de Bielefeld que viu as mulheres, a natureza e o Terceiro Mundo como objectos de exploração (Bennholdt-Thomsen/Mies/von Werlhof, 1984), logo depois o foco deslocou-se do tema do trabalho doméstico para o contexto do princípio social formal com foco no cunho “frankfurteano” (cf., por ex., Beer, 1987). Apesar do estatuto hegemónico das teorias pós-estruturalistas, desde a década de 1990 também havia uma corrente feminista virada para as questões económicas. Após o desaparecimento do bloco soviético desenvolveram-se esforços no sentido de produções científicas feministas na economia, que desde o início se moviam num quadro imanente e preconizavam apenas reformas como meio eficaz de mudança social. A globalização tornou-se o grande tema. Consequentemente falava-se sobretudo da teoria da regulação no domínio da elaboração teórica feminista-marxista remanescente.

 

Embora o ponto de partida das teorias feministas fosse inicialmente Marx, havia agora uma variedade de orientações, com referências teóricas neo-clássicas, institucionalistas e também ainda marxistas (Bauhardt/Caglar, 2010), sendo que desde o renascimento de Marx, pelo menos desde 2008, obviamente também Marx é objecto de procura reforçada no feminismo. De seguida gostaria de lançar um olhar, do ponto de vista da teoria da dissociação-valor, sobre o modo como hoje se promove a crítica feminista da economia e com essa finalidade examinar algumas abordagens com algo de influência marxista. Para o efeito torna-se necessário em primeiro lugar um breve esboço do que significa dissociação-valor em geral. Isto torna-se necessário porque, por um lado, os pressupostos básicos da dissociação-valor estão infiltrados no discurso (do tema), ainda que frequentemente com recepções equivocadas. Por outro lado, mesmo nos contextos que se apresentam como conhecedores (da dissociação e) do valor, o contexto de crítica do androcentrismo (DA DISSOCIAÇÃO e) do valor parece que continua a ser um livro fechado a sete chaves. Por isso gostaria de analisar à lupa, com mais precisão ainda, a relação entre dissociação-valor, contradição em processo, mais-valia (relativa) e decadência do capitalismo. Primeiro, a “contradição em processo” numa perspectiva sexualmente neutra.

 

 

2. A contradição em processo como lógica fundamental do capitalismo

 

Essencial para uma crítica do valor concebida à partida sexualmente neutra, a que se refere criticamente a crítica da dissociação-valor, é o contexto seguinte. Em contraste com as sociedades pré-modernas, em que se produzia unicamente para uso, o valor (mais-valia) é uma categoria central na dinâmica histórico-processual do capitalismo. O trabalho (abstracto) torna-se um fim em si mesmo, mas não é só isso. Ele próprio apenas se constitui como tal na história da constituição do capitalismo. O valor (mais-valia) refere-se em processo auto-referencial sempre apenas a si mesmo, sendo a produção de coisas úteis apenas colateral. Aos poucos, todo o globo é determinado pelo valor assim constituído, também chamado por Marx “sujeito automático”.

 

Do ponto de vista da teoria da crise é aqui decisivo o que Marx chama “contradição em processo”. Sobre isso escreve Robert Kurz “que é o próprio capital que se torna para si mesmo limite lógico e histórico absoluto na produção de mais-valia relativa. Ao capital não interessa nem pode interessar a CRIAÇÃO DE VALOR ABSOLUTO, ele está apenas fixado na mais-valia nas suas formas que se manifestam à superfície, ou seja, na proporção RELATIVA dentro do novo valor criado entre o valor da força de trabalho (seus custos de reprodução) e a porção do novo valor apropriada capitalistamente. Uma vez que o capital já não pode aumentar absolutamente a criação de valor por prolongamento da jornada de trabalho, mas só pode aumentar a sua participação relativa no novo valor criado através do desenvolvimento produtivo, ocorre na produção de mais-valia relativa um movimento inverso, que tem de se consumir historicamente a si mesmo, trabalhando e desenvolvendo-se para a paralisação completa da própria criação de valor. Com o desenvolvimento das forças produtivas o capital aumenta o GRAU de exploração, mas com isso ele mina o FUNDAMENTO e o OBJECTO da exploração, a produção de valor como tal. Pois a produção de mais-valia relativa como cientificização do processo de produção material inclui a tendência para eliminar o trabalho produtivo directo vivo como única fonte de criação de valor no plano social global. O mesmo movimento que aumenta a participação relativa do capital no valor novo reduz a base absoluta da produção de valor através da eliminação do trabalho produtivo directo vivo”. (Kurz, 1986, p. 28, destaque no original)

 

O decisivo aqui é, portanto, o desenvolvimento das forças produtivas, que por sua vez está relacionado intimamente com a formação e aplicação das ciências (naturais) à produção, no contexto das relações capitalistas globais. Com a revolução da micro-eletrónica, em contraste com a era do fordismo, na qual a produção de mais-valia relativa foi compensada pela necessidade de trabalhadores adicionais para a produção de valor, o trabalho abstracto torna-se agora cada vez mais obsoleto. A diferença entre riqueza material e (forma) do valor aumenta cada vez mais. Ocorre uma “desvalorização do valor” e o “colapso da relação de valor”, sendo importante notar – e isto é frequentemente esquecido – que este “colapso... NÃO (começa) apenas quando o último trabalhador é eliminado da produção imediata, mas começa exactamente no ponto histórico onde a proporção geral entre eliminação e re-absorção de trabalho produtivo directo vivo começa a INVERTER-SE, ou seja, começa logo no momento (e aumentando gradualmente em grau) e onde (e na medida em que) é eliminado MAIS trabalho produtivo directo vivo do que é absorvido. Ao que tudo indica este “ponto”, tanto quanto se pode falar dele, actualmente (1986, R. S.) já ficou no passado, talvez no tempo entre o início e meados da década de setenta: não por acaso localiza-se nesse período tanto o colapso do sistema monetário de Bretton Woods como o início do desemprego ‘tecnológico’ em massa. Além disso, naturalmente, também não se deve imaginar o colapso da relação de valor como um acto repentino e único (embora afundamentos e quedas súbitos, tais como crashes de bancos, falências em massa etc. certamente também façam parte desse colapso), mas como um processo histórico, toda uma época de talvez várias décadas em que a economia mundial capitalista já não consegue sair fora do turbilhão de crise e de processos de desvalorização, de desemprego em massa crescente (...)” (Kurz, 1986, p. 35, destaque no original). Hoje (2012) já há muito se tornou claro não só que a impossibilidade mediada por este processo de obter rendimentos ganhos através de mais-valia tem levado a um desvio para o plano especulativo, mas também que toda a dinâmica que aí culmina leva à desintegração do capitalismo (ver Kurz, 2012).

 

 

3. Sobre a relação entre dissociação-valor e contradição em processo como lógica fundamental do capitalismo

 

No entanto, não é simplesmente o valor (mais-valia) como sujeito automático que constitui a totalidade, mas tem de ser tido igualmente em conta o “facto” de que no capitalismo também ocorrem actividades de reprodução realizados sobretudo pelas mulheres. Correspondentemente a dissociação-valor significa que as actividades de reprodução no seu cerne determinadas como femininas, bem como os sentimentos, qualidades, atitudes (emotividade, sensualidade, solicitude entre outras) ligados a tais actividades, estão dissociados justamente do valor (mais-valia) e do trabalho abstracto. As actividades femininas de reprodução no capitalismo têm um caráter diferente do trabalho abstracto; por isso não podem ser subsumidas ao conceito de trabalho sem mais. Trata-se de um aspecto da sociedade capitalista que não pode ser detectado pelo aparelho conceptual marxiano. Este aspecto é estabelecido em conjunto com o valor (mais-valia) e pertence-lhe necessariamente; por outro lado, no entanto, está localizado do lado de fora do valor, sendo por isso mesmo o seu pressuposto. Valor (mais-valia) e dissociação estão assim numa relação dialéctica recíproca. Um não pode ser derivado do outro, mas ambos procedem um do outro. Nessa medida a dissociação-valor pode ser vista como uma lógica de ordem superior, que ultrapassa as categorias interiores à forma do valor. Trata-se, assim, de conseguir um entendimento diferente da socialização (fetichista), não determinado exclusivamente com base no valor (mais-valia).

 

No entanto, é preciso salientar que a sensualidade no domínio da reprodução, que na aparência é um dado imediato, o consumo e as actividades que o rodeiam, bem como as necessidades que aqui são satisfeitas, também devem ser considerados como historicamente devindos, perante o pano de fundo do processo global de dissociação-valor. Eles não podem ser mal entendidos como imediatamente naturais. Mesmo se comer, beber, amar etc. não se dissolvem em simbolizações, como afirmam os construcionismos vulgares, não podem ser ingenuamente pressupostos como dados ontológicos.

 

As categorias da economia política também noutro aspecto são insuficientes. A dissociação-valor implica uma relação sócio-psicológica específica. Determinadas qualidades menosprezadas (sensualidade, emotividade, fraqueza intelectual etc.) são atribuídas “à mulher” e separadas do sujeito masculino. Tais atribuições específicas de género caracterizam a ordem simbólica do patriarcado capitalista na sua essência. Portanto no caso da relação de género capitalista é preciso ir além da reprodução material e ter em conta tanto a dimensão da psicologia social como a dos símbolos culturais. É especialmente nestes níveis que o patriarcado capitalista se revela como um todo social (ver Scholz, 2011a).

 

Ora, como se relacionam mais precisamente do ponto de vista da dissociação-valor a contradição em processo, a mais-valia (relativa) e o desenvolvimento das forças produtivas? “Enquanto a massa dos produtos produzidos por unidade de tempo continua a aumentar, simultaneamente a capacidade de consumo – que na forma capitalista só pode ocorrer como PODER DE COMPRA – de preferência desce, devido ao desemprego e à pressão sobre os salários (por meio da concorrência das trabalhadoras e trabalhadores assalariados entre si) ou em todo o caso não consegue desenvolver-se na mesma medida que as forças produtivas. Isto significa que também a estrutura de dissociação sexual é afectada, uma vez que as funções reprodutivas conotadas como femininas em parte ocorrem na esfera do consumo (‘trabalho doméstico’). Pois o consumo não é um simples deglutir, mas ele próprio está ligado com actividades reprodutivas que não são representadas na forma do ‘trabalho abstracto’/do valor em dinheiro. Na sequência também a actividade profissional das mulheres no espaço do ‘trabalho abstracto’ aumentou secularmente; não só por causa da fome devoradora da máquina de exploração capitalista por novo material humano, mas também devido à redução do poder de compra, o que trouxe uma compulsão para dois ou mais assalariados por família – à custa das funções reprodutivas, mas em última instância à custa das mulheres nela envolvidas estruturalmente (‘dupla carga'). Nessa medida a expansão capitalista foi sempre associada a momentos de autodestruição dos seus próprios pressupostos” (Kurz, 2005, p. 55, destaque no original). Aqui a feminilidade dissociada pode ter uma “função lubrificante” no domínio profissional e em todos os outros domínios públicos, na medida em que constitui a estrutura básica do patriarcado capitalista em geral (Kurz, 2005, p.37).

 

“No século XX esta dupla auto-contradição entre o desenvolvimento desenfreado das forças produtivas e a produção de mais-valia limitada pela lógica do próprio capital e portanto do poder de compra, por um lado, e entre os espaços funcionais de economias nacionais limitadas com as estruturas nelas localizadas na lógica da dissociação-valor e a tendência para a universalização do mercado mundial, por outro lado, decididamente teria de explodir.” (Kurz, 2005 p. 57 sg.) “Entre esta polaridade conflituante tornada insustentável a relação de capital como forma de reprodução social é agora dilacerada na terceira revolução industrial.” (Kurz, 2005, p. 59) “Mas quanto mais se globaliza desta maneira e, portanto, se retira para um espaço desregulado já não protegido, tanto mais o capital destrói as suas próprias condições de existência em termos de economia nacional e da lógica da dissociação social, o que… tem por consequência que, justamente tornando a força de trabalho humana supérflua em grande escala, põe fora de circulação a sua própria ‘substância’ económica e se reduz a si mesmo ao absurdo nos seus próprios fundamentos” (Kurz, 2005, p. 61) (1)

 

A “dissociação” (sempre mediada dialecticamente com o valor) não é uma dimensão estática que permaneça inalterada – como poderia parecer – representando a lógica de valor o momento dinâmico, pelo contrário, a dissociação do feminino é ela própria por assim dizer “corresponsável” por esta dinâmica, pois só ela a torna possível e a si própria se modifica no processo da dissociação-valor em curso. Ela própria está assim profundamente envolvida na eliminação de trabalho produtivo directo vivo. Justamente nas ciências naturais, cuja aplicação ao processo de produção é o principal factor de desenvolvimento das forças produtivas no patriarcado capitalista, mas também na formação da ciência do trabalho, que procura o aumento optimizado da eficiência e da organização racional do processo produtivo (palavra-chave: taylorismo), a dissociação do feminino e as imagens correspondentes da mulher constituíram decididamente a condição (socio-psicológica) muda da sua existência, encontrando também expressão no plano cultural-simbólico (as mulheres são menos racionais, piores em matemática e ciências do que os homens, e assim por diante, faltar-lhes-ia pensamento lógico). No entanto não só nos discursos científicos, filosóficos, médicos e teológicos desde a idade moderna se mostra uma dissociação do feminino, por ser atribuída às mulheres uma sensualidade e imediatismo inferiores, mas esta atribuição materializou-se no período fordista, como se viu, ele próprio condicionado pela dissociação do feminino, pois então o homem tornou-se o ganha-pão e a mulher a dona de casa na família nuclear imposta, pelo menos em termos ideais. Quanto mais se reificavam as relações, mais se firmava realmente uma dicotomia sexual hierarquizada. Condição do desenvolvimento das forças produtivas, a qual, apenas ela, fundamenta o patriarcado capitalista com a sua contradição básica que é a contradição em processo e, como tal, promove o seu desenvolvimento, portanto condição decisiva para a produção de mais-valia relativa e para que o fosso entre riqueza material e forma do valor acabe por vir à tona cada vez mais, tal condição é a dissociação do feminino assim determinada. Reificação e formação de relações hierárquicas de género condicionam-se assim vistas em termos de processo histórico e não constituem de modo nenhum uma oposição (2).

 

A dissociação do feminino assim definida, como condição de desenvolvimento das forças produtivas, levou então finalmente à revolução microeletrónica, que conduziu ao absurdo não só o trabalho abstracto, mas também o modelo de género moderno clássico e a “dona de casa”. Nessa medida a expansão de actividades de reprodução, de assistência e de care antes prestadas em privado é sobretudo uma parte da crise economicamente falando, pois a massa de mais-valia teria que ser redistribuída, mas já não há essa possibilidade perante o pano de fundo de uma contradição em processo e um capitalismo chegados ao seu limite, ou seja, todo este desenvolvimento deve ser visto à partida perante o pano de fundo da dissociação-valor como princípio social fundamental. O resultado é, portanto, em certa medida, um deficit de reprodução, pois as mulheres já não podem fazer essas actividaddes por estarem duplamente sobrecarregadas. Trazidas para o domínio profissional as actividades de care e de bem-estar chegam assim aos seus limites qualitativos, uma vez que são em grande parte travadas perante o ponto de vista da eficiência. Nestas circunstâncias as mulheres hoje também já não podem ser simplesmente pregadas na área reprodutiva ou de care, mesmo que muitas vezes acabem realmente por ir parar ao domínio do care ou a outros sectores de serviços também de conotação feminina. As mulheres – assim o exige não só o Estado e a economia, mas também a chamada sociedade civil – devem por princípio aceitar qualquer tipo de trabalho, mesmo um trabalho antes conotado como “masculino”, embora na circunstância e ao contrário dos homens continuem a ser (de facto) responsáveis pela família, pelas crianças e pela assistência. Assim também a imagem das mulheres se modifica: “As mulheres são homens, apenas diferentes” (Kornelia Hauser), mantendo ao mesmo tempo a responsabilidade pelas crianças e pela lida da casa e sem quebra das hierarquias de género que continuam a existir.

 

Se o trabalho abstracto se torna obsoleto, por outro lado nos homens também surgem tendências de “transformação em dona de casa” (Claudia von Werlhof). Surge assim um asselvajamento do patriarcado produtor de mercadorias, quando as instituições da família e do trabalho profissional se desfazem com a tendência para o aumento da crise e da miséria sem que as estruturas e hierarquias patriarcais tenham sido fundamentalmente ultrapassadas. Há muito que a questão já não é apenas o “poder de compra” (ver acima), quando as mulheres estão empregadas, mas a mera sobrevivência. As mulheres hoje têm de “fazer o papel do seu homem” quer queiram quer não. Nesta situação, as mulheres não só nas favelas do “terceiro mundo”, mas também cada vez mais neste país tornam-se administradoras da crise que tentam de algum modo obter mais “dinheiro e (sobre)vivência” (Irmgard Schultz) na forma de iniciativas de auto-ajuda. Ao mesmo tempo elas devem também assumir a função de mulheres dos escombros nos altos comandos da economia e da política, se necessário recorrendo-se a quotas, quando na crise fundamental a situação está sem conserto.

 

Ora o decisivo na determinação da relação de género pós-moderna é não se deixar enganar pelo facto empiricamente estabelecido da “dupla socialização” ou por um recitar de lugares comuns anti-essencialistas, tão-pouco como por um entendimento essencialista do care, misturado com as correspondentes atribuições em relação às mulheres. A dissociação-valor como princípio social fundamental e ao mesmo tempo histórico-dinâmico em mudança, combinada com o desenvolvimento das forças produtivas em todo o caso nela baseado, mina o seu próprio fundamento, a reprodução feminina na esfera privada. Assim, continua a ser necessário determinar a dissociação-valor como princípio formal constitutivo da totalidade social no seu novo significado histórico – o que por sua vez inclui novamente, numa figura também mais desenvolvida pós-moderna, as dimensões material, sócio-psicológica e cultural por igual e, portanto, também todos os domínios da sociedade, dizendo assim respeito ao todo social. Note-se: é a lógica fundamental EM PROCESSO da dissociação-valor, nomeadamente através do desenvolvimento da mais-valia relativa, mediado com o desenvolvimento das forças produtivas e a contradição em processo a ele associada, que em última instância faz ruir o sistema. Central aqui é que as próprias mudanças na relação de género sejam entendidas na sua dinâmica histórico-processual a partir dos mecanismos e estruturas da dissociação-valor.

 

 

4. Os aspectos de care da teoria da regulação (Silke Chorus)

 

Nos últimos anos há uma tendência para o care no feminismo teórico. Se a alocação das mulheres à reprodução e às profissões relacionadas foi desaprovada como “essencialista” no ponto alto do desconstrucionismo, isso mudou completamente há algum tempo. Fala-se mesmo de uma “revolução care em perspectiva” em sentido utópico (Winker, 2011). O foco continua a ser como antes a relação produção-reprodução, mesmo que muitas vezes se faça uma crítica superficial da dualidade. Assim se esquece que o próprio care é parte integrante do sistema patriarcal capitalista e não pode ser simplesmente prolongado utopicamente como domínio isolado. De seguida vou debater três abordagens do care, confrontando-as com as objecções da teoria da dissociação-valor.

 

Uma dessas abordagens é a da teoria da regulação, de resto também muito invocada no feminismo (cf. também Young, 1998, Soiland de 2008, Weiss, 2012). (3) O que se fará com base em considerações de Silke Chorus.

 

Segundo Chorus as abordagens da teoria da regulação também oferecem espaço para domínios não constituídos na forma da mercadoria para além do modo de produção capitalista, que devem ser postos em relação recíproca de modo historicamente específico. Isso resulta em lutas entre os diversos actores e grupos políticos sobre o “modo adequado de trabalho, de vida e de reprodução” (Chorus, 2011, p.393). Um conceito fundamental da teoria da regulação é o de regime de acumulação. “O conceito de regime de acumulação descreve… os diferentes modos e métodos históricos e regionais de obtenção de mais-valia e de acumulação de capital. O conceito inclui a maneira como a força de trabalho é utilizada no processo de produção, as relações de distribuição do valor social, bem como as formas de gasto social final e de consumo; este último é essencialmente determinado pelo modo de vida dos assalariados e pela proporção do consumo na forma de mercadoria nos orçamentos individuais.” (Chorus, 2011, p. 393) Os teóricos de regulação interessam-se sobretudo pela transição de um modus de produção para outro. Trata-se da substituição de um regime de acumulação por outro. Concretamente põem em foco a transição do fordismo para o pós-fordismo. “Os progressos no domínio da produção de meios de produção (no fordismo, R. S.) reflectem-se numa expansão e optimização contínuas da produção de bens de consumo... Assim, os custos de reprodução da força de trabalho podem cair em relação à mais-valia do ponto de vista do capital – mas os salários reais e o poder de compra na perspectiva de uma proporção considerável dos assalariados brancos do sexo masculino continuam a subir. Nesta base, é economicamente possível uma win-win situation [em inglês no original: situação de duplo ganho] temporária entre o capital e os trabalhadores (masculinos, brancos, ocidentais) por um período limitado de tempo.” (Chorus, 2011, p. 394) (4)

 

Chorus critica agora nas abordagens da teoria da regulação que considerem a reprodução apenas sob o ponto de vista do consumo. No entanto, a reprodução não consiste apenas no consumo em massa de mercadorias, mas também incluiu trabalhos de reprodução feitos principalmente como trabalho doméstico não remunerado e, não menos importante, que também apresentam um aspecto de preocupação e care. “Trabalhos de care... são trabalhos fundamentais para a reprodução individual e para a reprodução de um contexto social onde as relações interpessoais são importantes e não podem ser substituídas facilmente por bens mercantilizados. Aqui se incluem, por exemplo, o atendimento e tratamento das crianças, a assistência a idosos ou doentes, o apoio emocional e psicológico a pessoas em situações de crise etc.” (Chorus, 2011, p. 394 sg)

 

Em contraste com o fordismo, com seu o modelo de mulheres-donas-de-casa e homens-ganha-pão, no pós-fordismo as mulheres estão cada vez mais integradas no domínio profissional, agora já não são responsáveis apenas pela família. O fordismo distinguiu-se como um “regime de acumulação”, em termos de ganho de mais-valia, que foi mediado pela produção industrial em massa. “A dominância da acumulação intensiva no fordismo, que funcionava principalmente através do mecanismo da mais-valia relativa, e as condições de estabilidade da sua dinâmica de acumulação terão sido seriamente comprometidas quando serviços de care pessoais, pouco produtivos na economia capitalista de tempo, foram organizados em grande escala no mercado. Os trabalhos de care brilharam no fordismo sobretudo pela sua ‘ausência’ na economia monetária.” (Chorus, 2011, p. 395 sg)

 

Pelo contrário, no “fordismo tardio... o modo de reprodução e de produção modificou-se também pela entrada das mulheres no mercado de trabalho, no decurso da qual começou um forte crescimento do sector de serviços pessoais públicos e privados.” (Chorus, 2012, p. 396) Afirma também que “os serviços de care... em muitos países ocidentais cada vez mais se apresentam como transferências do Estado social para as pessoas em situações de dependência.” (Chorus, 2011, p. 397) Com razão constata que as chances de produção de mais-valia aqui serão mínimas. Nas palavras de Marx: serviços de care são faux frais.

 

Agora acontece que o conflito entre a “lógica da economia de tempo” e a “lógica do gasto de tempo” (Frigga Haug) no que respeita ao care é na verdade um momento do processo de crise que afecta por assim dizer a dimensão qualitativa, a qual é comprimida na forma profissional contra a sua natureza. E uma vez que os serviços de care não produzem mais-valia, mas dependem de uma redistribuição da mais-valia que hoje já não é possível, o problema do care acaba por se revelar um enorme problema económico. No entanto, esta alocação “essencialista” das mulheres corre o risco de perder a dimensão da profundidade real do problema: ou seja, a dissociação-valor como princípio social formal. As mulheres também estão de facto bastante concentradas e activas no sector de care, mas não só. Tal visão ignora as rupturas que têm ocorrido nos últimos anos, as mulheres são agora forçadas pela governamentalidade a partir de cima a entrar também nos domínios não care. Assim, por exemplo, Edmund Stoiber exige já há anos que as mulheres devem esforçar-se mais por obter formação no campo da informática. Aos poucos elas também vão sendo encontradas em campos “não-femininos”, mesmo se nos estudos – agora academicamente superiores – escolhem muitas vezes programas de estudo específicos de mulheres, como por exemplo filologia germânica. Como artistas da sobrevivência da classe inferior elas devem estar dispostas a aceitar qualquer trabalho, independentemente do seu conteúdo, ainda que muitas vezes (mas nem sempre) acabem em campos profissionais de conotação feminina, como no sector de care. No “terceiro mundo” as mulheres cujos maridos emigraram há muito que têm de assumir as suas funções. Ao contrário de Chorus, Brigitte Young, num ensaio de 1998 sobre os fundamentos da teoria da regulação, ainda partia de mulheres “duplamente socializadas” que representariam o modelo de um novo “regime de género” no contexto dos processos da globalização “da economia em rede global” (Young, 1998), ou seja, elas não estavam simplesmente empiricamente atribuídas ao sector do care. Contra as concepções reducionistas do care, é decisivo no feminismo manter que a dissociação-valor como princípio fundamental atravessa todos os domínios sociais, ou seja, mesmo quando as mulheres entram nos escalões de direcção da política e da economia. Uma vez que o colapso do patriarcado capitalista não permite realmente soluções imanentes, agora é que as mulheres devem correr. Isto não pode de modo algum ser interpretado emancipatoriamente, mas sim, da perspectiva da crítica da dissociação-valor, como sexismo invertido. Justamente as mulheres é que devem agora a arrancar resultados à força em domínios tradicionalmente não femininos, como na economia e na política.

 

No modelo da teoria da regulação já é sempre pressuposto – por assim dizer numa interligação de Gramsci com Althusser – que uma pessoa tem de se localizar sempre em relações de poder político para chegar a soluções (imanentes). “Os trabalhos de care... – em qualquer forma de organização – são importantes pressupostos para a troca e para a produção. Eles são social E economicamente actividades centrais, cuja qualidade e disponibilidade em situações de necessidade têm uma influência crucial sobre a qualidade de vida individual e, possivelmente, sobre as condições de sobrevivência individual. O facto de a precarização da segurança do care para as pessoas, através da mercantilização das necessidades de care e do trabalho de care, afectar todas as pessoas independentemente do sexo, também pode revelar-se uma oportunidade para mais amplas alianças, coligações e movimentos sociais, a caminho de uma sociedade em que o care, o apoio e a assistência dos outros sejam mais valorizados; em tal sociedade o direito ao care, apoio e assistência em situações de necessidade teriam de estar ligados com o direito universal a poder fazer este trabalho – mas não a ter que fazê-lo em todas as circunstâncias, independentemente do rendimento, sexo, nacionalidade, origem, vontade e cidadania” (Chorus, p. 400; destaque no original). Chorus faz alusão provavelmente também ao facto de que muitas migrantes são obrigadas a ser prestadoras de serviços de care no presente estado de colapso do patriarcado capitalista.

 

O colapso do patriarcado capitalista é no entanto omitido em Chorus. Neste caso é o próprio Estado social em crise que está em decadência (5). O decisivo, portanto, é que nas considerações feministas sobre a teoria da regulação (e não só) não se conta com o limite interno do capitalismo, nem este limite é colocado estrutural e historicamente em relação com a dissociação do feminino no que respeita ao desenvolvimento das forças produtivas, ao trabalho abstracto e à mais-valia relativa nem, neste contexto, com o desenvolvimento gradual de um capitalismo de mercado financeiro – com o objectivo de suplantar o contexto total – mas que, contra ventos e marés, são procuradas soluções imanentes já supostas nas abordagens do care.

 

Dado que às abordagens da teoria da regulação interessa especialmente saber como se passou da fase fordista para a fase pós-fordista, ou seja, apenas o salto dado nesse caso para a fase seguinte dum capitalismo basicamente imaginado como regulável, uma análise da crise só pode ser desenvolvida com base nessa análise limitada. Neste contexto é que se pretende que a relação de género tenha agora espaço nos conceitos da teoria da regulação. Basicamente, ela deve ser apenas incorporada na teoria da regulação, e apenas como TAL, de certo modo ter caráter marcante em forma de nicho, sem alterar qualitativamente o próprio conceito. Chorus assim não questiona só “as CONSEQUÊNCIAS dos processos económicos sobre as relações de género e o domínio da reprodução”. Em vez disso, ela também analisa “como as relações de género historicamente específicas e as formas de organização social do domínio da reprodução específicas de género têm uma INFLUÊNCIA marcante sobre as formas de organização social da economia e sobre as tendências de desenvolvimento económico.” (Chorus, 2011, p. 392, destaque no original) Assim se perde o caráter da dissociação-valor como tal em sua constituição dialéctica, carácter que não é subsumido nos relacionamentos de efeito mútuo.

 

Como exemplo da conexão entre os modos de consumo e de reprodução e o care apresentam-se trabalhos mais recentes de Young relativos à crise sub-prime nos EUA: “As casas compradas a crédito garantem assim – se tudo correr bem, ou seja, se os preços do imobiliário subirem – a segurança na velhice, a educação dos filhos ou um adequado serviço de saúde em caso de doença – mesmo que isso seja relativamente caro e não pudesse ser garantido unicamente pela evolução do salário. Se necessário, as casas podem “dar dinheiro sendo vendidas ou hipotecadas... Um padrão relativamente alto de consumo, que inclui entre outros serviços de care empresariais, pode assim ser mantido por um longo período de tempo, mesmo se a evolução do salário não o permite. O modelo entrará então em crise quando os preços dos imóveis deixarem de subir, porque o mercado está saturado, os créditos deixam de poder ser reembolsados em maior escala e/ou as hipotecas deixam de poder ser pagas. O modelo de proprietários de habitação endividados torna-se então em sua crise uma sociedade de devedores insolventes – incluindo na actual crise muitas MULHERES DE COR... o que depois se manifesta como uma crise dos grandes bancos imobiliários dos EUA nos mercados financeiros, sendo assim considerado o rompimento de um desenvolvimento contraditório do modo de produção E DE reprodução nos EUA”. (Chorus, 2011, p. 399, destaque no original; abaixo observações adicionais sobre a posição de Young)

 

Em resumo: Chorus não conta com um limite interno imanente ao contexto da lógica histórico-dinâmica da dissociação-valor como um todo, que não em último lugar condiciona também a actual crise do care. Este é que é o cerne da actual crise fundamental e não o contrário, que “o predomínio da forma fordista de mais-valia teria sido posto em causa pela expansão dos trabalhos de care com fraca criação de valor, muito pouco produtivos” (Chorus, 2011, p. 396) O facto de as mulheres subjetiva e intencionalmente terem querido entrar mais e mais no mundo do trabalho (incluindo o especificamente de care, mas não só) liga-se aqui da forma mais primorosa com a lógica objectiva e em processo da dissociação-valor (cf. tb. Fraser, 2009).

 

 

5. “Mais-valia e dimensão humana” (Sabine Plonz)

 

Chorus conclui a condizer com as seguintes palavras: “Tal mudança (na qual a dimensão do care é valorizada R.S.) não pode acontecer sem uma mudança profunda no entendimento hegemónico do que se entende como económica e socialmente relevante e importante e é pago em conformidade. Tal mudança social implica deslocações nas relações de distribuição do valor socialmente produzido e nas prioridades económicas e sociais para a orientação da reprodução e do trabalho de care. Tais deslocações precisam de uma acção social e politicamente eficaz e de uma deslocação do foco teórico e político na orientação da reprodução e do trabalho de care.” (Chorus, 2011, p. 400) Sabine Plonz agora vai direita à dimensão ética no debate care feminista. “Uma das razões para a proeminência do conceito de care é, provavelmente, a relevância ética do tema, mas ela quase nunca é explicitada... No entanto, não só as abordagens teóricas de argumentação interpessoal, mas também as sócio-económicas têm uma dimensão ética.” Para ela também se trata do problema de “como questões de abastecimento, perspectivas de género e direitos de cidadania são discutidos enquanto contexto teórico.” Segundo Plonz apenas a dimensão ética torna as “estruturas sociais e as ideologias completamente compreensíveis” e “suplantáveis”. Aqui, desde Adam Smith, ciências económicas, ciências sociais e filosofia moral foram separadas. Em vez delas, “continua a funcionar (estrutural e ideologicamente) em segredo a ética (e teologia) imanente do capitalismo ancorada nas leis de mercado” (Plonz, 2011, p. 365). Nestas condições aplica-se que: “No discurso feminista sobre o care reflecte-se a... necessidade da crítica e da re-união do que habitualmente é conceptualmente separado. Se o termo care... for lido a favor disso, podemos entendê-lo como LEMBRANÇA UTÓPICA DA DIMENSÃO HUMANA DA ECONOMIA.” (Plonz, 2011, p. 366, destaque no original)

 

Para o efeito Plonz analisa diferentes abordagens do care e salienta a sua dimensão ética. É encontrado um princípio ético, já oferecido na ética profissional do serviço social desde as suas origens (femininas), bem como nas críticas feministas da sociedade do trabalho desde a década de 1980 que apresentam o care como alternativa, exigindo que o care deva ser tomado em consideração no próprio mundo do trabalho, em avaliações feministas cépticas segundo as quais a relação de “trabalho e care” já inclui sempre uma dinâmica cheia de contradições e de conflitos, indo até às abordagens que pretendem colocar as mulheres não só no lado do care e exigem uma solução para o dilema de produção e reprodução a nível do Estado social, que rompa finalmente com o dualismo de género, na medida em que se torne possível a responsabilidade de certo modo sexualmente neutra de todos pela produção e pela reprodução, ou seja, pela profissão e pelo trabalho doméstico. Hoje desenvolvem-se princípios de ética do bem-estar que frequentemente ocorrem sob o termo internacionalmente sedimentado do care.

 

Plonz conclui provisoriamente: “A pesquisa sobre o trabalho (tematiza) sob o lema care a contradição entre a produtividade da actividade de prestação de cuidados e a lógica capitalista da valorização, sob cuja supremacia a primeira é por um lado negada e por outro explorada, talvez sendo ainda central para a capacidade de criação de valor.” (Plonz, 2011, p. 372; ela refere-se aqui nomeadamente à abordagem de Chorus acima discutida) E escreve depois: “Nessa medida os investimentos úteis para o care PODERIAM ser uma indicação de política que observa padrões éticos. Serviços pessoais, acompanhamento, saneamento requerem uma política à dimensão humana.” Aqui, “sem prejuízo da autonomia de outras questões, a crítica feminista da economia política pode incidir sobre a negligência teórica do aspecto humano e cuidadoso da produtividade e à sua expropriação do processo de acumulação.” (Plonz , 2011, p. 375, destaque no original)

 

A teóloga protestante quer chegar mais longe: “Na verdade, trata-se da orientação com dimensão humana no contexto económico de desmedida e das objecções a muitas vozes à ameaça destrutiva do trabalho e da vida. Apesar desta reivindicação universal, a maioria dos autores argumentam eticamente em sentido vago. Sobretudo eles funcionam com um mínimo de pressupostos antropológicos.” (Plonz, 2011, p. 376) Plonz afirma agora ainda: “Com a orientação ética fundamental à dimensão humana e a exigência pragmaticamente orientada de um ethos de atenção no contexto do capitalismo contemporâneo, abre-se a perspectiva da compreensão do ser-activo humano que critica as condições económicas e políticas, mas deixa para trás o pensamento economicista. As pessoas são sujeitos éticos que têm direitos e deveres políticos, mas também são ameaçados por processos de discriminação e exclusão.” (Plonz, 2011, p. 376) Plonz aqui está bem tanto com uma ideologia do trabalho recém-formulada, que até pretende incluir a sua crítica, como com a visão de Hannah Arendt em Vita activa, que a põe em causa. O mais importante é fazer, o mais importante é trabalhar! Assim se esquece aqui também que a própria separação entre economia e política em si é um momento constitutivo do processo de dissociação-valor e, neste contexto, há algo como um contexto geral fetichista que se desenrola por trás das costas das pessoas, embora criado por elas. Neste sentido, os “sujeitos” são simplesmente postos de modo ingénuo por Plonz no contexto da filosofia da práxis, como se o ser sujeito e a sua constituição no contexto do patriarcado capitalista não estivessem já sempre ligados entre si de forma androcêntrica. Claro que isto também já deriva do facto de ela, na tradição do iluminismo, tomar por base os direitos de cidadania sem os questionar.

 

Perante este pano de fundo, a ética é basicamente ontologizada em Plonz, sendo que o capitalismo tem sobretudo uma “ética pervertida”. “A ‘acção correcta’ que funciona nesta estrutura, NÃO se baseia em princípios do direito geralmente aceites como justos (como na ética liberal-burguesa), mas nas leis dos mercados e do crescimento compulsivo. Pode, portanto, preparar-se uma crítica da anti-ética da economia de constituição capitalista rejeitando os conceitos da democracia burguesa e invocando os tratados internacionais de direitos humanos.” (P. 377, destaque no original) Aqui já se trata sempre de mais do que care. “Procura-se uma ponte entre visões, realpolitik e transformação usando o critério da dimensão humana. Os discursos dominantes, mesmo feministas, não prevêem qualquer linguagem para o efeito.” (Plonz, 2011, p. 378) Mas ela vê uma oferta para o efeito do lado feminista marxista na abordagem de Frigga Haug “Perspectiva quatro em um” certamente não em último lugar porque Haug tem uma base marxista na ontologia DO TRABALHO (ver para a crítica, a partir duma abordagem da crítica da dissociação-valor, Scholz 2011a, p. 93 e sg., p. 217 e sg.) Isto é considerado tão evidente que já nem precisa de ser tematizado.

 

É mais que óbvio que as teóricas feministas do care argumentam em primeiro lugar eticamente: Esse é decididamente o ponto de partida da sua análise, mesmo se a ética como tal não é por elas explicitamente tematizada. Basicamente, em primeiro lugar vem a ética (do bem-estar) e, em seguida, a análise. Como ficará claro neste trabalho, tais abordagens fazem sobretudo uma coisa: perdem-se em súplicas. A própria Plonz mostra isso na sua passagem em revista dos vários conceitos (feministas) de care. A carga moral dessas abordagens, contrariamente à intenção de Plonz, é no sentido de tornar visível a ética aqui, no entanto de modo tão banal e transparente que se nota que é sublinhada, e de facto no seu papel e significado para expor e criticar um capitalismo patriarcal.

 

Mas por outro lado a ética na esteira do neoliberalismo é o turíbulo que está presente em toda a parte e é agitado para cá e para lá (ética na economia, ética para gestores etc. – ver para a crítica: von Bosse, 2010). Ética e moral já são sempre o lubrificante indispensável do patriarcado capitalista, de modo a manter a sua legitimação, ainda que tenham sido banidas das teorias económicas depois de Adam Smith. Não há “razão instrumental” (Horkheimer) sem ética, sendo que ambas se condicionam mutuamente e, portanto, nenhuma estratégia de saída pode ser encontrada para lá da ética! “Exigência e apoio” aos beneficiários de Hartz IV significa então isso (ver Rentschler, 2004). E de facto a invocação do “maternal” e o incensar da maternidade sempre tiveram um tom altamente moral, sendo caracteristicamente localizadas na tradição sempre para lá de estruturas objectivamente factuais. Justamente a “ética protestante” desempenha aqui um papel em forma secularizada, modificada ainda no actual capitalismo de consumo (ver abaixo os meus comentários sobre Irene Dölling).

 

Em última análise, para Plonz trata-se sempre da Bíblia: “A utopia de uma ‘preocupação com os outros’ socialmente desejada e permitida tem precursores incluindo na tradição bíblica. O mandamento aí pensado como particular e UNIVERSAL de amar o próximo e o inimigo surge no espaço de um projecto social em que a economia e a satisfação das necessidades de todos, a vida e a crítica político-ética estão ligadas conceptualmente.” (Plonz, 2011, p. 378, destaque no original) Para não ser “essencialista”, tudo se resume a: o care verdadeiramente desde sempre fez parte da Bíblia, pelo que as feministas também já não têm de recorrer ao princípio do care, podendo portanto manter-se em posições feministas anti-essencialistas. O princípio do care de qualquer maneira já existe teologicamente desde o início, antes de tudo. Seu lado “feminino” está aí excluído, desde sempre universalistamente superado. Ele afunda-se à maneira da lógica da identidade, novamente indiferente à diferença, num absoluto pensado cristão, que já é sempre a base fatal para o patriarcado capitalista total, numa interpretação específica da lógica da identidade. Aqui as mulheres e o care são ainda de algum modo unidas em Plonz. Seus pressupostos “éticos” são a base do mainstream das teorias e políticas feministas de care que não se atrevem a erguer a relação fundamental de dissociação-valor como problema básico, nem a compreender e criticar a dimensão care como imanente a este.

 

Em vez disso, a questão seria colocar o problema da necessidade primária aparente de uma fundamentação ética das (actuais) perspectivas de care no contexto da lógica macro da dissociação-valor como princípio processual histórico em si. As estruturas objectivas merecem atenção a Plonz quando se trata da dimensão (cultural) subjectiva das relações sociais, como instância de “forças e contra-forças”, apenas no contexto de uma intenção no fundo moralista pura, que amacia o seu protestantismo na pseudo-reflexão das estruturas sociais. Neste contexto, vendo melhor, desaparecem basicamente quer a atribuição de actividades de care às mulheres no plano subjectivo quer as estruturas sociais objectivas. O que é decisivo em Plonz, apesar da invocação de envolvimento sócio-económico de uma perspectiva (feminista) do care, é em última análise a dimensão ética; ela desenvolve de certo modo uma “eticização” da crítica social (feminista). Na invocação dessa perspectiva, no entanto, Plonz frustra francamente a sua própria intenção: a possível existência humana para lá do patriarcado capitalista; para isso teria de ser posta em questão não apenas a mais-valia, mas também a noção meramente ética – pensada apenas abstractamente – de uma dimensão humana que ocorre igualmente com ela. É quase desnecessário dizer que não têm aqui lugar as categorias e os relacionamentos de uma contradição em processo de trabalho abstracto, mais-valia, desenvolvimento das forças produtivas, dissociação-valor, com o consequente declínio do capitalismo. Se as abordagens marxo-keynesianas já têm sempre um forte toque moralista (cf. Kurz, 2005, p. 373 e sg), por maioria de razão isso se aplica às perspectivas feministas do care, pois a actividade de care feminina dissociada foi desde sempre relegada para o reino da moralidade. Precisamente por esta razão, é necessário destacar o seu significado objectivo dentro do patriarcado capitalista, como condição para toda a organização em geral. Através de uma visão sobretudo ética, a sua pretensa irrelevância, no entanto, seria apenas mais cimentada.

 

 

6. A redefinição do económico com a ajuda da categoria (re)produtividade? (Biesecker/Hofmeister)

 

O postulado “feminista” de uma “preocupação como relação mundial” alegado e divulgado por Plonz (conceito que ela toma de Tronto, cit. em Plonz, 2011, p. 376) é decididamente resgatado na concepção de Biesecker/Hofmeister; bem como a perspectiva de uma care revolution de Winker, sendo que Biesecker/Hofmeister descrevem à partida a categoria trabalho com toda a franqueza como relação (de preocupação) com o mundo. Aqui também elas não pretendem abandonar o quadro capitalista imanente; também elas procuram estender para o futuro categorias comuns e certas constituições patriarcais capitalistas, extraindo delas ideias utópicas. No entanto se Chorus mesmo assim ainda conclui que as actividades de care nem profissionalmente prestadas criam valor e se Plonz ainda procura contrapor à mais-valia uma dimensão humana com falsa ética, de algum modo pressupondo o “trabalho” na actividade, na concepção de (re)produção de Biesecker/Hofmeister isto é justamente ao contrário. Tanto a natureza como as actividades reprodutivas femininas são consideradas em primeiro lugar como criadoras de valor. “A actividade (re)produtiva realiza-se em várias áreas de actividade – tanto na gestão doméstica como em diversas formas de empresas – mas esses espaços muitas vezes não são reconhecidos como áreas económicas. A razão é... a dissociação do económico das suas raízes e pulsões ecológicas e do mundo da vida. A teoria económica tradicional, por causa de sua estrutura básica marcada na história da teoria, não pode fazer justiça ao desafio teórico ligado com o postulado de um projecto sustentável de desenvolvimento futuro. Pois a teoria económica é caracterizada por uma estrutura de separação: Na determinação da produtividade, a produtividade feminina e ecológica são separadas. Elas são consideradas como não-económicas, na melhor das hipóteses reprodutivas. Como resultado, a práxis económica não consegue perceber como tarefa a conservação e renovação das produtividades ecológicas e femininas.” (Biesecker/Hofmeister, 2010, p. 52)

 

Assim, na história das teorias económicas, o care seria ainda visto em Adam Smith como uma instância moral, tal como para Plonz, o que com Ricardo e Marx então se desvaneceu com o tempo, embora tenha havido sempre correntes secundárias da história que consideraram importantes essas dimensões de diversas maneiras. Isto também se aplica à problemática da natureza.

 

A “produtividade sócio-ecológica” segundo Biesecker/Hofmeister em grande medida não é conhecida nem reconhecida. Esta produtividade no entanto será utilizada nos processos de valorização económica de forma abrangente. A própria natureza é produtiva – dizem Biesecker/Hofmeister recorrendo a Bruno Latour e Donna Haraway. Biesecker/Hofmeister falam neste contexto também de “híbridos natureza-cultura”: “Através de cada processo de produção individual são criados híbridos natureza-cultura – e de facto, por um lado, nos bens e serviços produzidos consciente e intencionalmente e, por outro, nos subprodutos co-produzidos inconsciente e não intencionalmente: alterações climáticas, inundações, desaparecimento de espécies (...) mostram que não é possível a separação entre os momentos da causalidade e dos efeitos antrópicos e naturais.” (Biesecker/Hofmeister, 2010, p. 71) Para Biesecker/Hofmeister a natureza torna-se assim em certa medida um sujeito. A actividade económica deve ser prosseguida de tal modo que a natureza seja mantida. Em vez de questionar o entendimento patriarcal-capitalista do sujeito, transferem-no assim para toda e qualquer coisa na ontologia do valor. Elas desenvolvem assim, com recurso a considerações anteriores de Immler/Hofmeister, um modelo de reprodução visando a sustentabilidade que se distingue do modelo de produção tradicional, o qual é construído em torno de produção e consumo. Aqui, as funções económicas de produção e consumo antrópicos são incorporadas nos processos ecológicos (...) que também não são menos produtivos do que os serviços economicamente valorizados. Nesta perspectiva, os processos ecológicos são vistos como primariamente de produção: ‘Produção natural’ e ‘reprodução natural’ – ou seja, as funções que se tornam idênticas entre si na unidade de produto natural e produtividade natural – são reconhecidas no modelo de reprodução como processos que abarcam as economias humanas, as possibilitam e voltam a possibilitar. São precisamente estes processos naturais que devem ser mantidos e reconstruídos através de uma produção e consumo conscientes de bens e serviços, orientados para a reprodução das configurações das funções (económicas em sentido estrito) antropogénicas. Em suma: a (re)produtividade é uma categoria que abrange o ‘todo’ da produtividade. (Re)produtividade significa a unidade processual de todos os processos produtivos na natureza e na sociedade, não separada por desvalorizações, com simultânea distinção.” (Biesecker/Hofmeister, 2010, p. 69) Tal como acontece com a natureza, Biesecker/Hofmeister também incluem no seu modelo de reprodução as actividades reprodutivas femininas. Que as actividades reprodutivas femininas são um recurso natural, é o que se mostrará na crise dessas actividades hoje, por exemplo nas alterações demográficas, na negligência e abandono de crianças, na crise da educação, no estado de emergência da educação.

 

Em Biesecker/Hofmeister tudo tem de se tornar económico, tudo tem de ser produtivo. O valor não é objecto de crítica como em Marx – como é sabido, para este a questão é a CRÍTICA da economia política – mas torna-se o ponto de partida positivo para a sua concepção de (re)produção. Trata-se no fundo de uma economificação completa do mundo. É o que diz também o seu livro Die Neuerfindung des Ökonomischen [A reinvenção do económico] (2006). Assim elas já não se referem à economia real, nem na forma das crises actuais (crash financeiro, falências estaduais etc.) nem categorialmente. Claro que também não se referem à contradição em processo. Se o valor é tudo ele também não pode entrar em crise. Ele é estabelecido ontologicamente. Tão simples como isso. Em vez de ver que o trabalho abstracto entra em crise, mediada pelo desenvolvimento das forças produtivas e pelo derreter da massa de mais-valia já sempre pensada no conjunto da sociedade, o que sugere o questionamento do valor, do trabalho (abstracto) e da produção de valor (mais-valia) bem como do domínio dissociado no sentido de actividades reprodutivas femininas igualmente em crise, em vez disso, o mundo inteiro é literalmente transformado numa grande casa de trabalho. Para elas trata-se de uma “extensão radical do conceito de trabalho” (Biesecker/Hofmeister, 2010, p.75). Nem mesmo a natureza explorada é poupada e deve ser considerada como activa.

 

Em vez de fazer uma “crítica categorial” (Robert Kurz), no sentido de crítica das relações sociais reais e das categorias correspondentes, as conceptualidades antigas são em Biesecker/Hofmeister simplesmente redefinidas e estabelecidas de modo diferente. Mesmo no seu devir obsoletas elas têm de ser interpretadas positivamente em sentido utópico. O objectivo em Biesecker/Hofmeister é uma actividade económica sustentável. Nessa medida elas consideram indispensável um processo de transformação. “A condição para o sucesso deste processo de transformação fundamental do económico é a suplantação da diferença entre avaliação (que até agora significa separação) e utilização (disponibilização) como relação de contradição interna da economia moderna. Isso significa substituir o conceito de produção até agora vigente, abstracto e quantitativo, por um conceito de (re)produtividade qualitativo, ligado a critérios sócio-ecológicos. A selecção de tais critérios está sujeita a determinação social. Por isso, o económico, por um lado, estende-se aos domínios que na modernidade foram separados como não-económicos (especialmente à economia da assistência e aos espaços de produção ecológicos). Por outro lado, está sujeito a processos democráticos de avaliação e configuração.” A reprodução em Biesecker/Hofmeister acaba por ser novamente nivelada com a (re)PRODUÇÃO. Toda a sua concepção na realidade tem basicamente a “produção” como modelo para a adopção de híbridos de natureza e cultura já sempre mistos. Assim, elas defendem uma “economia de (re)produção, (que é) primariamente uma economia material e apenas secundariamente uma sociedade de dinheiro.” (Biesecker/Hofmeister, 2010, p. 74)

 

E de repente entra em jogo também o plano sócio-cultural. “Na época da biotecnologia as noções culturais de masculinidade por exemplo desaparecem cada vez mais das noções de desenvolvimento social. As noções tradicionais de natureza e de feminilidade tornam-se menos importantes... Com o rompimento do padrão tradicional de divisão sexual do trabalho, as atribuições simbólico-culturais da vida masculina de trabalho profissional e da vida feminina de trabalho familiar já não são auto-evidentes. Nesse processo de transformação poderia surgir uma relação social cooperativa para uma sociedade sustentável.” (Biesecker/Hofmeister, 2010, 75) O lado do care é em Biesecker/Hofmeister atribuído às mulheres em seus pressupostos básicos sem qualquer questionamento, mesmo estando elas presas há muito tempo na armadilha da “dupla socialização”. Só no fim das suas explanações é que elas aparecem como tal novamente no decurso dos processos de transformação no contexto de uma “economia sustentável”, sem explicar, no entanto, como estas mesmas alterações se relacionam com o cenário actual de crise e, especialmente, como as relações hierárquicas entre os sexos na época da flexibilidade apresentam uma nova face, se modificam, mas não desaparecem e as actividades de reprodução social continuam como antes fatalmente um “domínio soberano” das mulheres, quando na crise as instituições família e profissão se desgastam e desmoronam.

 

Em vez disso, o princípio social fundamental da dissociação-valor em sua dimensão histórico-processual tem de ser sujeito a uma crítica impiedosa. Ele corresponde intimamente à contradição em processo e é seu pressuposto num sentido dialéctico, sendo apenas ele que cria o problema que constitui o tema central de Biesecker e Hofmeister. Mais ainda: a “dissociação” não pode assim ser simplesmente transformada abstractamente num ponto de partida a-histórico – nem em termos de concepção teórica nem como base para quaisquer utopias. Neste contexto, também o care tem de ser posto em questão em seu devir histórico, e justamente no entrelaçamento dialéctico com o valor (mais-valia). Assim não se permite de certo modo tomá-lo como origem categorial, na medida em que também está misturado com o conceito de trabalho. Mas assim também Biesecker-Hofmeister falham as suas próprias preocupações, nomeadamente de não perder de vista “o todo”. Elas, tal como já há décadas as do chamado grupo de Bielefeld, movem-se num plano segundo o qual a natureza e as mulheres (estas mesmo no contexto de práticas de subsistência no “terceiro mundo”) seriam criadoras de valor (ver Bennholdt-Thomsen/Mies/von Werlhof, 1984). De modo diferente de Chorus e Plonz, também no caso de Biesecker/Hofmeister estamos apenas perante uma falsa transformação, distorcida, que permanece no que existe. Assim não se consegue uma determinação fundamental dinâmico-processual nem uma crítica radical da dissociação-valor como princípio social fundamental.

 

 

7. Para lá do paradigma do trabalho? (Irene Dölling)

 

Ao contrário de Biesecker/Hofmeister e de todo o discurso feminista tradicional, Irene Dölling tenta suplantar o paradigma de trabalho (pago). Esta é uma questão que até para a crítica do valor androcêntrica já foi central há anos e por maioria de razão o é para a crítica da dissociação-valor, sem por isso se atribuir ao domínio do care potencialidades de transcender a sociedade (ver, por exemplo, Scholz, 1999). A seguir vamos examinar algumas abordagens que não argumentam pseudo-ingenuamente com a teoria do care, sendo ainda assim redutoras do ponto de vista da crítica da dissociação-valor. Para Dölling é “questionável se os modelos de pensamento do paradigma do trabalho pago, que actualmente dominam os discursos da ciência social e do feminismo sobre o futuro do trabalho e da sociedade do trabalho, querem fazer análises críticas que evidenciem e ponham em discussão desenvolvimentos ou potenciais de desenvolvimento, ou se não pretendem antes bloqueá-los.” Para Dölling trata-se, portanto, de “suplantar o paradigma do trabalho (pago)” e, com referência a Hardt/Negri, da “necessidade da dissolução da ‘identidade de trabalhador’” (Dölling, 2012, p. 277). Em conformidade com isso ela baseia-se no desenvolvimento histórico do “trabalho” em sentido moderno, contra as concepções ontológicas do trabalho. Se na pré-modernidade “o trabalho, e especialmente o trabalho corporal… era desprezado”, agora ele foi elevado a fundamento da sociedade do trabalho moderna, “agora é a fonte de toda a riqueza”, diz Dölling com referência a Adam Smith (Dölling, 2012, p. 278). A “ética protestante” foi a primeira a fornecer a noção normativa de uma ética do trabalho capitalista e de um estilo de vida correspondente juntamente com um “ascetismo deste mundo”, que se separaram da sua base religiosa e agora se tornaram a norma capitalista central igualmente para empresários e trabalhadores, e mais: tornaram-se o “modus de socialização” por excelência (Dölling, 2012, p. 279). Com o Estado-nação no século XIX, tendo como pano de fundo a “questão social”, veio depois a cobertura dos riscos, agrupados em torno da capacidade de trabalho. A expansão desta cobertura e a expansão do Estado de bem-estar após a Segunda Guerra Mundial estiveram em pleno andamento até bem dentro da década de sessenta. A redução das horas de trabalho e a jornada de oito horas, juntamente com um maior nível de consumo agora para quase todos, tornaram-se o padrão, mas tendo por fundo a norma do trabalho tornada absoluta. O “paradigma do trabalho permeia todos domínios da vida social e individual, e não se trata única e simplesmente das relações, mas também e sobretudo de que a sua incorporação e a sua aplicação quotidiana na vida prática é que garantem a sua estabilidade e dominação.” Assim também é na base deste paradigma que se decide como são avaliados os trabalhos e as hierarquias entre os trabalhos. Segundo Dölling é esta a base da divisão do trabalho com hierarquia de género e da norma heterossexual. E também é responsável pela classificação inferior das actividades reprodutivas; é igualmente nesta base que se decide quem é um ser humano com valor ou um “parasita social” (Dölling, 2012, cf. p. 279 sg.).

 

Não se reflecte em Dölling que a “dissociação” é a contraparte dialéctica do trabalho (abstracto) E da produção de mais-valia, não podendo ser simplesmente “derivada” do “trabalho”. Daí resultam também a divisão sexual do trabalho e a norma heterossexual, bem como a orientação para a concorrência e para o desempenho que marginaliza ou exclui os mais fracos, os quais não conseguem participar numa socialização de dissociação-valor. (6)

 

Dölling constata que a estrutura básica de orientação pelo trabalho não terá mudado nada no essencial hoje, embora admita com Boltanski/Chiapello que entretanto terá sido assumida uma “crítica boémia”, isto é, as críticas da alienação do trabalho são assumidas até pelos gestores (criatividade, auto-responsabilidade etc.). “Justamente porque os princípios da sociedade do trabalho (ética profissional) no seu modo de vida incorporado e auto-evidente raramente são questionados ou questionáveis em sentido prático, eles desenvolvem um poderoso efeito protector da dominação. Mas isso também significa, inversamente, que só (! R.S.) nas mudanças do estilo de vida, nas classificações diárias da visão do mundo e de si mesmo e das suas ancoragens ‘habituais’ existem chances de que os potenciais de transformação (possam) ser percebidos e realizados em dados objectivos... O que significa a suplantação da identidade dos trabalhadores (esta crítica, aliás, ocorre sempre com referência a Hardt/Negri! R.S.) que na sua forma sexuada e socialmente diferenciada marca todos os membros da sociedade capitalista tardia, por meio de provas práticas de formas de viver novas reconhecidas colectivamente que a longo prazo vão ao encontro de um novo modo de socialização e de integração.” (Dölling, 2012, p. 281)

 

Segundo Dölling o sector dos serviços oferece novos postos de trabalho para lá do paradigma da produção, surgidos devido à eliminação do trabalho industrial, sendo que as actividades de care, bem como actividades baseadas no conhecimento, satisfazem a necessidade de auto-realização. As mulheres agora também vêem em primeiro lugar os aspectos positivos do trabalho assalariado, apesar de “dupla carga mais frequente... uma vez que os sujeitos no mercado de trabalho são procurados de modo cada vez mais neutro sexualmente.” (Dölling, 2012, p. 282)

 

Se no discurso sobre care muitas vezes se faz simplesmente a ligação entre mulheres e actividades de assistência, no caso de Dölling apresenta-se-nos uma relação entre género e forma de actividade de certo modo contingente. Basicamente segundo ela o mercado (de trabalho) torna todos iguais, como no entendimento do antigo marxismo (7) – só que depois certos “grupos” acabam sempre nas mesmas áreas de actividade. Uma saída para esse dilema lógico poderá ser oferecida pela crítica da dissociação-valor num plano macro. A dissociação-valor e não simplesmente o “trabalho” (o valor) será então o modo de socialização a criticar. ELA atravessa todas as áreas, mesmo quando não se trata de care e as mulheres se encontram fora da esfera do care, por exemplo, na esfera financeira, onde estão condenadas a ser mega-mamãs, que conseguem as duas coisas: racionalidade e prestação de cuidados. De acordo com a dissociação-valor como princípio social formal, portanto, nem pode ocorrer uma completa alocação das mulheres ao care, nem o mercado de trabalho pode ser simplesmente considerado sexualmente neutro. O recurso ao “estilo de vida”, um conceito usado por Dölling no sentido de Weber, não é suficiente para determinar esta estrutura macro.

 

Dölling constata ainda bem neste sentido que no entanto também “(se podem) observar alterações e mudanças que apontam para uma erosão do paradigma do trabalho. O trabalho pago torna-se cada vez mais precário e em sentido amplo: como emprego temporário (de horário reduzido) ou de baixa remuneração, como trabalho a tempo parcial ou subcontratado, para cada vez mais pessoas o trabalho cada vez menos consegue corresponder às expectativas a ele associadas de uma remuneração razoável, de planeamento a longo prazo e proteção da vida individual e familiar, de rendimento suficiente e de assistência médica acessível.” (Dölling, 2012, p. 282 sg.)

 

No actual debate Dölling identifica duas posições: uma posição “caracterizada pela progressão da dominância do ECONÓMICO, ou seja, pelo facto de os potenciais de transformação serem vistos em primeiro lugar em mudanças NA esfera profissional, as quais (então também) têm efeitos sobre o estilo de vida. POR OUTRO LADO... argumenta-se a favor de uma limitação do conceito de trabalho, a favor de uma ‘luta por uma nova hegemonia para além da hegemonia do trabalho pago’... onde se trata agora do ‘desenvolvimento de potenciais livres e de tempo livre para o trabalho não económico… e para as competências não económicas’”... diz Dölling, sendo esta última afirmação de acordo com a referência a Michael Hirsch (Dölling, 2012, p. 285, destaque no original).

 

Finalmente Dölling chega a falar facilmente de actividades voluntárias, da ideologia commons etc. como possíveis soluções para a crise. Nessa medida a pressão real do feminismo a partir do exterior deve novamente ser recuperada: “vida” versus “trabalho”, aliás, socialização alienada. E, nessa medida, deve ser lançado um olhar… sobre o “não-trabalho”, ou seja, (sem surpresa, R.S.) para actividades até aqui não submetidas ou pouco submetidas à esfera profissional da lógica económica e onde as pessoas poderiam (novamente) desenvolver mais soberania sobre suas próprias vidas e sobre a configuração das suas condições de vida orientada para as suas necessidades próprias e interesses colectivos” (Dölling de 2012, p. 286).

 

Neste sentido, as ciências sociais (feministas) devem manter abertura para “coisa novas, incomuns, marginais, de modo que o ponto de vista crítico analítico não seja limitado por noções e conceitos arraigados nem, portanto, permaneça cego para o possível” (Dölling, 2012, p. 277); como se justamente todo o discurso até aqui havido sobre economia solidária, commons, voluntariado etc. tivesse sido marginal. Pelo contrário, constitui uma grande corrente do discurso, que não inclui apenas o debate da esquerda. Também seria para reflectir, neste contexto, que há muito tempo surgiu uma crítica do trabalho abstracta e sexualmente neutra, (cujo androcentrismo a crítica da dissociação-valor pôs a nu – ver Scholz, 1992), antes de os círculos académicos (feministas) a terem descoberto e – imaginando-se agora particularmente originais – a exibirem na própria lapela académica.

 

Na verdade Dölling não fala de contradição em processo, mais-valia etc. nem deduz os actuais processos de colapso das categorias de Marx. Ela não argumenta, portanto, a partir de uma perspectiva da teoria da crise seguindo a crítica da economia política de Marx, pelo contrário, as suas reflexões estão num plano sociológico, o da concepção de “estilo de vida” de Max Weber. No entanto, a perspectiva da mais-valia como dimensão histórica em processo dinâmico não pode ser negligenciada como dimensão macro no contexto da crítica da dissociação-valor, quando se tem em conta uma perspectiva de colapso, como é aqui o caso. Dölling deixa em aberto se ainda poderão surgir novas possibilidades de regulação: “todos(...) os sintomas na sua constelação global apontam para que os anteriores modos de socialização, de integração e de controle, que eram característicos da modernidade “organizada” (Wagner), com o seu Estado de bem-estar, tendem a tornar-se obsoletos e disfuncionais. Há muitos indícios de que a modernidade capitalista está actualmente a enfrentar uma mudança fundamental nos modos de regulação da sociedade, semelhante à que Karl Polanyi descreveu como THE GREAT TRANSFORMATION [A GRANDE TRANSFORMAÇÃO] para o desenvolvimento da economia capitalista. No entanto está em aberto se as soluções a encontrar para as contradições actuais levarão a modos de regulação novos/modificados que permaneçam no quadro do capitalismo, ou se esta nova fase do desenvolvimento capitalista é ao mesmo tempo uma fase em que se manifesta o início da transição para outra sociedade... ou seja, uma transformação para além do capitalismo.” (Dölling, 2012, p. 276) Com Dörre e outros exige que se coloque no centro das atenções “... o potencial socialmente destrutivo do capitalismo...” e a partir daqui “como dado, nas contradições e ambivalências da sociedade actual” se constituam “condições objectivas e potencialidades subjetivas para transformações que apontem para lá do status quo” (Dölling, 2012, p. 277). Neste contexto, como se viu, ela põe em causa o paradigma de trabalho e chega a respostas dúbias que de certo modo se agrupam em sentido micro-sociológico em torno do “estilo de vida” contra a “dominância do económico”, quando escreve que se trata aqui de outros “modos de socialização”, o que realmente não pode ser reduzido ao “estilo de vida”.

 

Todas as observações de Dölling no fundo mesmo sem o feminismo passariam bem, sem perda de substância. Para ela o care não é de facto à partida economificado, mas em vez disso vê aqui em termos sexualmente neutros “não-trabalho”, como momento transcendente. Para ela isso aplica-se a todo o mercado de trabalho. Assim Dölling está longe de tomar em consideração a mais-valia relativa, a contradição em processo e o desenvolvimento das forças produtivas para o colapso do capitalismo por si diagnosticado, ligando isso aos vários planos de dissociação do feminino, e mais longe ainda de tematizar a dissociação-valor numa dimensão macro como princípio social formal.

 

O por ela chamado “não-trabalho” pertenceu e pertence sempre ao patriarcado capitalista, como seu pressuposto. Portanto também é de esperar que as actividades de care hoje desenvolvidas profissionalmente, de futuro, perante a crise que aperta cada vez mais, voltem a ser novamente delegadas nas mulheres, apesar da sua dupla carga e da sua integração no mercado de trabalho “sexualmente neutro”, que apesar disso está ele próprio estruturado com hierarquia de género. O apelo de Dölling ao “não-trabalho” poderá então vir a revelar-se fatal para as mulheres, especialmente no contexto de uma argumentação “não essencialista”; pois nomeadamente as suas actividades reprodutivas enobrecidas como eticamente superiores (veja-se sobre isso as exposições de Plonz) são postas ao serviço da gestão da crise. Mas agora – na lógica de Dölling – isso já não pode ser reconhecido no seu real sexismo. Neste contexto falta-lhe também diagnosticar o asselvajamento do patriarcado na actualidade, quando as instituições do trabalho pago e da família se desfazem, com as respectivas consequências para a situação da vida real, no contexto da actual desintegração da socialização de dissociação-valor.

O capitalismo de mercado financeiro representa algo qualitativamente novo e algo velho ao mesmo tempo: “O chamado capitalismo de mercado financeiro, numa perspectiva feminista, representa uma ruptura com as práticas precedentes, mas não necessariamente incondicional... Ele é de certa forma apenas a sua continuação para além do ponto em que o seu sentido, já sempre questionável mas em última instância credível, tem de regressar à sua grande promessa – ‘prosperidade para todos’. Pré-requisito para a ‘financeirização’ da economia capitalista, que agora está empurrando Estados inteiros para a ruína, era, obviamente, um capital à procura de um enorme excesso de retorno, capital que tinha sido ganho na chamada economia real, mas que já não encontrava nem encontra lá aplicações suficientemente rentáveis e procura-as agora principalmente em negócios especulativos... Por isso... não vale a pena fazer de conta que a ‘economia real’ tem de sobreviver ao ‘tsunami’ da falência da economia especulativa e suas consequências nos orçamentos de alguns Estados-Membros da UE, a fim de, em seguida, novamente apoiada, voltar ao progresso do desenvolvimento tecnológico e ao crescimento económico constante – em caminhos comprovados, na via do pleno emprego e da igualdade.” (Kurz-Scherf, 2012, p. 92)

 

 

 

 

 

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